Ceará

Artes visuais

Artistas denunciam preconceito e falta de estrutura na 73ª edição Salão de Abril em Fortaleza

Problemas de infraestrutura, desorganização e transfobia institucional são algumas das questões levantadas

Fortaleza, CE |
73º Salão de Abril acontece até 22 de outubro na Casa do Barão de Camocim. - Foto: Camila Garcia

O Salão de Abril abriu as portas para o público nesta quinta-feira, (8/9), em meio a polêmicas e falhas no processo de montagem das instalações. As denúncias foram feitas em uma carta coletiva assinada por artistas selecionados para a 73ª edição do evento que acontece no Centro Cultural Casa do Barão de Camocim.

O documento expõe o descontentamento com a gestão atual e critica as iniciativas realizadas pela prefeitura, por meio da Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor) e do Instituto Cultural Iracema (ICI), nas áreas da cultura e das artes visuais. Entre diversos pontos citados, o coletivo reclama do cronograma do Salão de Abril, estabelecido apenas uma semana antes da vernissage do Salão, o que impossibilitou a vinda de uma artista para a exposição, a montagem de diversas instalações e o trabalho da curadoria.

O grupo de artistas também acusa parte da equipe da Prefeitura de cometer transfobia institucional. Isso porque, na divulgação da lista dos habilitados no edital, artistas trans e transvestigêneres foram chamados pelos nomes aos quais foram registrados, identificações consideradas mortas, uma vez que assumiram nomes sociais relacionados às suas identidades de gênero. Na carta mencionam ainda repúdio ao “racismo institucional, a violência psicológica, política e social contra artistes, principalmente quem está montando pela primeira vez seus trabalhos”.

A travesti e artista-pesquisadora das artes, Lyz Vedra é uma das artistas selecionadas para o festival. Ela relata uma série de problemas, incluindo erros jurídicos e falta de comunicação, até dificuldades técnicas que comprometeram sua instalação.  “A lona que cobre a janela e que o meu trabalho seria projetado era de uma largura menor que o necessário para a projeção, Ou seja, vasa da lona para a parede e o vídeo fica sendo projetado em duas superfícies diferentes e sobre áreas de alto relevo de detalhes arquitetônicos, o que atrapalha a visualização do conteúdo exibido na projeção. E como se não bastasse, quando eu cheguei na Casa do Barão para prestigiar todos os trabalhos, assim como o meu, já fui solicitada pela equipe para colocar minha própria obra para reproduzir no projetor porque ninguém mais sabia manusear o equipamento e eu fui aprender a mexer”, explica.

A artista também segue com uma lista de problemas de infraestrutura e alerta para a falta de qualidade técnica dos profissionais que não tem experiência na área. "Não existe planejamento mínimo para expografia. Estive lá todos os dias e nada do que solicitei foi atendido. Alguns profissionais fizeram o que podiam para que a exposição fosse montada com o mínimo de respeito à concepção dos artistas e ao tempo da abertura. Mas não se tem condições mínimas de assistência técnica e a logística que as obras precisam para estarem montadas respeitando o que foi proposto na ficha de inscrição em consonância com a concepção dos autores”, continua.

A Carta também faz essa ressalva. O coletivo alerta “que é fundamental, para eventos futuros, que a equipe de realização, produção e montagem seja aprovada pelo Conselho Municipal de Política Cultural” e “exige que equipamentos e eventos de Artes Visuais da Prefeitura de Fortaleza sejam produzidos por profissionais com experiência e conhecimento técnico na área”.

O documento denuncia, ainda, a falta de compromisso da Secultfor e do ICI, com a área da cultura e das artes visuais e aponta que “autoritarismo, oportunismo e nepotismo fazem muito mal à gestão pública, adoecendo a quem dela se aproxima”. A Conselheira Estadual de Cultura na área de Performance e artista, Aires Furtado, apontou diversas situações constrangedoras, como erro nos nomes e nas informações nas placas das obras.  “Durante a vernissage, a fala que seria destinada a curadoria e aos artistes foi cortada e a gente acredita que foi por conta da gente apresentar críticas tanto a essa gestão, como ao funcionamento do salão. A equipe da exposição é composta por 90% por homens cis e brancos, ou seja, a própria estrutura de contratação indica o pensamento. Temos uma pasta de cultura coordenada por um médico ginecologista. É surreal pensar que ele é secretário porque é irmão do prefeito, é nítido que teve um processo de nepotismo”, pontua a artista.

Por nota, a Secretaria de Cultura de Fortaleza e o Instituto Cultural Iracema informaram que “estão apurando os relatos apresentados e que algumas medidas já estão sendo encaminhadas pela Secultfor e o ICI como forma de alinhar cada vez mais o Salão de Abril com as provocações que permeiam as perspectivas sobre a cultura e estão entrelaçadas com aspectos sociais e políticos”. O texto também convida os 33 selecionados para a 73º edição do Salão de Abril para uma reunião na próxima segunda, dia 12 de setembro.

Além disso, no edital do 73° Salão de Abril constam nos itens 4.13 e 8.6, informações acerca dos equipamentos necessários para as instalações. 

O documento, que é público,  informa que "equipamentos eletrônicos e materiais especiais necessários à apresentação da obra são fornecidos pelos proponentes, ou seja, pelos artistas selecionados" . Essa ciência é dada no ato da inscrição".

Críticas a Secultfor são antigas

Esta não é a primeira vez que artistas da cultura cearense criticam a gestão do secretário de cultura, Elpídio Nogueira, irmão do prefeito José Sarto. Em março de 2021, um ano após o início da pandemia, trabalhadores da cultura também cobraram em carta aberta, medidas urgentes para amenizar a crise e garantir recursos para a área, uma das mais atingidas durante a pandemia da Covid-19. Em julho de 2021, membros de diferentes movimentos culturais e linguagens artísticas, apresentaram uma segunda carta apontando ausência de diálogo e transparência quanto ao planejamento da pasta.

Antes de assumir a Secretaria de Cultura, Elpídio Nogueira foi secretário de Turismo e titular da pasta de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da Prefeitura de Fortaleza. Ele foi vereador durante 6 mandatos na Câmara Municipal. Além de médico, o secretário também é músico amador e já apareceu na sua conta pessoal nas redes sociais, tocando vários instrumentos. 

Durante 24 anos, o então vereador apresentou e indicou alguns projetos voltados para a temática da cultura, porém apenas dois viraram lei. A de número 0281/2011 que institui a virada cultural em Fortaleza, um evento que acontece anualmente com 24 horas de duração de eventos culturais e gratuitos envolvendo as seis regionais da cidade e a Lei 0198/2011 que dispõe sobre o reconhecimento da arte evangélica como legítima expressão cultural, considerando a diversidade existente no Brasil. Entre outras leis aprovadas pelo então vereador, também está a Lei Nº 030/2013 que dispõe sobre o programa cinema na escola com o objetivo de aproximar o público infantil da narrativa audiovisual.


Salão de Abril

Apesar das polêmicas deste ano, o Salão de Abril se consolidou como um espaço plural, conectando diversas produções no campo das artes visuais do Ceará e do Nordeste. 


Exposição no 73º salão de abril. / Foto: Camila Garcia

A temática desta edição dialoga com o centenário de um dos períodos disruptivos da cultura brasileira, a Semana de 22, e homenageia também os centenários de Antônio Bandeira (1922 – 1967) e Aldemir Martins (1922 – 2006). Marco histórico, polêmico e que, nesta homenagem, receberá uma abordagem diferenciada e propositiva, o movimento cultural ocorreu em São Paulo, entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922, no Theatro Municipal da Cidade.

O evento reuniu artistas das mais diversas linguagens e abordagens, como Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Heitor Villa-Lobos, Di Cavalcanti, entre outros. A Semana de 22, ou Semana de Arte Moderna, reverbera até hoje, sendo um movimento que abriu possibilidades para movimentos como a Tropicália. 

Entre os homenageados cearenses, Bandeira foi um dos maiores artistas visuais do Estado e do Brasil, figura que dialoga com o Salão desde a origem, tendo sido o primeiro vencedor da mostra, no ano de 1943. Bandeira, junto de outros artistas da época, como o também artista plástico cearense Aldemir Martins, grande nome das artes no País e no exterior, integravam a Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP), que, em 1946 assumiu a realização do Salão de Abril. Aldemir foi pintor, gravador, desenhista e ilustrador, atuou em diversas frentes, mobilizando artistas e abrindo frentes. Teve participação em eventos nacionais e internacionais em países como Espanha, Peru, Suécia, Paris, Suíça e Japão.


Casa Barão de Camocim

O cearense Germiniano Maia, natural de Aracati, recebeu o título de Barão de Camocim da família imperial, por volta de 1880. Único título de barão outorgado pela Coroa portuguesa. Veio a Fortaleza com 17 anos para trabalhar, e se estabeleceu no ramo da exportação de tecidos, montando a Maison Louvre de Tecidos Finos, na Rua da Palma (hoje Major Facundo). O negócio foi de “vento em polpa”, e ele confiou a loja a um sócio, mudando-se para a capital francesa.

Depois de morar alguns anos em Paris, o Barão mudou-se com a família para Fortaleza e mandou construir sua mansão, calcada nos moldes do Renascimento europeu. A casa passou a ocupar quase um quarteirão na parte oeste da Praça de Pelotas (atual Praça Clóvis Beviláqua). A casa do Barão de Camocim tinha o requinte das mais luxuosas casas do velho mundo. 

O prédio é uma das obras arquitetônicas mais antigas da cidade, construído no final do século XIX. Considerada sua importância histórica, a casa foi tombada pelo patrimônio histórico de Fortaleza em 2007, e virou um espaço de Arte e Cultura da cidade.

Serviço

73° Salão de Abril

A visitação está aberta ao público, é gratuita e segue até o dia 22 de outubro.
Local - Centro Cultural Casa Barão de Camocim – Rua General Sampaio, 1632 – Centro
Funcionamento: De terça a sexta, das 10h às 17h, e aos sábados das 10h às 16h.

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Edição: Camila Garcia