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Neoliberalismo, mineração e gestão das águas no Brasil – parte 2

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Consórcio Santa Quitéria quer 23 milhões de litros/dia no Sertão Central do Ceará. - Foto: Coletivo de Comunicação MAM-CE
A injustiça hídrica se articula à injustiça fiscal e tributária provocada pelo modelo mineral.

A mineração no Brasil consumiu ontem, hoje e consumirá, neste e nos próximos anos, 43,2 bilhões de litros de água todo dia. A cada segundo passado e letra teclada neste texto, são 500.000 litros. Em estudo lançado pela Fase, em parceria com o MAM, é exposto o saque das águas no Brasil a qual é destinada para a mineração.

São 15,77 trilhões de litros de água por ano, o que poderia abastecer mais de 284,  milhões de brasileiros, superando em 77 milhões de pessoas a população do país. Entre os elementos centrais que instituem as condições políticas, jurídicas e econômicas deste modelo de mineração está a Política Neoliberal de Recursos Hídricos.

Conforme apontamos no primeiro texto, no auge do neoliberalismo e no Programa Nacional de Desestatização do FHC, (i) a Lei Kandir, em 1996, que desvincula a obrigatoriedade de pagamento de ICMS de produtos primários e industrializados semielaborados, (ii) a privatização da Companhia Vale do Rio Doce, em 1997, (iii) e a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), também em 1997, devem ser compreendidas como um conjunto de objetos e ações que privatizam o modelo mineral no Brasil.

Assim como o Estado brasileiro nunca decidiu sobre o quê, onde e quando minerar, ele também não decide o quanto, onde e para que se destinam as águas saqueadas neste país. Trata-se, portanto, da necessidade de discutirmos e enfrentarmos o modelo neoliberal de gestão das águas, base sustentadora do modelo mineral e agrário exportador. Por exemplo, 600 bilhões de litros são retirados anualmente das águas subterrâneas para a mineração sem apresentar informações sobre sua origem. Todas elas concedidas através de outorgas pelo Estado brasileiro às mineradoras. Como pode o Estado permitir que 71% do volume das águas subterrâneas seja concedido ao capital mineral sem que sejam apresentados quais são estes corpos hídricos? No Brasil minerado pode.

Há um conjunto concreto de brechas desta política neoliberal que acaba por favorecer interesses privados sobre um bem comum:

1.    Todo o processo de inserção das informações exigidas nos requerimentos de outorgas são auto declaratórias: a empresa diz qual será a vazão mínima e máxima utilizada;
2.    Não há estrutura para fiscalização da veracidade dos termos autodeclarados. Só há fiscalização se houver denúncia;
3.    As renovações das outorgas são automáticas. Basta que sejam informados anualmente no sistema os dados relativos à vazão declarada e consumida;
4.    Nos pedidos de outorga não são cobrados dos requerentes a especificação dos minérios que serão lavrados;
5.    A organização das informações solicitadas no processo de requerimento de outorga indica não haver padrão sobre o que é necessário informar e considerar no processo de concessão ou não do pedido, quando comparado os sistemas estaduais e federal. Por exemplo, alguns estados apresentam CNPJ e/ou Razão Social das empresas mineradoras, outros não. Na União não é apresentado nenhum dos dois;
6.    A gestão das águas subterrâneas é restrita à esfera estadual apesar de seu caráter naturalmente transfronteiriço. Contraditório ao critério, por exemplo, do que caracteriza águas superficiais de domínio da União, que é quando um corpo hídrico se estende por mais de um estado.

Este é parte de problemas estruturais que forjam a forma como é conduzida a política de águas no país. Os fundamentos neoliberais da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) são a essência ideológica do problema e devem ser radicalmente enfrentados para construirmos um horizonte que aponte para além da água como um direito humano, mas que deve o povo ter o poder de decidir efetivamente sobre as prioridades de uso e conservação. Dos seis     fundamentos daremos destaque a três neste momento.

O primeiro fundamento da PNRH considera, na teoria, a água um bem de domínio público. Na prática o domínio do público garante as condições para fazer valer os interesses privados. Onde não houver água aparentemente disponível ao “público” o Estado não mede esforços para viabilizar o empreendimento mineral, mesmo que o povo ao redor nunca tenha tido ou tenha defasado acesso a ela. A seca, a crise, o stress hídrico são narrativas políticas que disputam a subjetividade em torno das razões da escassez de um bem que é abundante, porém seu uso não é comum.
 
O segundo fundamento parte do princípio de que a água é um bem escasso, por isso dotado de valor econômico. Usa quem paga, sente sede quem tem juízo. A questão que expõe o calcanhar de Aquiles da política e do modelo é que na prática quanto mais você usa, maior são as isenções sobre a tarifa. Se o setor primário pagasse o valor da tarifa que o povo brasileiro paga para seu uso doméstico e produtivo ele não seria rentável. Portanto, usamos muito menos e pagamos proporcionalmente muito mais. A injustiça hídrica se articula à injustiça fiscal e tributária provocada pelo modelo mineral.

O terceiro fundamento da Lei das Águas aponta que em casos de situações de escassez o uso prioritário dos “recursos hídricos” deve ser o consumo humano. Há um conjunto de situações cotidianas de escassez em todo o país e em quantas delas o capital mineral, ou qualquer uma de suas frações, tiveram suspensas temporariamente suas outorgas para se priorizar o consumo humano de água?

O lábio seca e racha, a língua enxuga a saliva rala e engole a sequidão de uma chamada crise que não é crise. Nem hídrica, nem climática. Crises são mecanismos de destruição criativa do capital, processo intrínseco de uma tendência continuada deste sistema que, ao criá-las, desenvolve mecanismos de ajustes no tempo e no espaço para permitir a expansão de seu domínio pelo sistema-mundo. São mais de trinta anos desde a Conferência de Dublin, tempo suficiente para consolidar uma gestão neoliberal das águas no Brasil, e mais do que isso, em 2020 ela passou a ser cotizada no mercado de futuros de Wall Street. De uma gestão centralizada à sua financeirização em 30 anos.

Concretamente, a mineração hegemoniza nos últimos anos os conflitos por água no campo brasileiro e o Nordeste, logo, o Nordeste passa a concentrar o maior número de casos de conflito. Veremos na terceira parte desta série.

*Pedro D’Andrea*, geógrafo e educador popular, militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração – MAM

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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Edição: Francisco Barbosa