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Saudade poderia ser o nome de todas elas, por isso aproveite quem um dia pode partir

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Jorge apresenta de forma profunda a complexidade dos seres humanos e foge dos esteriótipos de que as gay são insaciáveis e só querem saber de sexo. - Rede social
Acho pouco provável que alguém leia esse livro e saia sem se identificar de alguma forma

Pego emprestado um pedaço desse título de um amigo artista, Charles Lessa, que costuma criar títulos que eu gostaria de ter criado. Ele criou saudade poderia ser o nome de todas elas em referência a seus trabalhos, que pra ele de certa forma são como filhos ou como pedaços dele, logo, que ele ama incondicionalmente, independente de quem os possui hoje, inclusive lhe deixando marcas doloridas de saudades. Começo com essa digressão, pois o livro sobre o qual quero falar me remeteu um pouco a essa história, talvez porque a capa é uma obra de Charles ou porquê no início da nossa amizade eu escrevi um poema de amor para um desenho dele.

O segundo livro que li agora ainda na primeira quinzena de janeiro foi 'Inventário dos seus abraços' de Jorge Nogueira. Um livro de contos de amor, mas de amor real, permeado de contradições, choro, desejo, perdas… Gente, só leiam, vale bastante a pena.

A publicação é composta de diversos contos, que no geral são curtos, mas o livro é tão bem escrito e estruturado que você tranquilamente leria em poucas horas numa sentada no seu lugar de descanso ou bem deitado numa rede, como um bom cearense. Tem conto mais romântico, uns mais eróticos, outros sobre dramas e desafios familiares, sobre aceitação, sobre as violências de gênero, desilusão e luto. Da pra refletir sobre muitas dimensões de nossas vidas lendo os contos de Jorge. Eu não li de um vez, preferi ir mergulhando uma braçada após outra, mediadas por pausas para respiro, é a forma como gosto de ler, mas fica ao gosto do freguês.

É um bom livro para pessoas dispostas a enfrentar seus preconceitos sobre relações homoafetivas e o cotidiano de homens gays. É uma boa pedida para presentear pessoas decididamente preconceituosas, mas não como afronta e sim como ferramenta de semeadura de novos olhares, acredito na militância que faz trabalho de base por meio da arte, entendendo-a como uma boa forma de estabelecer diálogos. Tem um dos contos, por exemplo, que gira em torno de uma mãe cristã, bem envolvida na lógica tradicional da igreja de que dois homens se amarem é coisa do diabo, que perde o filho em uma discussão de bar, quando um homem intolerante o questiona sobre ele estar trocando carinho com seu parceiro publicamente e que termina em assassinato, casos infelizmente ainda muito comuns.

Jorge apresenta de forma profunda a complexidade dos seres humanos e foge dos esteriótipos de que as gay são insaciáveis e só querem saber de sexo, claro que existem homens gays que são assim, mas eu diria que essa é uma característica muito marcante das masculinidades no geral, mas isso é conversa pra outra coluna. Seguindo, Jorge apresenta esses casos, mas também apresenta outras, afinal cada pessoa é um universo, temos que abandonar os essencialismos identitários que a sociedade capitalista neoliberal nos impõe.

Vale ressaltar aqui também a reflexão que o autor faz sobre o envelhecimento, sobre como lidar com esse processo natural e a solidão que é tão presente na vida de tantas pessoas. Repito, ele trás muitos pontos para refletirmos, sobre vários estágios e situações de nossas vidas. E digo de nossas vidas, pois independente se você vive relações homo ou heteroafetivas os dilemas do amor, do envelhecimento, da morte, do sofrimento... da vida nos afetam querendo ou não. Acho pouco provável que alguém leia esse livro e saia sem se identificar com alguma situação ou algum dos personagens ali descritos.

Em tempo, é importante festejar o papel da política pública de cultura, pois esse livro foi financiado pelo edital de incentivo as artes do estado, que claro precisa avançar muito e melhorar os valores investidos, ampliar as vagas e tantas outras coisas, mas que mesmo com suas limitações possibilitou o nascimento dessa preciosidade, fomentou a economia criativa do estado, gerou trabalho e renda. Toda uma cadeia foi movimentada: escritor, ilustrador, diagramação, a editora independente Substânsia, bibliotecária, impressão… e poderíamos desdobrar ainda mais essa cadeia produtiva.

Obrigada Jorge, por partilhar esse livro tão potente e emocionante com a gente, espero poder ler outros livros seus, que este livro chegue em mais pessoas e que cada vez mais leiamos, sobretudo autores fora dos grandes circuitos já consagrados.

*Lívio Pereira é trabalhador da cultura e militante social, escreve para o BdF há mais de um ano.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. O título foi retirado de um dos versos da canção que encerra o espetáculo.

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Edição: Camila Garcia