Ceará

CONFLITOS AMBIENTAIS

Populações tradicionais denunciam o desmonte das políticas ambientais promovido por Bolsonaro

No Ceará, povos das águas, florestas e mares são os mais impactados com a desarticulação ambiental do Governo Federal

Brasil de Fato | Fortaleza, CE |
Marisqueiras da Foz do Rio Jaguaribe denunciam racismo ambiental e afirmam importância do Mangue e da Mariscagem.. - Foto: Denise Luz

A política antiambientalista do Governo Bolsonaro deixou o Brasil como centro das preocupações mundiais na pauta ambiental nos últimos anos e nas eleições de 2022. O debate sobre o tema se tornou imprescindível antes do cidadão brasileiro escolher seu candidato à presidência no dia 30 de outubro.

No governo do atual presidente, a área destruída anualmente na Amazônia, quase dobrou entre 2016 e 2021. Durante os governos do PT, a taxa de desmatamento, alta nos três primeiros anos do governo Lula, foi reduzida drasticamente, ao ponto de ter registrado os menores patamares entre 2006 e 2015, especialmente no período em que Dilma Rousseff foi presidente do Brasil. Em 2019, enquanto a Amazônia ardia em chamas, o Nordeste vivia um dos maiores desastres ambientais já registrados nos oceanos, com o derramamento de petróleo cru que atingiu 130 municípios em todos os estados do Nordeste do Brasil, além de Rio de Janeiro e Espírito Santo.

No Ceará, por exemplo, as pescadoras e marisqueiras de Fortim, no litoral leste do estado, viram as vendas de pescado despencaram mais de 50% à época. Sem auxílio federal e sem renda, elas consumiram os mariscos para não sofrerem com a fome, mesmo correndo o risco de contaminação. Meses antes do desastre, em abril, o governo atual extinguiu dezenas de conselhos da administração federal, entre eles, dois comitês que integravam o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Água (PNC), instituído em 2013. Nas primeiras semanas do derramamento, comunidades inteiras entraram nos mares para tirar as manchas com as mãos, recolhendo toneladas de petróleo. Já o Governo Federal demorou mais de 30 dias para agir.


Barqueata de mulheres no Rio Jaguaribe por justiça socioambiental e de gênero, em agosto de 2022, também denunciou a ausência do governo do estado nos conflitos ambientais contra a populações do Ceará. / Foto: Denise Luz

“Temos vários relatos de intoxicação, de gente que passou mal, afinal estamos falando de compostos voláteis que podem causar câncer”, revela o pesquisador da Fiocruz Ceará, Fernando Carneiro, que complementa. “A Fiocruz criou uma sala de situação emergencial, assim como o SUS e o estado do Ceará, porque em um primeiro momento, o Governo Federal demorou para tomar providências. Até hoje não temos certeza das causas e em situações assim, a ação precisa ser rápida, trabalhando via satélite com georreferenciamento para seguir a mancha, mas o sucateamento dos órgãos de ciência e tecnologia e dos órgãos de controle, não permitiu que a gente acompanhasse imagens com melhor definição ou em tempo real”, diz.

O desmonte, no entanto, já era esperado e começou logo nos primeiros anos do governo Bolsonaro, com interferências e destruição das ações de fiscalização e controle dos órgãos ambientais. "Desde a campanha passada que Bolsonaro se colocou contra pautas ambientais e a gente viu que não se tratava de uma retórica. No caso do Ibama, tivemos uma queda drástica no número de servidores, pois muitos se aposentaram e não houve substituições ao longo dos anos. Nós passamos de 1600 fiscais para 500 em todo o Brasil. Também houve militarização do ICmbio, tudo isso trava a fiscalização", analisa o presidente da Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema), Denis Riva.

Historicamente, as comunidades do mar e os povos originários, como indígenas e quilombolas, são invisibilizadas e sofrem com a falta de políticas públicas, mas no governo Bolsonaro os danos foram ainda maiores. Não muito longe das marisqueiras de Fortim, a comunidade quilombola do Cumbe, em Aracati, onde moram cerca de 170 famílias, trava uma guerra desleal contra o avanço dos parques eólicos na região que impacta negativamente a pesca artesanal, a agricultura familiar, o maguezal e, todo o modo de vida na comunidade. Na corrida pelo hidrogênio verde, o capitalismo avança sobre as comunidades sem nenhum tipo de assistência social, ou respeito pelas histórias de vidas resistentes. O governo tem pressa de aprovar, ainda este ano, o marco regulatório da energia offshore (eólica e solar, em alto-mar). Na prática, a instalação desordenada aumentará a exclusão de áreas utilizadas para a pesca e outras atividades econômicas das comunidades tradicionais.

Prainha do Canto Verde

O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), é responsável pela administração da Reserva Extrativista (Resex) da Prainha do Canto Verde, localizada em Beberibe. A unidade de conservação existe desde 2009 para, de acordo com texto publicado no Diário Oficial da União, preservar "os meios de vida, a cultura e garantir a utilização e a conservação dos recursos naturais renováveis tradicionalmente utilizados pela população".  

Na Resex da Prainha do Canto Verde está assentada uma comunidade tradicional de pescadoras e pescadores artesanais que possuem mais de cinquenta anos de luta e resistência contra a especulação imobiliária, em defesa da conservação ambiental e do direito à terra. São 29.804 hectares e apenas 600 hectares da unidade são destinados à ocupação pelos moradores tradicionais das cerca de 400 famílias da área. O restante é a parte marinha destinada à pesca artesanal.


Especulação imobiliária tem ameaçado o modo de vida tradicional na Resex da Prainha. A ausência de fiscalização do Icmbio é sentida pelos moradores. / Karla Vieira/ Arquivo Terramar

No entanto, há quase quatro anos, moradores vivem de incertezas e com a sensação de abandono dando nó na garganta. Mesmo sendo uma reserva historicamente referência no desenvolvimento sustentável, o desmonte do ICMbio atingiu em cheio a base existente na reserva. Com a redução de recursos e de servidores para atuar na preservação, a comunidade se viu cercada de desafios.  "Na verdade, desde o golpe de 2016 para cá, a gente sofre muito, com todos os cortes da área ambiental. Na hora que você tira as condições dos órgãos de fazerem o controle, vão aumentar as intenções de quem quer fazer a coisa errada. Toda a questão da especulação imobiliária está afetando a comunidade, na terra e no mar. Além disso, não houve fiscalização da pesca nos últimos anos porque nem o Ibama e nem o ICmbio daqui tem recursos e as comunidades ficam no prejuízo" adverte José Alberto de Lima, pescador e liderança nascida no Canto Verde. 

Outro ponto relevante apontado por Alberto, é a falta de coleta de dados adequada para gerar políticas públicas estratégicas de fortalecimento e desenvolvimento da pesca artesanal. "Sem dados, qualquer estratégia é na base do acho, não é?" questiona o pescador, que completa, "no geral as comunidades só perdem com esse governo".  

Aprovação recorde para uso de agrotóxicos

A forma como Bolsonaro lidou com os impactos do uso de agrotóxicos no país configura mais um exemplo de como o debate ambiental não interessa a sua gestão. Nos Desde 2019, seu governo aprovou cerca de 1700 novos agrotóxicos para uso no Brasil, incluindo mais de 30 produtos proibidos em vários países do mundo. Além disso, a Lei dos Agrotóxicos, que ficou popularmente conhecida como o PL do Veneno, altera a legislação permitindo que produtos que causam uma série de doenças possam ser liberados no Brasil havendo o que o projeto chama de "limite seguro de exposição".

Na contramão do projeto nacional, o Ceará foi pioneiro e é o único estado do Brasil que proíbe a pulverização de agrotóxicos em seus territórios por meio de aeronaves, prática comum ao agronegócio. A lei de autoria do deputado estadual Renato Roseno (PSOL) está em vigor desde 2019, mas de lá pra cá sofre pressão dos ruralistas para ser considerada inconstitucional. No próximo dia 22 de novembro, está marcado o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) a pedido da Confederação Nacional da Agricultura (CNA). “Desde quando apresentamos o projeto em fevereiro de 2015, o agronegócio tenta impedir a aprovação da lei e foi graças a muita movimentação social, capacidade técnica e articulação que conseguimos aprová-la”, explica Renato Roseno. “Eles tentaram  barrar a lei com três processos e perderam os três. Atualmente, a lei aguarda julgamento no STF e temos dois votos favoráveis, o da relatora, Ministra Cármen Lúcia, e do Ministro Edson Fachin. Já o ministro Gilmar Mendes pediu vistas do processo”, complementa o parlamentar.

Apesar do pioneirismo, agricultores e camponeses no Ceará continuam sofrendo com os impactos da liberação de tantos agrotóxicos no governo Bolsonaro e lutando contra o agronegócio nos municípios. Na Chapada do Apodi, duas frentes disputam modelos de agricultura. De um lado,  comunidades que residem por gerações na região e lutam pela biodiversidade e cuidado com o meio ambiente. Do outro, ruralistas defensores do uso de agrotóxicos e da monocultura.

Os apicultores da região denunciam a morte de centenas de milhares de abelhas e a perda de pelo menos 50 colônias produtivas entre Limoeiro e Tabuleiro do Norte, em virtude do uso excessivo de veneno, por uma das empresas do agronegócio instalada na região. “Quando essa empresa chegou, a gente já morava aqui e já criava abelhas e produzia mel. Eles estão atacando demais nossa cultura e queremos respeito. Queremos que eles fiquem longe das comunidades e se tiverem de expurgar o veneno, façam em horários que não prejudique mais os ciclos das abelhas porque eles estão acabando com as nossas colmeias”, reage o apicultor Simonides Moreira, proprietário de um apiário em Tabuleiro do Norte.


Apicultores denunciam mortandade de abelhas decorrente do uso indiscriminado de agrotóxicos na região da Chapada do Apodi. / Divulgação/ Cáritas Limoeiro

A Cáritas Diocesana de Limoeiro acompanha e dá suporte às comunidades da região. A entidade faz coro aos alertas da vigilância popular sobre os efeitos ocasionados pela expansão da fronteira agrícola do agronegócio do território. “Os camponeses começaram a perceber um índice de desmatamento muito grande principalmente à noite. Nós começamos a estudar e avaliar, mas como estávamos em pandemia, dificultou para fiscalizarmos e facilitou pra empresa que se instalou rapidamente e quando o povo viu, ela já estava em operação. As comunidades passaram a sentir muito cheiro de veneno e viram as áreas onde eles desenvolviam a apicultura e colocavam os animais para o pasto, serem cercadas”, comenta Aline Maia, representante da Cáritas na Região.

Urânio no Ceará

O governo Bolsonaro também trouxe de volta ao Ceará o polêmico projeto da mina de fosfato e urânio na jazida de Itatiaia no município de Santa Quitéria. O projeto prevê uma instalação nuclear, um complexo minero-industrial e uma pilha de fosfogesso e cal onde serão depositados os rejeitos do processo. O investimento previsto de R$ 2,3 bilhões, encontra resistência de movimentos sociais, indígenas e especialistas preocupados com os riscos de contaminação por radiação. Eles também criticam o presidente Jair Bolsonaro por ter a mineração de urânio como uma das suas prioridades. Em 2019, o governo anunciou o plano que prevê a construção de seis usinas nucleares até 2050, num investimento de R$ 30 bilhões. Em setembro, o presidente assinou um decreto que cria uma empresa estatal para atuar na área de energia nuclear, ligada ao Ministério de Minas e Energia.


Visita do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) e da Plataforma Dhesca Brasil para verificar violações decorrentes da exploração mineral de fosfato e urânio no município de Santa Quitéria. / Foto: Francisco Barbosa

Edição: Camila Garcia