Ceará

celebração e luta

Quilombo do Cumbe celebra resistência e tradição na 9ª Edição da Festa do Mangue

Entre oficinas, cantos e rodas de conversa, o objetivo do Festival é dar coro às vozes da comunidade.

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
Durante o evento, todo mundo dançou coco, aprendeu sobre os caminhos ecológicos e o turismo comunitário que se desenvolve na região. - Foto: Amanda Sobreira

A nona edição do Festival do Mangue reuniu centenas de pessoas no Quilombo do Cumbe, território tradicional, localizado no município de Aracati, litoral leste do estado, a 150 quilômetros de Fortaleza. Durante todo o fim de semana (27 a 29 de outubro), a Associação formada por cerca de 100 famílias que se reconhecem como quilombolas, abriu as portas da comunidade para receber os visitantes em uma clara demonstração de união de forças para a luta coletiva em defesa do território, pela conscientização sobre o manguezal e a importância do ecossistema para a identidade dos moradores.

Entre oficinas, cantos e rodas de conversa, o objetivo do Festival é dar coro às vozes da comunidade. Um ato de coragem para a bióloga Liana Queiroz, que participou do evento pela primeira vez. “Muitas vezes, as pessoas de fora da comunidade são a apresentação da violência. E se abrir para aliados, eu imagino que deve ser bastante desafiador, então me sinto muito honrada de poder adentrar esse território e de testemunhar todo o saber que eles passam para a gente”, relata.

Uma das lideranças mais emblemáticas da região, João do Cumbe, aponta outro viés da luta pelo território. A acadêmica. Hoje, o ativista e educador ambiental acumula títulos de especialista, mestre e doutor com o único objetivo de defender o lugar onde nasceu. O caminho escolhido não foi fácil. Nos primeiros anos de escola no Aracati já sentiu na pele o peso de ser quem é. “Eu tinha vergonha de dizer que era do Cumbe porque eles, na cidade, diziam que a gente fedia a lama,” lembra.

Já na vida adulta, João foi diversas vezes ameaçado por lutar e defender o território. “Tentaram nos calar. Não deixavam a gente falar nos espaços de debate sobre os problemas do Cumbe. Então, fomos buscar apoio na academia e foi muito rico aliar os saberes da terra com os saberes da Universidade”, afirma João.

O festival foi a forma encontrada para fazer das pessoas da cidade, aliadas da luta. “Para que elas conheçam nossa história, nossos costumes, nossa (re)existência e se juntem na defesa pelo território”, avalia o ativista que já esteve na lista do Serviço de Proteção às Vítimas e Testemunhas. Atualmente, quatro quilombolas do Cumbe estão nessa lista.

O Festival

Para participar das oficinas, pequenos barcos se deslocavam pelo Rio Jaguaribe, levando os visitantes para um braço do mangue. Teve quem aprendeu a pescar com tarrafa, a enfiar o braço na lama para catar caranguejo, quem se aventurou a procurar mariscos nas terras cinzentas do Cumbe. Todo mundo dançou coco, aprendeu sobre os caminhos ecológicos e o turismo comunitário que se desenvolve na região. 


A festa tem um processo de fortalecimento da identidade quilombola pesqueira, dos saberes, práticas e mostrar toda a riqueza do território. / Foto: Redes Sociais

Na grande roda que se formou no meio do mangue, mulheres de fibra, marisqueiras e pescadoras falaram sobre a importância da preservação da história e da cultura do Cumbe. Terra defendida com unhas e dentes por Cleomar Ribeiro, a Clea do Cumbe, presidenta da Associação Quilombola. “Essa é a forma que a gente encontrou de se reinventar para não ser engolido pelo sistema capitalista, por esses empreendimentos que querem nos expulsar do território. Somos raízes e sementes. História e ancestralidade. É de uma energia muito grande”, explica a pescadora.

Este ano, a coordenação do evento acredita que cerca de 300 pessoas entre inscritos e não inscritos passaram pelo Cumbe durante o fim de semana. Um enorme desafio para a organização da comunidade. “É muita responsabilidade porque a gente quer receber todo mundo bem. Durante esses três dias vocês são nossa família também, a gente divide tudo que tem e todo ano a busca é para melhorar”, diz Cleomar.

No próximo ano, o festival completa 10 anos. As ideias já começam a surgir, mas é preciso esperar os cenários e contextos de 2024. Isso porque existe a expectativa do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) finalizar o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do Quilombo do Cumbe, paralisado desde 2015. “Precisamos esperar porque os conflitos se intensificam quando o Incra coloca os pés aqui dentro, quando mexe com essa questão da terra. Vamos ver, porque a gente quer fazer uma coisa especial para comemorar essa década. Mas quem sabe não chegou a hora dos visitantes, dos grupos fazerem algo diferente para nós. Fica a ideia”, diz João.


Teve quem aprendeu a pescar com tarrafa, a enfiar o braço na lama para catar caranguejo, quem se aventurou a procurar mariscos nas terras cinzentas do Cumbe. / Foto: Amanda Sobreira

Lutas

Apesar da certificação da comunidade como Quilombo, da Fundação Cultural Palmares, em 2014, outras 68 famílias que vivem na região não se reconhecem como quilombolas. Apenas uma amostra, dos diversos prejuízos visíveis trazidos pela instalação do parque eólico na região, nos anos 2000, que prometia emprego e progresso para a comunidade. 

Na prática, além de dividir o povo e acirrar conflitos internos, privatizou o acesso dos moradores à praia, comprometeu a pesca artesanal na região e resultou em ameaças de morte às lideranças que ousaram cometer o crime de defender seu território. 

As problemáticas que envolvem o território passam ainda pela destruição ambiental causada pela instalação das fazendas produtoras de camarão, ainda na década de 1990, que contaminou os aquíferos e o lençol freático, destruiu a mata ciliar e desidratou os bosques de mangue, comprometendo a cadeia alimentar dos crustáceos comuns no território.

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Edição: Francisco Barbosa