Ceará

Novembro Negro

Entrevista | “Falamos que é preciso ser antirracista porque precisamos que ouçam nossas pautas”

Integrantes da Rede de Mulheres Negras do Ceará conversaram com o Brasil de Fato sobre o Novembro Negro.

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |

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As pautas de luta das mulheres negras no Ceará são principalmente no enfrentamento ao racismo. - Foto: Jorge Leão

Estamos no mês da Consciência Negra ou Novembro Negro, e nesse período aparecem muitos convites para as pessoas negras participarem de campanhas, serem capas de jornais e revistas. As empresas falam muito de representatividade, mas como é no restante do ano? Esses convites permanecem? Essa visibilidade continua? E as mulheres negras no estado do Ceará, como elas estão organizadas? Quais são as suas principais pautas de luta? Para responder essas e outras perguntas o Brasil de Fato conversou com Luciana Lindenmeyer e Yasmin Lindenmeyer, integrantes da Rede de Mulheres Negras do Ceará.

O que é a Rede de Mulheres Negras do Ceará?

Luciana Lindenmeyer - A Rede de Mulheres Negras é fruto da mobilização que vem há muito tempo, mas, principalmente, tivemos a Marcha de Mulheres Negras em 2015 e essa marcha foi gerando algumas sementes. Nós surgimos em 2018. A gente começou a se juntar através de um chamado do Instituto Negra do Ceará (Inegra), que é uma organização aqui do Ceará que fez 20 anos este ano. A Inegra chamou algumas mulheres negras para participar do Encontro Nacional de Mulheres Negras 30 Anos, que aconteceu em Goiânia, e aí a gente começou a se reunir, começamos a fazer a nossa Sexta Preta, que foi o nosso movimento político-cultural, começamos a arrecadar recursos para participar desse encontro que foi em Goiânia e não paramos mais, então hoje somos um movimento coletivo de mulheres negras e estamos organizadas nesse momento em três territórios: na Região Metropolitana de Fortaleza, na Região do Cariri e na Região da Ibiapaba, e tentando também chegar a outros lugares do Ceará. A ideia é expandir para todo o estado.

Como é que as mulheres negras vêm se organizando no estado do Ceará?

Luciana Lindenmeyer - A gente fez um planejamento este ano para pensarmos um pouco as nossas prioridades. A gente tem várias frentes de como que a gente enfrenta esse racismo, então a gente está se organizando nesses três territórios e aí cada um deles tem um pouco essa perspectiva, mas a gente tem tido alguns projetos apoiados principalmente pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos que acabam dando um pouco essa orientação.  Este ano a gente teve como prioridade a questão da saúde da mulher negra, a questão do enfrentamento as violências, que é uma questão muito complexa, e a questão também do racismo nas escolas, a questão da educação, da pauta da educação que a gente acha muito importante a gente tentar se mobilizar pela implementação das leis de 10.639 e 11.645.

E quais são as principais pautas de luta das mulheres negras no estado do Ceará?

Yasmin Lindenmeyer - As pautas são principalmente no enfrentamento ao racismo, porque a gente vê cada vez mais situações cotidianas de racismo. Vemos situações nas escolas, meninas que falam sobre o racismo por causa da sua aparência, mulheres negras sendo seguidas e revistadas em supermercados e isso machuca muito. Não deveria acontecer mais.

Luciana Lindenmeyer - O enfrentamento ao racismo acaba sendo a nossa principal pauta, mas que impacta em várias questões. Impacta na saúde mental das mulheres negras. A gente vai ter agora em novembro, por exemplo, a Jornada de Luta Pela Vida das Mulheres Negras porque as violências são muitas, a gente está tendo índices que caem de mulheres brancas e índices que sobem de mulheres negras sendo assassinadas e de encarceramento. O enfrentamento ao racismo é o principal, mas ele vai perpassando por várias perspectivas. A gente vê como que a gente pode fazer essa discussão dentro das escolas, mas também na sociedade como um todo. O novembro é um mês que a gente fala muito dessas pautas, mas que a gente vê o racismo acontecendo durante todo o ano, então realmente a gente precisa problematizar isso porque a gente vê algumas perspectivas, mas a gente não vê tantos avanços. Temos avanços, a gente sabe que mulheres que vieram muito antes de nós enfrentaram situações muito piores, mas que a gente ainda tem muito o que avançar. 

E esse racismo está na cidade, mas também está no campo?

Luciana Lindenmeyer - Está na cidade e está no campo, está em todo o lugar, e no Ceará a gente tem essa perspectiva de, por ter sido o primeiro estado a “abolir” a escravidão, vamos colocar esse “abolir” entre aspas, porque a gente sabe que a gente ainda tem aí uma escravidão moderna. A gente tem esse mito, de que não existem negros no Ceará. Então, só essa perspectiva já é um enfrentamento diário. Então é um enfrentamento bem complexo que a gente precisa todo dia está atento e com a paciência. Falam que novembro é o mês da paciência negra.


O fortalecimento do empreendedorismo de mulheres negras no Ceará precisa de mais atenção e investimento. / Foto: Ascom Igualdade Racial/GOVCE

Vocês também fortalecem o empreendedorismo da população negra, principalmente da mulher negra no Ceará?

Luciana Lindenmeyer - A gente tem mulheres negras que participam, que têm esse empreendedorismo. Dentro da Rede tem algumas mulheres negras empreendedoras. A gente também tem parcerias com outros movimentos, a gente não não faz parte da Feira Negra, mas a gente acha importante que a Feira Negra seja um movimento político da nossa cidade aqui de Fortaleza, e  aí a gente acha, inclusive, que não só empreendedorismo, mas a pauta do enfrentamento ao racismo precisa de mais investimento, porque a gente tem mulheres negras que tem toda uma dificuldade. Por exemplo, as nossas mulheres negras da Ibiapaba são costureiras, rendeiras, tem todo um mundo, e aí tem toda uma dificuldade de apresentar isso porque é uma cidade pequena, então a gente tem toda essa dificuldade de investimento para dar visibilidade a esse trabalho, mas também tem uma caminhada a fazer para poder mostrar que esse empreendedorismo é possível, e também não cair nessa perspectiva de que o empreendedorismo é só dar essa visibilidade, tem que dar as condições da pessoa poder fazer essa produção também.

Estamos no mês da Consciência Negra ou Novembro Negro, e nesse período aparecem muitos convites para as pessoas negras participarem de campanhas, serem capas de jornais e revistas. As empresas falam muito de representatividade e isso tudo é muito bonito, mas como é no restante do ano? Esses convites permanecem? Essa visibilidade continua? É fortalecida? Como é fica no restante do ano?

Luciana Lindenmeyer - É bem complexo, porque a gente sabe que não há esse olhar quando a gente fala da Lei 10.639 e da Lei 11.645, são leis que já têm 20 anos, que são para apresentar a história e a cultura afro-brasileira e isso precisa ser o ano inteiro, mas algumas escolas têm muitas dificuldades de fazer isso e aí acabam lotando o novembro: “vamos fazer várias atividades no novembro”, mas você tem, por exemplo, meninas negras que relatam dificuldade de usar o cabelo natural, por exemplo, na escola porque sofrem racismo. Então o que a gente precisa superar, na verdade, são as posturas. Quando a gente fala de racismo estrutural são posturas diárias que a gente observa. Yasmin citou essa questão de uma professora negra que foi revistada por causa de escova de dente no supermercado. Por que isso não acontece com pessoas brancas? E isso acontece no mês de agosto, no mês de setembro. Então assim, em novembro você dá toda uma visibilidade, mas você não avança, e não é só na discussão, é muito importante a gente colocar isso.

A gente não pode só fazer a discussão, a gente precisa ter mudanças de fato, a gente precisa ter pessoas ocupando esses espaços, a gente precisa ter mulheres negras em diversos espaços, dirigindo escolas, que possam fazer essa discussão não só no novembro, a gente precisa ter mulheres negras dirigindo grandes empresas, a gente tem que ter mulheres negras no Congresso Nacional. A gente tem uma perspectiva de um novembro plural, com muitas atividades, mas a gente precisa avançar nessa perspectiva no restante do ano porque o que a gente precisa não é só de visibilidade em um mês ou dois meses, porque o Júlio é Das Pretas também, é um mês que a gente acaba fazendo bastante essas divulgações, mas o que a gente precisa é uma implicação real da sociedade pelo antirracismo. Quando a gente fala que não basta não ser racista é preciso ser antirracista é porque o que a gente precisa é realmente que e as nossas pautas, as nossas demandas, que parem de nos matar, que parem de violentar mulheres negras, que parem de subalternizar e a gente avançar nessa perspectiva coletiva de superação do racismo.


A Marcha Regional das Mulheres Negras do Cariri aconteceu no dia 20 e contou com leitura do manifesto contendo as principais pautas e reinvindicações das mulheres negras da região do Cariri cearense e muito mais. / Foto: Prefeitura do Crato

Este, além de ser o Mês da Consciência Negra, o dia 25 de novembro também marca o Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher. Quais ações da Rede vem trabalhando em torno desse tema?

Yasmin Lindenmeyer - O mês de novembro é marcante e estamos em várias frentes. Na Ibiapaba, no dia 18 de novembro, tivemos uma roda de vivência sobre violência obstétrica, uma atividade com mulheres gravidas e pessoas que gestam em idade reprodutiva.

Luciana Lindenmeyer - Essa atividade que a Cris Costa e as meninas de Ibiapaba conduziram é um pouco para enfrentar essa violência. A gente também tem várias outras atividades. A gente teve a Marcha da Periferia; no dia 20 de novembro a gente participou da Marcha das Mulheres Negras da Região do Cariri, e a gente vai fazer várias atividades aqui na Região Metropolitana de Fortaleza em escolas e espaços. No Eusébio a gente vai estar no dia 22 na Escola Manoel Ferreira. A gente tem a nossa caravana Sankofa de enfrentamento ao racismo nas escolas. Essa foi a nossa principal atividade do projeto apoiado pelo Fundo Brasil. A gente vai nas escolas fazer todo um diálogo. Criamos uma metodologia própria da Rede de como chegar nessas escolas. A gente tem uma metodologia para escolas de ensino fundamental, para escola de ensino médio, para escola de educação de jovens e adultos. A gente também vai estar com a Caravana Sankofa em algumas escolas. Fazemos oficinas de abayomi, oficina de dança afro, e a gente faz esse diálogo sobre heroínas negras trazendo mulheres negras que fizeram e fazem parte da nossa história. A gente vai ter um novembro recheado de atividades espalhadas nas nossas regiões. 

E aí falando mais do enfrentamento às violências, a Rede de Mulheres Negras do Ceará faz parte da Rede de Mulheres Negras do Nordeste, e a Rede de Mulheres Negras do Nordeste coordena a Jornada Pela Vida das Mulheres Negras de enfrentamento a violência. Então a gente vai ter este ano mais uma vez a jornada, de 21 a 30 de novembro com várias atividades.

Para conferir a programação é só seguir a gente lá no Instagram @mulheresnegrasceara e @mulheresnegrasnonordeste. Vai ter programações presenciais em todos os estados da região Nordeste e atividades virtuais também.

O tema da redação do Enem deste ano foi sobre os desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pelas mulheres no Brasil. Queria que vocês comentassem sobre a escolha desse tema e sobre essa invisibilidade em relação a mulher negra.

Luciana Lindenmeyer - A gente já fala dessa sobrecarga, e é muito complexo esse tema do Enem porque ele não racializa, então é como se fosse o cuidado da mulher, de qualquer mulher, e a gente tem uma máxima, explicando um pouco o feminismo negro, que quando as mulheres brancas alcançarem a igualdade salarial as mulheres negras ainda vão estar limpando as casas das mulheres brancas. Então essa invisibilidade desse cuidado recai muito mais sobre as mulheres negras porque são as mulheres negras que não tem nem como deixar os seus filhos e perdem seus filhos, por exemplo, como o Miguel, que foi morto por uma por uma patroa que não pôde cuidar enquanto a sua, empregada, estava andando com o cachorro dela. Então assim, as mulheres negras são as mais invisibilizadas e mais sobrecarregadas. Foi um tema importante de trazer? Foi um tema importante. Mas é importante racializar a questão. 

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Edição: Camila Garcia