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Festival Unaé, um olhar de quem trabalhou por esse sonho coletivo

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Registro de parte da equipe que trabalhou para que o Festival Unaé pudesse se transformar em realidade. - Samuel Macedo/Centro Cultural do Cariri.
Unaé, que significa sonhar na língua Kariri, foi o mote escolhido pra o mais novo Festival da região

A cultura é ferramenta importante no sonhar de um povo, sobretudo em um país como o Brasil que foi construído sob tantas violências – genocídio indígena e de diversos povos africanos arrancados à força de suas nações para serem escravizados aqui. Um país que é conhecido internacionalmente por ter um povo caloroso, feliz, cordial e que sabe recepcionar como ninguém; e tudo isso é verdade de fato, mas não de forma genérica e homogênea como se vende mundão a fora. Existe também pessoas em nosso país que não sabem receber os outros, que se acham superiores e coisas do tipo, sobretudo contra os brasileiros das regiões Norte e Nordeste.

Pois bem, entres os dias 26 e 29 de outubro, nasceu na cidade de Crato, região do Cariri cearense, o Festival Unaé trazendo em sua história música, teatro, dança, artes visuais, hip hop, poesia, formação, saúde e bem viver. Que escolhe para se nomear um termo indígena que significa sonhar. É parido aos pés da Chapada do Araripe, nessa região que fica bem no miolo do Nordeste, equidistante de todas as suas capitais, região de tantas tradições culturais e nascedouro permanente de tantas expressões artísticas contemporâneas.

Decidi escrever essas palavras, pois como trabalhador da cultura e um trabalhador que ajudou a construir esse Festival, não podia deixar de demarcar o quão grandioso ele foi para o fazer cultural daqui. Mesmo com todas as contradições inerentes a uma atividade institucional, as falhas de uma primeira edição, a inexperiência de alguns agentes trabalhando na construção de algo tão grande pela primeira vez, uma equipe trabalhando bem sobrecarregada, mesmo com todos os poréns e mas o Festival Unaé foi lindo e grandioso, sobretudo pela força das trabalhadoras e dos trabalhadores do Cariri e do Ceará que atuam direta ou indiretamente na cultura do estado.

Sem os corpos e mentes que fazem a limpeza, jardinagem, segurança, infraestrutura e serviços gerais do Centro Cultural do Cariri, tanto a equipe fixa quanto a que se somou nos dias do evento seria impossível fazer ele acontecer. A equipe de alimentação, logística, comunicação, produção, curadoria, direção, receptivo, bilheteria, técnica, ambientação… Fazer um Festival desse porte movimenta a economia local, gerando empregos diretos no ramo da economia criativa, mas também nos serviços de hotelaria, restaurantes, bares, lazer, transporte e turismo em geral.

E talvez mais importante do que todos os empregos diretos e indiretos gerados, que toda a economia movimentada, é a garantia do direito dos cidadãos de acessarem a cultura de qualidade de forma gratuita. Poder garantir ao povo uma programação diversa, potente e marcadamente nordestina. Com a presença de diversos artistas indígenas, negras e negros, que andam por fora do grande circuito comercial.


População caririense doou 3.000 kg de alimentos para o programa Ceará Sem Fome do Governo do Estado do Ceará durante o Festival Unaé. / Samuel Macedo/Centro Cultural do Cariri.

Foi intenso, mas bonito poder trabalhar na produção da exposição Hãhãw: arte indígena antirracista que reúne mais de vinte artistas e coletivos indígenas de todo Brasil. Uma exposição potente com trabalhos em diversas linguagens e pensado totalmente por fora do formato tradicional das artes visuais. Poder ver no palco Mestre Azul os shows de Zé de Guerrilla com o Jaraguá Dub, dos Zabumbeiros Cariris e de João do Crato, Abidoral Jamacaru e Pachelly Jamacaru, mesmo palco por onde passaram Liniker, Luedji Luna, Pandeiro do Mestre, Cátia de França e Don L. Também por onde passaram entre outros os Djs Rapha Anacé e Viúva Negra. Pensar as presenças ilustres que iluminaram o palco Tereza Kariri / Oralidades Urbanas, como Souto MC, Original Elas Kariri, Erivan Produtos do Morro, Kaê Guajajara e Nego Gallo, onde rolaram batalhas de rima, batalhas de slam e comemorações dos 50 anos do hip hop.

Foi bonito de ver também a equipe de intérpretes tanto do próprio Centro Cultural quanto a que se somou para o Festival dando o seu melhor para garantir a acessibilidade dos shows, espetáculos e das exposições. As passagens construídas para que os cadeirantes pudessem transitar entre os espaços de programação, o espaço elevado construídos para que PcDs pudessem assistir aos show no Mestre Azul. Sem falar que um dos artistas convidados foi o Leo Castilho, importante artistas da comunidade surda brasileira, que veio junto com a Erika Mota fazer a interpretação de alguns shows. De fato, podemos dizer que o Festival teve uma preocupação sincera com a acessibilidade.

Não se pode esquecer da solidariedade do povo caririense que espontaneamente, pois não era obrigatório, doou 3 mil quilos de alimentos para o Ceará sem Fome, programa do Governo do Ceará de combate a fome. Alimentos que serão distribuídos entre os cearenses que não tem o que comer.

Mas, como nem tudo são flores, acho importante pensarmos algumas questões. Talvez a primeira seria ter garantido mais mão de obra local na execução das ações do Festival, sobretudo na técnica e produção. Nada contra os trabalhadores de Fortaleza, mas aqui temos mão de obra qualificada e com experiência, e mesmo assim ainda teria espaço para trazer alguns trabalhadores de outros locais. Investir na mão de obra local é garantir a manutenção do mercado local, pois por vezes alguns trabalhadores se vem obrigados a abandonar suas cidades interioranas ou mudar de ramo ou por falta de trabalho ou por as vezes mesmo tendo trabalho as cabeças pensantes priorizarem mão de obra de outros locais, isso não acontece só no Unaé, que diga-se de passagem contratou bastante gente daqui do Cariri, mas com todos os grandes eventos da região.

A acessibilidade foi uma marca bonita, mas precisa avançar, garantir por exemplo numa próxima edição audiodescrição para pessoas cegas das apresentações. Uma ação que pode começar a ser trabalhada nas exposições com audiodescrição das obras e objetos táteis, assim como textos curatoriais em Braille. É importante pensar numa próxima edição um material de divulgação específico em Braille ou que seja bilíngue. A cultura é um canal importante de fomento e educação do povo.

Por fim, refletir sobre os preços praticados pelas empresas de comida e bebida que estiveram no Festival, afinal uma cerveja lata de 350 ml a R$ 8 da mais simples nos faz perguntar para quem está sendo pensando esse Festival tão bonito e grandioso. Se o mote é “bora sonhar o Cariri” que sonhemos o Cariri real e que tragamos sempre pessoas conhecedoras do Cariri para ajudar a pensar as próximas edições que espero que sejam anuais. Desejo que o Unaé abra as portas para que cada macrorregião cearense possa ter um evento desse tipo, como é o Maloca para a região metropolitana de Fortaleza.

*Lívio Pereira é trabalhador da cultura e militante social, escreve para o BdF há mais de um ano.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. O título foi retirado de um dos versos da canção que encerra o espetáculo.

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Edição: Camila Garcia