Ceará

Resistir

Crônica | Por uma vida que valha a pena ser vivida...

Continuo, porque nós, classe trabalhadora, não temos opção de desistir, disso depende nossa vida e de tantas outras.

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
Esse poema me salvou a semana e me deu fôlego para continuar na luta por mais um dia! - Foto: Divulgação

Na estante de minha sala, em meio a um desengano pela vida, pelo país em que vivo, por todos que assim como eu, estão cansados desses dias que não passam, pego aleatoriamente um livro do Drummond há tanto tempo esquecido na prateleira em meio a tantos outros livros.

Começo a leitura e, precipitadamente, digo: bem, Drummond nem é lá tão gênio assim. Cética e amarga que estou pela conjuntura e pela vida que me lembra cotidianamente que a minha classe está em meio a um ataque que quase não nos deixa respirar, sugando nossas forças para reagir.  

Qual nada! O poeta mineiro, como que em tom de afronta me coloca a vista um dos poemas mais potentes que li na vida! Talvez isso se deu pelo meu estado de espírito, talvez por vontade de me agarrar a qualquer expectativa revolucionária, ainda que mínima, para esse nosso cenário tenebroso, talvez só pela genialidade mesmo do poeta, ou ainda, por tudo isso junto. Fato é que o poema me tomou por inteira. 

Esse poema me salvou a semana e me deu fôlego para continuar na luta por mais um dia! E amanhã algo há de me salvar novamente e eu continuo. Continuo, porque nós, classe trabalhadora, não temos opção de desistir, disso depende nossa vida e de tantas outras gentes. 

E esse mês, a crônica é só essa mesma! Um viva ao poema “Cantiga de enganar” do Carlos Drummond de Andrade! Um viva a poesia e a arte que em meio a tanto desengano e desespero, em toda a história da humanidade, foi responsável por dar respiros, fôlego e alento para se continuar resistindo e sendo gente. 

Sem mais, compartilho com vocês abaixo o poema. Que ele seja respiro para mais gente! Sigamos firmes!

O mundo não vale o mundo,
meu bem.
Eu plantei um pé-de-sono,
brotaram vinte roseiras.
Se me cortei nelas todas
e se todas se tingiram
de um vago sangue jorrado
ao capricho dos espinhos,
não foi culpa de ninguém.
O mundo,
meu bem,
não vale
a pena, e a face serena
vale a face torturada.
Há muito aprendi a rir,
de quê? de mim? ou de nada?
O mundo, valer não vale.
Tal como sombra no vale,
a vida baixa… e se sobe
algum som deste declive,
não é grito de pastor
convocando seu rebanho.
Não é flauta, não é canto
de amoroso desencanto.
Não é suspiro de grilo,
voz noturna de nascentes,
não é mãe chamando filho,
não é silvo de serpentes
esquecidas de morder
como abstratas ao luar.
Não é choro de criança
para um homem se formar.
Tampouco a respiração
de soldados e de enfermos,
de meninos internados
ou de freiras em clausura.
Não são grupos submergidos
nas geleiras do entressono
e que deixem desprender-se,
menos que simples palavra,
menos que folha no outono,
a partícula sonora
que a vida contém, e a morte
contém, o mero registro
da energia concentrada.
Não é nem isto, nem nada.
É som que precede a música,
sobrante dos desencontros
e dos encontros fortuitos,
dos malencontros e das
miragens que se condensam
ou que se dissolvem noutras
absurdas figurações.
O mundo não tem sentido.
O mundo e suas canções
de timbre mais comovido
estão calados, e a fala
que de uma para outra sala
ouvimos em certo instante
é silêncio que faz eco
e que volta a ser silêncio
no negrume circundante.
Silêncio: que quer dizer?
Que diz a boca do mundo?
Meu bem, o mundo é fechado,
se não for antes vazio.
O mundo é talvez: e é só.
Talvez nem seja talvez.
O mundo não vale a pena,
mas a pena não existe.
Meu bem, façamos de conta.
De sofrer e de olvidar,
de lembrar e de fruir,
de escolher nossas lembranças
e revertê-las, acaso
se lembrem demais em nós.
Façamos, meu bem, de conta
— mas a conta não existe —
que é tudo como se fosse,
ou que, se fora, não era.
Meu bem, usemos palavras.
Façamos mundos: ideias.
Deixemos o mundo aos outros,
já que o querem gastar.
Meu bem, sejamos fortíssimos
— mas a força não existe —
e na mais pura mentira
do mundo que se desmente,
recortemos nossa imagem,
mais ilusória que tudo,
pois haverá maior falso
que imaginar-se alguém vivo,
como se um sonho pudesse
dar-nos o gosto do sonho?
Mas o sonho não existe.
Meu bem, assim acordados,
assim lúcidos, severos,
ou assim abandonados,
deixando-nos à deriva
levar na palma do tempo
— mas o tempo não existe —,
sejamos como se fôramos
num mundo que fosse: o Mundo.

[Cantiga de Enganar, Carlos Drummond de Andrade, no livro, Claro enigma]

*Professora em Brejo Santo (CE) e militante do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro.

Edição: Francisco Barbosa