Rio Grande do Sul

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Nem toda água é rio

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"Acabei de ler Tudo é rio, livro da autora brasileira Carla Madeira. Reconheço, Tudo é rio, para mim que sou feminista, é no mínimo desafiante" - Foto: mariam pessah
Como já disse Flora Tristán, quem deixa passar uma injustiça estará criando um milhar delas

Por que ler um livro que começa xingando a uma mulher e termina com a seguinte frase: “Deus estava de volta”? Qual o contexto? Quando Dalva, a mulher que apanhou feio do marido, também seu neném de dias, se reconcilia e volta para o agressor.

Esta “belezura” é um dos livros mais lidos na atualidade. Mais vendidos e mais propostos nos clubes de leitura.

Pare tudo! Vamos conversar?   

Existe um grande debate na literatura, sobre ser ou não ser panfletária. Eu não sou contra, entendo que a arte é política e nós, mulheres e dissidências, temos que aproveitar todos os espaços. Mas Tudo é rio, o livro de Carla Madeira, é um cruel panfleto da ditadura patriarcal em linguagem poética.

Vou tentar começar de novo.

Acabei de ler Tudo é rio, livro da autora brasileira Carla Madeira. Nos últimos tempos tinha ouvido falar muito dela e eu não a conhecia. Como é lida em muitos clubes de leitura, quis conhecê-la.

Reconheço, Tudo é rio, para mim que sou feminista, é no mínimo desafiante.

Mas vamos lá que eu adoro desafios. E também desabafos.

O livro começa assim: “Puta. Não tem outro nome para Lucy. De profissão ela era puta mesmo. Trabalhava num puteiro, vivia num puteiro. Mas não era puta só por isso. Se só por isso fosse, podia outros nomes mais respeitosos, como meretriz ou prostituta”. Aqui ela começa a flertar e confundir para não parecer tão reaça já de cara, inaugurando o joguinho do sim, mas não, tão típico de sedução “feminina”, contra o qual as feminiStas temos que lutar tanto quando dizemos não é não. Contudo, mais adiante vai chamar as colegas de Lucy de putas, então, todas as meretrizes merecem – segundo ela – esse xingamento? A autora não se decide. 

Continuando.

Na história há aquele casalzinho bem feliz que, como já foi visto tantas vezes, isso é um indicador de que, em breve, algo ruim vai acontecer. Fórmula que se repete algumas vezes ao longo do livro.

Um dia Venâncio espia Dalva e vê ela abrindo a porta e os braços para outro homem ao qual ela demostra o seu amor de amiga. Então, o namorado irrompe com violência, batendo nele e deixando-o no chão, todo ensanguentado.

Os dias se passam e o silêncio se instala. Em lugar de discutir, de sentar a conversar, ele (ou ela, a autora?) não encontra melhor saída que a de enviar um anel e um bilhete com a proposta de casamento. Que lugar comum do patriarcado! Deixar ela feliz assim? Sim, ela aceita. Ao longo do livro, o silêncio vai ser um valor muito forte.

Então, quando uma vez casadxs, ele tem outro ataque de ciúmes que é pior ainda, “Ele arrancou o menino dos braços dela e jogou longe, bateu em Dalva, bateu, bateu. Espancou”. Primeiro, mesmo ela tendo apanhado muito, nunca mais vê o filho? Até vir acontecer um Deus ex maquina que salva ele no final da história. É muito inverossímil, mas tudo bem, faz parte de um livro ruim. Contudo, me interessa ver aqui a construção de um feminicídio na certa. É matemático. Primeira vez Venâncio fica cego e bate no amigo. Nada acontece, disso não se fala. Segunda vez, ele fica mais cego ainda e bate nela e no menino. Deus está de volta e o casal se reconcilia. E vejam esta, antes do final de fadas, tem um capítulo no qual o agressor se mostra arrependido e diz que se perdoa. Oi? Nós já ouvimos isso muitas vezes, né? É só sentar e esperar a terceira vez, ou faremos algo para deter o agressor?

Fico pasma de ver que tipo de livros estão sendo lidos no 5º país em violência contra as mulheres. Eu me pergunto e pergunto a vocês, quando a gente propõe ler literatura de autoria de mulheres, vale tudo? Ou, pensando de outra forma, por que, quando temos o poder da palavra, nós, escritoras, não tentamos avançar, em lugar de regredir? Por que quando temos o poder da leitura, da crítica, não tentamos parar e conversar e preencher todos esses silêncios que Madeira deixa como um valor?

Um valor que em breve pegará fogo, né?

Nem tudo é rio nesta vida. Existem mares salgados que só conseguiremos dessalgá-los com a presença de palavras. Também escrevendo e conversando em clubes de leituras, em grupos de literatura, feministas, de amigas. Por favor, não passemos o pano na violência.

Como já disse Flora Tristán, na União operária, livro de 1843, quem deixa passar uma injustiça estará criando um milhar delas.

* mariam pessah : ARTivista feminista, escritora e poeta, autora de Meu último poema, 2023;  Em breve tudo se desacomodará, 2022; organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre desde 2017 e coordenadora da Oficina de escrita e escuta feminiSta. 

** Este é um artigo de opinião. A visão dx autorx não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko