Ceará

ROCK DE FAVELA

Entrevista | "A nossa bandeira é nosso corpo. Nós somos sobreviventes e quebramos estatísticas"

Mateus Fazeno Rock conversou com o Brasil de Fato Ceará sobre os desafios e as conquistas no mundo da música autoral

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
O último álbum do artista, intitulado de “Jesus Ñ Voltará”, lançado em abril deste ano, é interligado em canções sobre os ciclos de começo e de fim da vida - Iago Barreto/Divulgação

O multiartista, Matheus Henrique Ferreira do Nascimento, mais conhecido como Matheus Fazeno Rock, é cearense criado no bairro da Sapiranga, em Fortaleza, e apresenta com seu trabalho uma nova vertente da música brasileira, que vem ganhando força em todo o país, que é o Rock de Favela.

Nesta entrevista, vamos falar sobre carreira, desafios de ser artista no estado do Ceará e sobre lutas e conquistas. Confira:

Quem é o Matheus Fazeno Rock?

Matheus Fazeno Rock, a pessoa artista à frente do Matheus Henrique Ferreira do Nascimento, é apenas filho da Marisa, cria da Sapiranga. Matheus Fazeno Rock é essa expansão da minha própria existência e identidade para poder fazer música, para poder realizar sonhos, para poder sonhar e continuar sobrevivendo. Então, o Matheus Fazeno Rock é uma extensão do Matheus para que ele sobreviva.

Matheus, e como é que você enxerga o movimento autoral no estado do Ceará?

O movimento autoral no Ceará sempre foi muito vívido, muito forte, muito inspirador, embora muito invisibilizado também. Tem um marco temporal histórico com o pessoal do Ceará em que a música furou uma bolha e começou a ser lembrado fora do estado também, como o próprio Belchior e o Ednardo. Apesar de ter bandas maiores como Selvagens ou o próprio Cidadão Instigado, que conseguiram muitas conquistas na cena artística da capital, os interiores também tem muita gente produzindo música. E nesse processo pós pandemia, a cena musical autoral tem se tornado cada vez mais viva e forte, a favela conseguiu ter muita autonomia e aprendeu muito a produzir arte de forma autoral nesse tempo. Então nessa virada de chave de 2020 para 2022 muita gente nova surge fazendo música de qualidade. Daí eu considero a música autoral do Ceará bem viva e pulsante, apesar de vários limites.

Você é um artista que tem despontado aqui no estado e também nacionalmente. Você tem noção de como pode estar influenciando outros artistas que também querem ganhar o Brasil?

Sim. Acho que às vezes não necessariamente pelo som, mas talvez pela forma como a gente se organizou e tem se organizado. Da mesma forma que eu também me inspiro muito em várias pessoas contemporâneas e a forma como elas produzem, como elas se organizam também, eu acabo tendo essa noção de inspirar outras pessoas, a galera preta favelada fazendo música, e fico feliz vendo essa movimentação.

Você acredita que falta mais investimentos e uma atenção maior por parte do poder público para os artistas locais?

Com certeza. Mas ainda assim, o estado do Ceará é referência para outros estados no sentido de organização de centros culturais e editais, porque mesmo em estados como o Rio de Janeiro e São Paulo, certas coisas não acontecem como aqui. O que falta mesmo é uma melhor reorganização financeira desses lugares, falta pensar políticas de cachê, reorganizar a distribuição do financeiro, para criar uma certa equidade entre os artistas ditos locais e os artistas que a galera convida de fora para fazer parte das programações. Atualmente, pelo menos na cena rap, que é onde eu vejo uma melhor organização, é a galera que faz os seus próprios eventos e consegue de alguma forma manter ele vivo. Mas bandas de rock ou bandas de qualquer outro estilo ainda tem essa dificuldade, principalmente porque é uma dificuldade estrutural.

Matheus, explica para gente o que é o Rock de Favela.

Bom, o Rock de Favela é a forma como eu encontrei de fazer rock, um pouco inspirado na forma de produzir rock, um pouco inspirado na forma como a galera do hip-hop produz música. Então, o rock de favela, de certa forma, rompe nossos procedimentos de produção com essa forma hegemônica de produção e, enfim, o uso de vários recursos diferentes para poder tornar possível aquela música. Por outro lado, é um rock que também acaba trazendo outras narrativas que não é usual de se ouvir e se vê no rock. A grande maioria das bandas de rock no Brasil e do entendimento que se tem de rock no Brasil passa por homens brancos, principalmente cis, brancos e de classe média alta. Portanto, esse rock mais comum e mais consumido acabam contando outras histórias, com a presença de outras complexidades, outras subjetividades que não as nossas. Então, é muito difícil se identificar como um pretinho que gosta de rock em um mundo que não existe para você. Eu sempre gostei de rock, o rock sempre esteve presente na minha vida, seria mais natural, seria até negar um pouco de mim, fazer uma música que não tivesse vinculada com essa linguagem. Então o rock de favela é o rock que eu venho fazendo, que tem a ver com minhas origens e com as condições que eu encontrei para produzir ele.

É possível considerar o rock de favela como um movimento artístico? Se sim, você acha que ele já influencia e já possui outros integrantes?

Então, eu não sei dizer. Às vezes as pessoas falam assim “ah, você lidera o movimento”, mas eu comecei a falar rock de favela nas músicas muito para poder marcar mesmo ali uma bandeira que eu vinha construindo. As pessoas que estão comigo também acabam trabalhando e fazendo parte disso. Mas acho que talvez já tenha por aí sim algumas pessoas influenciadas, inclusive fazendo o rock de favela com esse mesmo pensamento, mas que não tinham falado dessa forma ou chamado com esse nome. Mas é muito possível que já se tenha várias outras bandas de rock, de gente preta, fazendo isso também com esse mesmo pensamento, talvez de outro jeito, utilizando outros recursos, tenha outra sonoridade, obviamente, mas que esteja totalmente aproximado em questão de estética, ideologia e sentido com a música que eu venho fazendo. 

Como você recebe essa frase de “liderar um movimento artístico”?

Eu nunca parei para pensar muito sobre isso e nunca foi a minha intenção pensar também para além da música que eu estava fazendo. Embora seja muito massa encontrar pessoas fazendo o mesmo trabalho que eu e com o mesmo sentido, porque dá uma força e você não fica mais tão sozinho. Eu, inclusive, quando falei dessa forma, foi porque também sabia que ia fazer música, fazer música para poder fazer show, fazer show para poder sobreviver. Acho que era uma forma de guiar o olhar das pessoas para o meu trabalho e dizer que independente das nuances, é rock de favela, não é o rock que estão acostumados a ouvir. Inclusive às vezes quando eu acesso um espaço que chega em outras pessoas que não me conhecem, tem sempre alguém que fala “isso não é rock, isso não é rock de verdade”, e aí eu acho até engraçado essa reivindicação por um rock de verdade, é uma besteira grande, tipo, “oh mano, fica aí com seu rock de verdade que eu fico aqui com meu rock de mentira e tô felizão com isso”.

Seu público em grande maioria é formado por pessoas negras. O que representa ter essa representatividade em cima do palco e mais, de ser essa representatividade?

Então, eu acho que no show as histórias que estão sendo cantadas no disco, é partilhada de diversas formas e através de diversos sentidos. No mesmo tempo que eu tô cantando e a música tá acontecendo bem alto, a gente tá se olhando, eu estou suando, a gente tá se sentindo junto, as meninas estão dançando e cantando a música com o corpo, então tem todo esse conjunto de expressões que fazem a galera se enxergar ali. Isso acaba se tornando um espaço de troca muito massa. E eu acho que mais do que representatividade, tem o lance de que boa parte do meu público, principalmente aqui em Fortaleza, uma parte dele que começa com pessoas que ou são meus amigos e amigas ou conviveram em espaços que eu convivo também como Saraus; alguém que é da Sapiranga; alguém que é de uma escola que eu estudei; então a gente de fato compartilha histórias e isso torna o show ainda mais poderoso. 

Quais são as bandeiras de luta que você levanta?

A nossa bandeira é nosso corpo. A família Fazendo Rock é uma família, em sua maioria, de pessoas dissidentes, de gênero e orientação sexual, até a nossa atuação no mercado de trabalho enquanto artista, chegando, negociando festivais, tudo passa por uma série de situações onde a gente acaba tendo que exigir respeitos mínimos, desde estruturas até o respeito de um pronome. A gente é sobrevivente, a gente quebrou estatísticas, a gente quebra estatísticas quando a gente insiste. Esses dias reencontrei um colega da Sapiranga que está na universidade fazendo mestrado e escrevendo tese, e a gente falou sobre esses nossos reencontros, de ver o outro ganhando o mundo, apesar de cada um ter seguido seu caminho, mas lembrando dessas vitórias em comum, apesar tristezas em comum também, aquela saudade em comum, daquele amigo que se perdeu, daquela pessoa que infelizmente foi tirada da vida, ou daquela pessoa que não está bem psicologicamente por conta das diversas violências vividas. Essas coisas em comum que a gente tem, essa superação que é nossa, ela se estende para o futuro porque todo mundo quer ficar vivo, quer envelhecer, quer ter uma casa, quer ter filhos e quer que os filhos vivam bem, quer também garantir uma boa velhice para nossas mães. Então, nossas bandeiras estão em nossas próprias vidas.

No disco “Jesus Não Voltará”, você fala sobre os crimes contra a população negra e indígena, entre outras questões sociais também. Qual é a sua aproximação com as lutas populares?

A minha aproximação com as lutas populares começou comigo ainda mais novo, eu estive mais próximo das lutas populares no sentido organização social, na Brigada Antônio Conselheiro, que aconteceu ali no Bairro da Sapiranga, foi um lugar onde eu tive acesso a discutir sobre pautas básicas, como moradia. Eu estive um pouco presente nas primeiras ocupações do MTST aqui no Ceará. Fora o movimento do sarau, que eu considero sim um projeto de resistência popular, sobre cultura e acesso à cultura nas periferias de Fortaleza, que é inclusive um lugar que me formou enquanto músico. E hoje em dia a minha aproximação vem de levar isso para dentro dos trabalhos, para dentro dos discos, para dentro dos shows. Atualmente a gente, por exemplo, se aproximou da luta da Chacina dos 11 do Curió, essa briga por justiça e tentando levar essa pauta para os grandes palcos que a gente passou, para que o acesso ao debate se amplie na cidade, já que estava sendo um processo de júri popular. 

A gente vem neste lugar e também uma coisa que considero importante que está muito presente no nosso trabalho é a preservação da memória, de não deixar algumas pessoas e alguns trabalhos serem esquecidos, porque esse processo de esquecimento enfraquece a nossa autoestima, enfraquece as organizações e enfraquece os debates. Em nossos shows, por exemplo, já homenageamos o Koa, dançarino daqui de Fortaleza, que infelizmente veio a falecer por uma doença respiratória. Mas vale lembrar também que isso tudo acontece por conta do racismo estrutural e do mau atendimento dentro de hospitais, os estigmas que pessoas pretas sofrem quando chegam com doenças nos hospitais, enfim, tem uma série de questões. Além disso, nosso trabalho está muito nesse lugar de resistência LGBTQIA+, de resistência à memória. Enfim, sobre a vida mesmo, tudo a gente enquanto sobrevivente tenta fazer manutenção da vida fazendo arte.

A música “Pode Ser Easy”, do álbum Jesus Não Voltará, representou o Ceará no Prêmio Multishow 2023, e foi uma das indicadas ao prêmio. Como foi para você receber essa notícia que estava participando desse prêmio? 

Foi muito massa, foi uma surpresa grande e só aos pouquinhos, no decorrer dos dias, foi que a dimensão do que isso realmente significava foi batendo, porque enfim, a gente não tem parentes importantes. Então saber que a nossa música caminhou pela própria força do nosso movimento, da nossa organização e pela própria beleza da música, e que chegou nos ouvidos das pessoas que fizeram a curadoria e botaram a gente na premiação, foi muito gratificante. E foi muito bonito nossa música estar ali representando o Ceará, e foi muito bonito ver também as pessoas votando, engajando, fazendo grupo, fazendo mutirão e compartilhando link e votando todo dia.

Para ouvir Maheus Fazeno rock é só acessar as principais plataforma de streaming de música.

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Edição: Camila Garcia