Ceará

ENTREVISTA

CE: “Nossa maior preocupação é monitorar a expansão viral para as zonas periféricas”

Segundo o infectologista e assessor do Consórcio Nordeste conversou sobre a expansão da epidemia no Ceará e no Nordeste

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
O Ceará é um dos estados mais impactados com a pandemia do coronavírus - Tchelo Figueredo

O Brasil de Fato Ceará entrevistou o médico infectologista, Antônio Silva Lima Neto. O médico é integrante do Comitê Científico de Enfrentamento ao Coronavírus do Consórcio Nordeste e a situação da epidemia no Ceará. I infectologista é pesquisador e professor da Universidade de Fortaleza (Unifor), atua na Célula de Vigilância Epidemiológica da Secretaria da Saúde de Fortaleza e foi indicado pelo governador Camilo Santana (PT) para assessorar os governadores do nordeste no combate à covid-19 na região.

Brasil de Fato: Quais os objetivos da criação do Comitê Científico do Consórcio Nordeste nesse momento de pandemia?

Antônio Silva Lima Neto: Nesse momento de muita incerteza, de produção de evidência pulverizada, onde você tem que lidar todo dia com decisões de caráter muito emergencial e importantes para a vida das pessoas, para o dia a dia da cidade, com grande impacto econômico e social, além do impacto, evidentemente, na saúde pública e nas vidas envolvidas. Depois houve esse descompasso com a presidência, com essa opção do Presidente da República de não adotar um tom de responsabilidade, de compromisso com a resposta, aconteceu que os governadores ganharam muito protagonismo e foram tomando suas decisões, e essas decisões precisam, realmente, como eles entenderam, de um embasamento científico.

Foi nesse bojo de uma série de questões envolvidas que nasce o Comitê Científico. O Comitê é composto por assessores, ampliado por grupos de trabalhos (GT) que procura diante de desafios que vão dos equipamentos de proteção individual (EPI), que discute, por exemplo, a questão da expansão da rede assistencial, discute a testagem do vírus, a virologia em si, a produção de dados, a informação em tempo real, ou seja, tem vários GTs que procuram dar esse subsídio, sobretudo nos momentos de tomada de decisão muito importantes, como por exemplo, a adoção ou não de máscaras de dupla face ou de material têxtil, por exemplo. Em relação, por exemplo à manutenção das medidas de distanciamento social mais restritiva, existem várias evidências de vários países. Esses GTs e o comitê de especialistas tem essa capacidade e essa missão, assessorar para que as decisões tomadas por esses governadores tenham, realmente, uma base sólida de evidência científica.

BdF: Algumas propostas do Comitê Científico, recém divulgadas, vinculam o envolvimento da sociedade e a movimentação da economia local no combate à covid-19. Qual importância dessa relação?

Antônio: Você tem uma situação que tem uma dependência muito grande, você tem compra de insumos de larga escala que estão sendo canceladas, sobretudo fornecedores chineses, até mesmo por que a demanda é muito grande nesse momento, você tem atitudes mais agressivas de alguns países, que precisam ser confirmadas, os Estados Unidos que atravessa algumas dessas compras. Tem essa tensão geopolítica que, infelizmente, é proporcionada por membros do governo (brasileiro) com o governo da China que pode induzir uma má vontade. Existe a capacidade que a gente tem, como estados de ter dificuldade de ter que pagar isso antecipadamente, o que não é uma prática comum, ou seja, além de tudo isso, existe realmente uma necessidade nesse momento de quarentena que você movimente a economia local. Pode ser na manufatura têxtil, de máscara de uso individual, não a de uso para profissionais de saúde.

Algumas das propostas do comitê vão nessa direção por que a gente entende que nesse momento em que a gente se viu dependente de uma série de questões, que vão desde coisas mais complexas, como alguns equipamentos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) até algumas questões que para a população em geral parecem bem simples, por que nós não produzimos máscaras cirúrgicas mais simples, por exemplo? O Consórcio Nordeste nasce com o intuito da solidariedade aos menos favorecidos e que serão, certamente, os mais impactados no ponto de vista social, econômico e também da saúde pública.

As iniquidades que aparecem nas sociedades em que não há sistema de saúde universal, elas atingem com muito mais força, mesmo com o SUS, a gente entende que, muito provavelmente, o impacto dessa epidemia vai se dar com muito mais intensidade nas áreas menos favorecidas, de alto adensamento onde a transmissão se faz mais fácil, onde você não tem acesso à bens básicos, o isolamento social é muito mais difícil, a densidade de habitantes por domicílio é alta, uma série de questões que o Comitê Científico se importa, se solidariza e tenta encontrar alternativas.

BdF: Quais desafios o consórcio e os estados estão enfrentando na obtenção de material para o enfrentamento ao coronavírus?

Antonio: Esse desafio não é exclusivo do consórcio, antes mesmo dessa questão ser posicionada pelos estados do Nordeste, ela vinha acontecendo com vários estados individualizadamente. São desafios que vão desde a tentativa da garantia, se for uma situação de emergência você pode propor um esforço conjunto para facilitar o transporte desse material da China ou outros países até o Brasil. O desafio hoje é do número de casos produzidos estar se dando em diversos países simultaneamente, e que já esgotaram seus recursos, então é como se você tivesse dentro de um enorme leilão em que as pessoas estão tentando, de todas as maneiras, adquirir esses EPI’s.

BdF: O Ceará é um dos estados em que, segundo o Ministério da Saúde, a fase da epidemia pode estar na transição para fase de aceleração descontrolada, quais medidas devem ser tomadas a partir desse estágio?

Antonio: O Ceará, normalmente, é o estado que registra, no Brasil, o início das infecções respiratórias sazonais, gripe comum, H1N1, influenza e outros vírus normais, isso acontece em meados de fevereiro até meados de março, a sazonalidade das viroses contribui em algumas medidas, mas além disso, existe outros fatores que foram fundamentais. A primeira, é que nós tivemos eventos sociais, um na Bahia e outro aqui no Ceará, com convidados internacionais e do Rio de Janeiro e de São Paulo, e que testaram positivo algum tempo depois do evento e que foram cruciais para o início da propagação do vírus, sobretudo nos bairros de maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade de Fortaleza.

Além desse, foi a criação do HUB internacional de voos, isso aumentou muito o número de voos subitamente, e você tem um fluxo internacional constante e isso pode ter favorecido também. Por fim, tem uma questão que é fundamental, houve um investimento muito grande do estado e do município em testagem. Como nós testamos muito, evidentemente, nós encontramos muitos casos, tanto é verdade que nossa letalidade não é alta. Nesse momento nós estamos com, aproximadamente, 3.6% de letalidade, que é a 12ª letalidade dos estados brasileiros e a segunda ou terceira maior incidência, ou seja, a gente tem muito caso, diante dos casos, nossa letalidade não é tão elevada.

Hoje você tem uma expansão dos casos da região central, dos bairros mais abastados, para as zonas mais periféricas, essa é a maior preocupação da vigilância epidemiológica de Fortaleza, temos a preocupação de monitorar a expansão viral para as zonas periféricas onde você teria um impacto muito maior do ponto de vista social. A gente está com um esforço muito grande de responder à circulação do vírus, já temos uma expansão de leitos razoável, e os desafios vão ser, fundamentalmente, com recursos humanos, de profissionais, por que se você tiver um índice de contaminação alto de profissionais de saúde, sobretudo de médicos e enfermeiros, é difícil recompor as escalas dos hospitais. Essa parte hospitalar está, razoavelmente, resolvida aqui no Ceará, de insumos e de leitos, mas você tem esses dois aspectos que são cruciais hoje no Brasil todo, que é profissional de saúde e disponibilidade total de EPI’s. Neste momento, nós não estamos observando um colapso no sistema de saúde, ainda estamos distantes disso, mas é uma preocupação.

BdF: O que podemos esperar do aplicativo Monitora covid-19?

Antonio: O aplicativo monitora covid-19, é fundamental para monitorar casos. Além disso, dependendo da adesão você também produz muitos dados epidemiológicos que permitem um pouco, tanto espacializar, como temos feito aqui no Ceará e em muitos estados, geocodificar os casos e trabalhar com alguns mecanismos de análise espacial mais robustos, mais sofisticados do ponto de vista analítico, isso também poderá ser possível a partir de dados do aplicativo, mas o mais fundamental é essa questão que o aplicativo vem responder, que é a questão do monitoramento dos pacientes.

BdF: Quais são os próximos passos do Comitê Científico?

Antonio: Um desafio importante para o Comitê é unificar as informações, para a gente poder ter uma base de informações confiável para todo Nordeste, lançamos o site, que é uma tentativa inicial, mas que, com certeza, será um grande desafio a gente acompanhar em tempo real, a progressão da epidemia nos diferentes municípios. Outro passo importante é a gente tentar unificar os protocolos de conduta, além de protocolos relacionados à assistência, em leito de UTI, quais EPI’s são requeridos necessariamente.
Outro passo é como você pode, rapidamente, identificar as necessidades que podem decorrer da progressão da epidemia atingir as áreas mais vulneráveis das cidades, como melhorar e mitigar esse impacto sobre as classes menos favorecidas socioeconomicamente. São passos importantes, sobretudo por que a gente tem um grande objetivo, que é reduzir mortalidade, e em alguma medida também reduzir a transmissão, sem esquecer de fortalecer os mais vulneráveis, promovendo uma recuperação mais rápida do setor socioeconômico quando as medidas de quarentena forem extintas. Esse também certamente será um ponto central do comitê científico, que é sempre está sendo capaz de dizer os momentos mais adequados para você flexibilizar, que por enquanto, não me parecem tão próximos.
 

Edição: Monyse Ravena