Ceará

Vilas e Vidas: Dos Penitentes de Barbalha

As Irmandades dos Penitentes da Cruz de Barbalha seguem a tradição desde o Século XIX.

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Na pequena comunidade, no Sítio Cabeceiras, os penitentes tentam repassar o hábito para a nova geração, que não aceita os complexos rituais da ordem. - Foto: Laura Brasil

O sítio Cabeceiras está situado na zona rural da cidade de Barbalha. O caminho para chegar até o local é caracterizado por uma vegetação seca e cheia de relevos. Não é difícil enxergar inúmeras carroças no decorrer da estrada, meio de transporte ainda utilizado por alguns moradores.

Inúmeras casas de varanda cercadas por plantas verdes quebram a sequidão da localidade. Igrejas católicas são vistas a cada pedaço de estrada, cercando as inúmeras vilas presentes no sítio.  São nessas pequenas vilas, fundadas e ocupadas por fiéis penitentes que a jornada se inicia.

Desde criança, os penitentes foram orientados pelo seus pais a seguirem com rigor os ensinamentos e orientações deixadas pelo Padre Ibiapina. O padre foi um grande evangelista católico da época. Ele pregava a busca da santificação dos penitentes mediante longos períodos de reza e atos de autoflagelação, executados com o intuito da experimentação da dor que Cristo sentiu e, em consequência, alcançarem o perdão pelos seus pecados.

A tradição das Irmandades dos Penitentes da Cruz de Barbalha começou a ganhar espaço na região do Cariri a partir do ano de 1893. A primeira cidade a dar início a tradição foi Juazeiro do Norte, quando o falecido penitente Manuel Palmeira fundou a ordem penitente na cidade. Depois de um tempo a tradição chegaria ao Crato e finalmente em Barbalha, tendo forte concentração e presença nas zonas rurais, onde pessoas humildes tinham na religião o único meio de esperança contra as dificuldades econômicas e sociais.

Alguns penitentes são analfabetos, mas ainda assim obedecem e decoram os textos e cânticos religiosos para preservar a tradição deixada pelos seus pais. São homens que não devem trocar festas por eventos religiosos, fugir de coisas ilícitas, como jogos de azar e bebedeiras, sempre estando à disposição das necessidades religiosas da comunidade.

Com o intuito de conhecer mais sobre a vida dos mais antigos penitentes de Barbalha, sua história e o ambiente das vilas em que vivem, a Caracteres visitou cada vila do Sítio Cabeceiras até encontrar figuras ilustres, penitentes já de idade avançada que há mais de 50 anos lutam por sua fé  mesmo com problemas de saúde,  e pela continuidade da Ordem dos Penitentes na cidade de Barbalha. São eles, Epitácio Fabilicio dos Santos, 79, e Antônio Francisco de Sales, 76. Procurando não somente compreender a história dos penitentes, mas os desafios que eles encontram na preservação de uma tradição tão antiga.


Sem cantar, Antônio revela que pode acabar esquecendo as músicas “ Para eu não esquecer dos benditos, eu vivo cantando eles". / Foto: Laura Brasil

Obediência e fé 

A primeira vila do Sítio Cabeceiras visitada foi a Vila  Maria de Lourdes, onde encontrei Epitácio Fabilicio dos Santos, 79, que desde os 12 anos é penitente. Quando cheguei em sua casa, ele estava concentrado, varrendo folhas do pé de manga que o vento insistia em derrubar no chão. Logo que me viu e soube da minha vontade em ouvir sua história, correu para sala e me mostrou fotos e medalhas que ganhou no decorrer de seu trajeto como penitente.

Depois pegou algumas cadeiras e começou a lembrar de sua história na ordem, desde criança até os dias atuais. Epitácio conta que sua infância foi cercada de dificuldades e que nunca teve oportunidade de aprender a ler e escrever. Desde pequeno, teve que trabalhar para ajudar no sustento de sua mãe e suas duas irmãs.

Mesmo com os problemas financeiros, ele nunca desistiu e sempre era assíduo nas reuniões da ordem.  “Tinha dias que saia de nove horas da noite indo a pé até o Crato, quando chovia, ainda assim tínhamos que ir, mesmo que chegasse ensopado ao local. Depois que terminava a trajetória, eu tirava minhas roupas de penitente para não ser reconhecido e ia para mais um dia de luta no trabalho, ” diz.
 
Epitácio afirma que antigamente era muito diferente de hoje, as pessoas tinham mais dedicação e coragem ao seguir a penitência, elas caminhavam longas jornadas sem reclamar do calor ou da chuva. Hoje quando são chamados para algum evento, os jovens penitentes perguntam logo se haverá carro para locomoção.

As diferenças entre épocas podem também ser vistas pelos penitentes na educação das crianças.  Para ele, antigamente as crianças respeitavam mais seus pais, relembra que, quando o falecido penitente Joaquim Mulato era vivo, as crianças que pertencessem a ordem dos penitentes e desobedecessem a mãe, o pai ou a algum parente da família e até mesmo não parentes, tinham que caminhar por longos quilômetros de estrada com uma pedra muito pesada na cabeça – Pedra sem Rodilha - um pano que servia como proteção para cabeça.

Mulato não tolerava a desobediência de crianças que faziam parte de seu grupo. O penitente deveria ser íntegro desde a infância, ainda que para isso fossem necessárias duras punições, como fazer a criança ajoelhar-se no milho, disciplina bastante utilizada naquele período. 

“Se hoje formos fazer isso que era feito com as crianças antigamente, além de elas não obedecerem, somos presos. Hoje os meninos não querem ter compromisso e nem obedecer. Quando começam a crescer, namoram e acabam abandonando a ordem, não assumem mais compromisso com as rezas e as caminhadas. Preferem sair do que obedecer.  Só os mais velhos criados com disciplina continuam na tradição mesmo ”, revela. 

Epitácio lembra que quando começou a namorar nunca substituiu o compromisso de uma reza por uma saída com sua namorada ao forró. “ Ser penitente para mim é tudo, nunca deixei que meu namoro atrapalhasse minha tradição, que sempre coloquei em primeiro lugar”. Sobre o autoflagelo, disse: “ antigamente subíamos até o cemitério no tempo da quaresma para chicotear as costas com chicotes que tinham lâminas na ponta. Não doía, mas ardia bastante, o sangue frio escorria pelas costas. Depois quem quisesse tomar banho de sal, tomava, quem não quisesse, deixava cicatrizar as feridas com o tempo”. 

O cemitério era o local escolhido para o autoflagelo devido a ser um lugar onde as pessoas lamentavam e choravam pelos seus entes queridos. Machucar o corpo dentro de um cemitério era para os penitentes um ato de tristeza e remorso pelos erros cometidos que deveriam, assim como os mortos daquele lugar, serem sepultados no local. Grande parte da população e até mesmo os próprios vizinhos de Epitácio não acreditavam que ele e seus colegas faziam isso.  “A gente teve que passar na televisão para o povo acreditar que praticávamos o autoflagelo. ”

Antigamente os penitentes não poderiam ser vistos. Para isso, utilizavam roupas que cobriam o rosto e todo restante do corpo, impossibilitando, assim, a identificação. Com o tempo, era impossível seu Epitácio não ser reconhecido. Os vizinhos às vezes o viam saindo e logo identificaram que ele seguia a ordem dos penitentes. Com o avanço do conhecimento dos penitentes, tanto na cidade de Barbalha, durante a Festa de Santo Antônio, quanto pela cobertura das emissoras de televisão, o anonimato ficaria no passado.

Os penitentes não somente foram conhecidos pelo Brasil por meio da televisão, como tiveram a oportunidade de conhecer alguns estados do País através de viagens patrocinadas por emissoras como a Rede Globo.  De mais de 20 capitais brasileiras percorridas, Recife foi um dos locais que mais impactaram os penitentes. Lá conheceram uma madre que pediu para que Epitácio explicasse o motivo do uso do chicote com lâmina. Ao demonstrar a utilidade do chicote desferindo golpes sobre sua mão até sair sangue, a madre ficou assustada e reprovou a atitude. 

Para ela, Jesus já havia derramado seu sangue por eles na cruz, assim eles não tinham razões para derramar o sangue deles;  que aquilo representava risco à saúde e não era algo bom a ser seguido. Desde aquele encontro com a madre, as práticas de autoflagelação foram abandonadas pelo grupo.

Epitácio não lembra o nome da madre, apenas o rosto. As últimas vezes que Epitácio cometeu o autoflagelo foi a pedido de uma emissora de TV cujo nome não contou.  Ele afirma ter se arrependido de ter deixado ser filmado pela TV, talvez seja um castigo que até hoje ele vive, pois sente fortes dores e queimação em suas costas.  Caso eu faça de novo eu não quero que a televisão filme,” diz. 

Epitácio lamenta não ter a saúde que tinha quando jovem para prosseguir longas caminhadas de penitência. Hoje, já idoso, sofre com a hipertensão e com dores na coluna de grande intensidade que o fazem chorar. Lamenta a falta de interesse de muitos jovens em entrar ou permanecer firme e forte na ordem.


Epitácio Fabilicio dos Santos: penitente desde os 12 anos de idade. / Foto: Laura Brasil

Jovem Penitente 

Schayde Henrique Matos Azevedo, sobrinho de Epitácio, desde os sete anos de idade é penitente, entrou na ordem devido a influência do seu falecido avô, que também era. Henrique conta que sempre procura participar das reuniões por livre e espontânea vontade e que não está na ordem por dinheiro, pois quando os penitentes viajam, normalmente as pessoas costumam dar dinheiro como ajuda ou agrado. 

Segundo Henrique, alguns de seus colegas já tiveram vontade de participar do grupo. “Eles só acham bonito as danças e as práticas dos penitentes, mas para ser um penitente não são todos que querem. Nunca senti vontade de deixar de ser penitente, estou acostumado”, diz.

Epitácio revela preocupação em relação a Henrique sobre a possibilidade de quando ele crescer deixar o grupo, pois seus filhos abandonaram a ordem logo que casaram. Participar dos penitentes exige dedicação e compromisso, nem todos os jovens estão dispostos a seguir essa rotina. 

Pode haver aniversário, dança de forró, cinema ou saída na praça, se tiver reunião ou reza um penitente não pode ir a esses eventos e deixar de lado as práticas religiosas. Este fato faz com que o número de jovens participantes na ordem diminua ano após ano. Os jovens de hoje conectados com as redes sociais e grupos de amizades não estão dispostos a terem uma vida de privações, são poucos os que querem e permanecem no grupo de penitentes. 

 “Acho que quando os mais velhos que sustentam a tradição morrerem, os penitentes de Barbalha vão acabar. Os meninos só querem saber de namorar e ir para festas. Arrumam desculpas para não ir aos eventos da Igreja e os que estão firmes quando crescerem e começarem a querer sair no mundo, logo deixam a ordem. É só questão de tempo “ afirma. 

Ao contrário do que se pensa sobre Epitácio como um homem que evita festas, ele se anima ao falar que adora dançar forró aos domingos. No entanto, entre dançar e ir a uma reunião dos penitentes, a obediência a tradição vem em primeiro lugar. 


Penitente caracterizado exibe crucifixo utilizado em eventos religiosos e culturais. / Foto: Laura Brasil

Memória que resiste 

Antônio Francisco de Sales, 76, mora a alguns metros de distância da Vila Maria de Lourdes. Dentro da Vila Mulato, território fundado por Joaquim Mulato, que, quando vivo, foi um influente penitente. Mulato doou terrenos para as famílias religiosas morarem no local, perto umas das outras e, por meio dessa atitude, a vila surgiu. 

Atual decurião do grupo, desde os 10 anos de idade segue a tradição dos penitentes. Hoje, é debilitado pelo mal de Parkinson e pela perda parcial da audição, consequência da própria doença. Ele também foi vítima de um acidente vascular cerebral e de um atropelamento que quase lhe custou a vida. Busca com limitações manter viva a tradição dos penitentes, em atos e em sua memória.

Ao contar sobre como conheceu o grupo, Antônio afirma que, em certa ocasião, Epitácio dos Santos, mais velho do que ele dois anos, mas ambos ainda adolescentes, estava vestido com as roupas de penitente e o rosto coberto; Mesmo com o disfarce das vestimentas, Antônio reconheceu a voz do colega e depois, bastante interessado, foi levado por ele para conhecer o líder do grupo.  O líder avaliaria se ele poderia ou não participar da ordem. Os homens da casa de Antônio, pai e avô já faziam parte do grupo, menos ele. 

Ao chegar de noite no lugar que combinou com Epitácio, Antônio foi avistado pelo grupo e direcionado por Severino, outro penitente, para falar com Joaquim, o líder. Severino e Joaquim perguntaram a ele se seu interesse em entrar no grupo “era para fuxicar para as pessoas a identidade dos penitentes”. Com convicção, Antônio disse que não era essa sua motivação, queria fazer parte do grupo e andar com eles para onde fossem. Não queria prejudicar o grupo e sim ser um penitente. 

Sua entrada depois de muita insistência foi aprovada quando souberam que era filho de Amélia, sua mãe era muito fervorosa na Igreja Católica.  Não é à toa que Antônio é conhecido como Antônio de Amélia. Após saberem a informação, os chefes do grupo pediram para que ele não contasse a ninguém nem sobre a identidade de quem participava, nem sobre os rituais de autoflagelo no cemitério e nem que ele havia virado penitente.

Eram sete horas da noite do ano de 1953, quando Antônio Francisco de Sales, de baixo de um pé de bananeira, foi aprovado na ordem. Desde aquele dia continua seguindo fervorosamente os ensinamentos que foi instruído.

Sobre a autoflagelação, Antônio confirma que a prática foi deixada e diz que sua disciplina - como chama o chicote com a lâmina no final usada para mutilação - foi roubada. “Tinha deixado minha disciplina com minha roupa assim que cheguei da rua com Joaquim Mulato, aí saí para um lugar perto de minha casa, e quando voltei tinham carregado minha disciplina e até hoje ela nunca mais voltou”,  conta.

Mesmo com dificuldades para ouvir, o penitente tem uma memória de ouro, contando detalhes importantes da instalação da Ordem de Penitentes no Sítio Cabeceiras pelo Padre Ibiapina. De todos os penitentes da vila, só Antônio sabe a história e os benditos da ordem.      

“Tudo começou quando frei Ibiapina chegou do estrangeiro, não sei de onde ele veio, se era francês ou português, eu não sei o que ele era. Só sei que ele veio de navio e desceu nas terras da Bahia, e criou um grupo de penitentes. Depois fez um grupo em Pernambuco e outro em Alagoas e, em 1800, veio para Missão Velha e criou outro. Como não existia Barbalha e nem Juazeiro, ele foi para o Crato e no Crato formou um grupo.  Em um determinado momento, saiu do Crato a cavalo até o pé da serra e marcou o espaço que seria construída a capela Luanda. Depois veio para o Arajara, atual distrito de Barbalha que, na época era tomado por sítios cheios de cana de açúcar, habitados por poucas pessoas, ”  conta.


Quadros religiosos: objetos de devoção que caracterizam a fé dos penitentes. / Foto: Laura Brasil

Dentro desses territórios rurais, o padre demarcou pedaços de terra, sendo um deles o que abrigaria a construção da capela de Nossa Senhora da Conceição, na localidade. Logo depois se dirigiu a territórios que compreendem o sítio Cabeceiras. Ibiapina era um verdadeiro evangelizador, por onde passava construía igrejas para disseminar e reforçar as crenças da fé católica, atuando também na construção de um cemitério naquela pequena localidade.  

Antônio revela que na época em que o Frei chegou a região (como ele chama o Padre Ibiapina), muitas pessoas estavam morrendo do cólera e não havia um cemitério para que as famílias pudessem enterrar ou rezar pelos seus mortos. Com a chegada do padre Ibiapina, ele pediu um pedaço de chão para que o cemitério fosse construído, com a doação do terreno pelas autoridades da época, o cemitério foi erguido.

Por ser o único do sítio a saber grande parte da história e dos benditos, cânticos religiosos, em uma reunião feita na casa de Epitácio, Antônio foi escolhido para ser o novo decurião, em substituição a Severino. Devido à idade avançada e problemas de saúde, logo os chefes eram substituídos e um novo decurião era escolhido. Para ele, “nem todos podem ser penitentes, e ter o nome de penitente não te faz um. Muitos não sabem nem um bendito sequer, não seguem as Leis como os antigos seguiam”, diz.

Mesmo com problemas na garganta devido a uma gripe, Antônio começou a cantar os benditos. Antes da entrevista chupou uma pastilha para sua voz melhorar, e assim continuou cantando suas músicas preferidas e contando histórias. Sem cantar, Antônio revela que pode acabar esquecendo as músicas “ Para eu não esquecer dos benditos, eu vivo cantando eles. Se eu não cantar, eu esqueço. ” Conta que há alguns anos estava em uma procissão de penitentes e uma moto desgovernada o atingiu e a alguns de seus amigos, no acidente ele fraturou a perna esquerda em dois lugares e quebrou três costelas, ficando internado por vários dias no hospital.

Outros acidentes e problemas de saúde inesperados também surgiram com o tempo. Há cinco anos foi acometido por um derrame que paralisou um lado do seu corpo, além de sofrer de problemas cardíacos necessitando do uso contínuo de medicações para manter o ritmo adequado do seu coração. Mesmo estando proibido por seu médico de fazer longas caminhadas e viagens, seu Antônio é penitente por amor. Ao cantar as músicas dos benditos pode resgatar em sua memória uma tradição que ama e pratica há mais de 50 anos.

Escolha Diferente

Paulo Sérgio Sales da Silva, 23, neto de Antônio, tem orgulho e grande admiração por seu avô continuar firme na lei dos penitentes. Entretanto, Paulo diz que nunca sentiu vontade de ser um, ainda que sua família seja liderada por velhos penitentes. O jovem conta que mesmo não seguindo os passos do seu avô Antônio, ele sempre respeitou sua decisão de não continuar com a tradição. 

“Ele sempre me respeitou. Nunca me pediu para ser um penitente. Sei que ele sabe da admiração que tenho pela cultura, mas não penso em ser um, nunca quis fazer parte. Um dos motivos que não me fazem ser, é a desvalorização dessa cultura nos últimos anos, as coisas não são como antes,” diz.

Paulo relembra que quando criança, tinha muito medo dos penitentes. Era comum as crianças da vila terem medo. Ele associava a prática a algo triste, que gerava temor devido aos penitentes sempre estarem presentes em rezas de velórios. Hoje, Paulo acredita que seu avô é um grande exemplo de liderança e de fé, a tradição já não mais o assusta.