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Neoliberalismo, mineração e gestão das águas no Brasil – parte 1

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A luta em defesa das águas no Semiárido cearense. - Foto: Coletivo de Comunicação do MAM-CE
Se há escassez, crise hídrica e climática, como há tanta água para mineração e tanta gente com sede?

Se pararmos para pensar o problema da seca e da sede sob a ótica da luta de classes expressa a partir da desigualdade estrutural do acesso à água desde o farto cancioneiro popular brasileiro, por que as águas são centro das razões maiores de conflitos somente a partir do final do século XX?

Ora, 1947 é o ano em que Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira escrevem um dos maiores clássicos da música popular brasileira, há cerca de 75 anos atrás: Asa Branca. A terra que arde, a judiação na súplica com Deus, nem um diabo de um pé de plantação e o gado que morre de sede. Ou ainda, Luiz Antônio e Jota Junior, em 1952, com a imortal Maria brasileira que sobe e desce o morro todo dia, com uma lata d’água na cabeça e os meninos no braço, para lavar a roupa lá no alto. Campo e cidade, tem por meio do racismo, do patriarcado e da injustiça hídrica a expressão da luta de classes: o conflito, seja qual for e na dimensão que se queira dar, para quem não tem a garantia do direito ao acesso a água em abundância e qualidade se enfrenta todo dia, há muitos dias.

Pois, se há muito se vive e canta sobre a dor da sede sentida pelo trabalhador e pela trabalhadora, por que se fala tão recentemente sobre crise e escassez? O discurso da escassez, que anos depois se atualiza em formato de Crise Hídrica, hegemonicamente constituído de 1990 para cá, é mais uma faceta dos instrumentos que se inserem no conjunto de políticas neoliberais que institucionalizam no interior do Estado brasileiro acumulação de capital e mercantilização da natureza. 

Neste período, o Brasil absorveu transformações significativas da dinâmica global de acumulação que impôs a intensificação da mercantilização das águas, aqui condensadas na produção de dois consensos: i) na década de noventa, a produção global do “consenso da escassez”, da governança da água e sua institucionalização nos países do sul global, durante a Conferência de Dublin, no marco das conferências preparatórias da ECO-92, em 1992; e ii) a produção do “consenso das commodities” no período da crise alimentar, energética e financeira (2006, 2007 e 2008), como motor dos processos de apropriação e estrangeirização de terras e águas, do superciclo da mineração e da reprimarização da economia brasileira e latino-americana reforçando nosso histórico papel economicamente dependente e subordinado à divisão internacional e territorial do trabalho.

A Conferência de Dublin, em 1992, é o ponto de partida em função da compreensão de que nela se consolida a expansão do controle privado e o início do processo de financeirização sobre a água. A construção do discurso da escassez e a atribuição de valor econômico são evocados pelas principais hegemonias do sistema-mundo, alinhando Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e diversos fundos de investimento, ao capital financeiro e a organismos internacionais, intergovernamentais e ONGs - naquelas que, posteriormente, se constituiria como a “plataforma de multi-stakeholders” que compõem o Fórum Mundial da Água.

O modelo de gerenciamento costurado globalmente - no interior do Conselho Mundial da Água e em torno dos consensos de Dublin - se reflete nos desenhos institucionais dos Estados-nação e no Brasil cinco anos depois por meio da Lei 9.433/97 (Política Nacional de Recursos Hídricos - PNRH). Dentre os princípios que orientam esse modelo estão aqueles que definem a água doce como recurso finito e vulnerável, razão pela qual lhe deve ser atribuído valor econômico com suposto fundamento na inibição do desperdício. 

Um ano antes da Política Nacional de Recursos Hídricos é promulgada a Lei Kandir. Já expomos aqui os elementos estruturantes de nossa formulação que apontam para a existência de um Problema Mineral Brasileiro. Não haveria condições fiscais e tributarias para sustentar tal modelo mineral se as onerações ao povo brasileiro praticadas por tal lei não tivessem sido costuradas no auge do neoliberalismo no Brasil. Mas não só, no marco do Programa Nacional de Desestatização do Fernando Henrique Cardoso, um ano após a Lei Kandir, ocorre a privatização da Companhia Vale do Rio Doce, em 1997. Ambos são para nós a consolidação de um processo histórico que acaba por privatizar este modelo mineral. 

Não são obras do acaso a articulação destas costuras consolidadas em menos de dois anos. Lei Kandir, privatização da Vale e a PNRH constroem um estado de coisas que viabilizam as condições concretas que acabam por culminar no reposicionamento subserviente brasileiro, nos colocando no ranking dos principais exportadores de commodities minerais nas décadas seguintes.

A elaboração da Política Neoliberal de Recursos Hídricos sacramentou as estratégias recomendadas pelo Banco Mundial. O discurso amplamente proferido é o da necessidade de descentralização da gestão da água, retirando a centralidade do Estado que passa a ser dividida entre os estados da federação (através dos Comitês de Bacia Hidrográficas e do Conselho Estadual de Recursos Hídricos), a União (a partir do Conselho Nacional dos Recursos Hídricos), os setores usuários e a sociedade civil. 

Os Conselhos Nacionais (CNRH), Estaduais (CERHI) e Comitês de Bacias (CBHs) são o centro das estratégias em escala da apropriação coorporativa da água por diversas frações do capital. Emergem como campo de tensões estruturadas e estruturantes das correlações de força, tornando-se arenas de disputas definidas por tais tensões, onde o Estado se comporta como detentor das regras do jogo fazendo destas arenas o exercício do poder de instrumentalizar a dominação da gestão das águas, já que tais esferas institucionais são definidas por atores hegemônicos e dominantes, favorecendo a hegemonia do capital sobre o direcionamento da política das águas no país.

Ancorados em pressupostos como neutralidade e em termos tão belos quanto vazios de significado a priori, como “democracia” e “participação”, este modelo de gestão oculta o que deveria ser óbvio: as tensões hídricas são processo e produto de disputas políticas e relações de poder. Ao descolar o debate em torno do modelo de desenvolvimento capitalista como vetor da crise hídrica, o modelo de gestão não só garante amparo legal e institucional aos novos negócios e espoliação das águas, mas põe no indivíduo e no suposto uso racional a culpa pela falaciosa escassez.

Os efeitos são sentidos nas trincheiras da luta de classes. Se há escassez, crise hídrica e climática, como pode haver tanta água jorrando para a mineração e tanta gente com sede? Isso é o que veremos no próximo texto.

*Pedro D’Andrea*, geógrafo e educador popular, militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração – MAM

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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Edição: Francisco Barbosa