Ceará

NEGLIGÊNCIA MÉDICA

Dor em Iguatu: famílias denunciam hospital regional por negligência médica

Mães que perderam seus filhos no HRI reclamam da falta de insumos e profissionais de saúde

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
O Hospital Regional de Iguatu, que um dia foi um símbolo de esperança e cuidado para a população local e região, agora é alvo de críticas e questionamentos. - Arquivo Pessoal

O dia 1º de outubro está marcado na vida de duas mães, moradoras de Iguatu, município localizado a 440 quilômetros de Fortaleza, no Centro Sul do Ceará. Enquanto Maria dava entrada no Hospital Regional de Iguatu (HRI), com o filho Álvaro de 14 anos, Francisca chorava a dor de perder o pequeno Gael, que ainda não tinha quatro meses de vida. Três dias depois, no dia 4 de outubro, Álvaro também veio a óbito. As duas acreditam que perderam os filhos por negligência médica.

De acordo com Francisca, Gael nasceu saudável, em um parto tranquilo, em junho do ano passado e tudo estava bem até o dia 16 de agosto, quando o bebê deu entrada no Hospital pela primeira vez, apresentando vômito e cólicas. Francisca conta que após exames clínicos na pediatria, a médica diagnosticou Gael com refluxo e intolerância à lactose, passou a medicação e indicou à mãe produtos que ela podia comer, porque Gael só mamava.


Francisca teve uma gravidez tranquila à espera do filho Gael. / Arquivo Pessoal

Como as cólicas persistiram por dez dias, Francisca pediu consulta com a pediatra na Unidade de Atenção Primária à Saúde da Família e a mesma médica que a atendeu no Hospital Regional de Iguatu a atendeu no posto médico. Lá foi orientada a continuar com a medicação e fazer um ultrassom na criança. O exame não deu alterações e Francisca continuou a medicação para gases.

No dia 18 de setembro Gael vomitou três vezes e Francisca voltou ao Hospital Regional de Iguatu. Segundo o médico que atendeu a família, Gael estava desidratado e começou a tomar soro, até que pouco tempo depois recebeu alta com uma medicação prescrita e carimbada por outro médico que não havia atendido a criança naquele dia. A mãe, preocupada, pagou uma consulta particular e descobriu que Gael tinha Alergia à Proteína do Leite (APLV), uma condição diferente da diagnosticada no HRI. A família iniciou o tratamento na esperança de que tudo terminaria bem, mas no dia 29 de setembro, Gael voltou a vomitar, a apresentar cansaço e eles retornaram ao hospital.

“Cheguei no hospital com minha prima e o Gael e depois de contar para o médico o histórico, ele disse que meu bebê não tinha nada. Pedi para que ele escutasse os pulmões dele para saber porque ele estava cansado e ele sem gostar, escutou e repetiu que ele não tinha nada”, relata Francisca Silvino, mãe de Gael. Ela decidiu esperar a mesma médica que a atendeu na primeira consulta e no posto médico. “Pedi o encaminhamento para a médica da pediatria e o primeiro médico chegou a me dizer que eu pagasse por uma consulta se quisesse algo mais detalhado. Teve um momento que ele sinalizou para eu me calar”, denuncia a mãe.


Gael morreu no Hospital Regional de Iguatu no dia 1° de outubro. A família acredita em negligência médica. / Arquivo Pessoal

Quando a médica chegou e estava examinando Gael, a criança engasgou e precisou ir para o oxigênio por conta da saturação baixa (76%) e a médica internou Gael para realizar alguns exames. Na mesma noite, a criança passou a ter febre e ficou muito agitada. A família relata que durante a nebulização, eles perceberam que a criança estava ficando gelada e com as extremidades roxas. As enfermeiras chamaram os médicos e a criança foi levada. “Ficamos lá no quarto sem saber para onde levaram meu filho e não sabíamos o que de fato estava acontecendo. Minha irmã insistia para a enfermeira falar a verdade, dizer o que estava acontecendo e ela disse que o médico passaria depois para conversar”, relata Francisca.

Mais tarde na mesma noite, o médico conversou com a família e disse que o estado de saúde do Gael era grave. Ele havia tido duas paradas cardiorrespiratórias e estava entubado. O profissional de saúde disse que estava tentando uma vaga no sistema, mas ela estava sendo negada, situação que se estendeu durante a manhã seguinte. “No dia 30, eu e meu esposo fomos na assistência social pedir para que transferissem Gael porque o caso dele era muito grave e nenhum hospital mandaria ele de volta, mas o pedido foi negado pela assistente social que estava de plantão no dia”, diz Francisca.

A família conseguiu a vaga para o Hospital e Maternidade São Francisco de Assis, no Crato, a duas horas de Iguatu. Gael foi internado pouco depois das 18 horas e o pai foi autorizado a dormir no hospital. Francisca voltou pra casa pra descansar e às cinco horas da manhã do dia 1º de outubro, recebeu a notícia que tanto temia. “Eu só quero saber o que aconteceu com meu anjinho. Eu não vejo mais sentido em nada, estou destruída. O que eu mais quero do fundo do meu coração é saber o que aconteceu com meu anjinho e viver meu luto em paz”.

Caso Álvaro

É essa mesma dor que toma conta da vida de Maria Lima, que citamos no início da reportagem. Ela é mãe de Álvaro, um adolescente de 14 anos com uma vida inteira pela frente. Em março do ano passado, a família descobriu que o adolescente tinha uma bolha de ar no pulmão esquerdo e depois de muitas consultas e exames ele foi encaminhado ao médico especialista, um cirurgião torácico, no Hospital do Coração em Messejana. Foram longos meses de tratamento até a cirurgia acontecer no dia 17 de agosto.


A família de Álvaro, de 14 anos, também acredita que o adolescente morreu por negligência médica do HRI. / Arquivo Pessoal

O procedimento foi um sucesso e Álvaro foi monitorado pela equipe até que recebeu alta para realizar atividades simples, mantendo cuidados no dia a dia. Tudo parecia ter dado certo até que no dia 1º de outubro, Álvaro sentiu uma forte dor no estômago. “Eu corri para o Hospital Regional de Iguatu e contei o histórico ao médico que nos atendeu. Ele disse que não tinha relação com a cirurgia, passou a medicação e nos mandou pra casa, mas ele não ficou bem e voltamos ao hospital”, conta Maria.

A medicação foi repetida por outro profissional de saúde que atendeu Álvaro no consultório médico, mas a dor do adolescente não passava. “Ele passou um remédio mais forte e a gente teve que esperar até o outro dia para fazer o raio-x, mas de manhã, ele ainda estava com as mesmas dores”, ressalta a mãe do adolescente.

Maria conta que, como a internação aconteceu no dia da eleição, eles tiveram que esperar o profissional responsável por fazer o raio-x votar pois não havia outro funcionário para substituí-lo. O exame foi realizado por volta de 11 horas e Álvaro também fez uma tomografia. Enquanto aguardava os resultados, Álvaro continuava sentindo fortes dores e não conseguia se alimentar. Quando o laudo chegou, no fim da tarde, o médico deu o diagnóstico: hérnia diafragmática. “O médico disse que o estômago dele tinha ocupado o mesmo espaço do pulmão operado. Que ia passar uma sonda em aspiração para ver se o estômago voltava ao lugar, se não, era caso de cirurgia. Eu perguntei se a cirurgia era feita lá e ele disse que sim”, diz Maria.

Ainda de acordo com a mãe de Álvaro, a sonda foi colocada no início da noite e o procedimento foi muito doloroso para o adolescente. Álvaro estava com febre e apresentava manchas vermelhas no corpo, com soluços persistentes. “Meu filho estava vomitando um líquido escuro a todo momento. O médico viu que a sonda não estava funcionando e mesmo assim saiu do quarto”.


A família e os amigos de Álvaro se manifestam contra a administração do HRI. / Arquivo Pessoal

A noite foi de terror para Maria que via o filho se contorcendo de dor e a medicação sem fazer efeito. Desesperada, ela ia a todo instante chamar a atenção dos profissionais de saúde, até que Álvaro ficou cansado demais. “O médico chegou pra mim e disse que apesar de o hospital não ter suporte para a cirurgia, ia operar a hérnia pois o estado dele era gravíssimo e ele não aguentaria a transferência. Mas ele era pra ter sido transferido assim que a gente chegou. O médico do Hospital do Coração disse que a gente mandasse ele pra lá na vaga zero, que eu não esperasse. Eu tentei essa transferência, mas eles operaram meu filho e mataram ele”.

Justiça

Maria e Francisca se uniram na dor e encontraram outras famílias que também denunciam o Hospital Regional de Iguatu por falta de insumos e profissionais de saúde. Uma outra mãe, que não quis se identificar, também acredita que o filho foi morto por negligência do hospital. Juntas, elas estão criando uma Associação como forma de pressionar o poder público sobre a situação do Hospital que se arrasta há anos. Entre janeiro e março de 2017, dez bebês morreram no HRI.

Francisca foi ao Ministério Público do Ceará (MPCE) e denunciou a falta de pediatras no hospital. Na semana passada ela foi ouvida pela 2º Promotoria de Justiça de Iguatu. Ela também registrou Boletim de Ocorrência da Delegacia da cidade e solicitou investigação do MPCE para averiguar as causas da morte de Gael. Em nota, o Ministério Público, por meio da 8ª Promotoria de Justiça de Iguatu, informou que está acompanhando o caso e solicitou que a Delegacia Regional de Iguatu instaurasse Inquérito Policial. Agora, o MPCE espera  o resultado das investigações para, posteriormente, manifestar-se formalmente sobre o caso.


As famílias estão criando uma Associação para fortalecer a busca por justiça. / Arquivo Pessoal

Ainda sobre o caso de Gael, a Polícia Civil também se manifestou. Disse que cumpriu um mandado de busca e apreensão com o objetivo de elucidar as circunstâncias da morte do bebê. Foram apreendidos pela Delegacia Regional de Iguatu, que investiga o caso, documentos referentes ao entendimento e intervenções médicas realizadas e que continua fazendo diligências e oitivas visando elucidar o caso.

Instabilidade política

O deputado estadual Renato Roseno, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa esteve em Iguatu e conversou com as famílias sobre as diversas denúncias relacionadas ao hospital. Em entrevista ao BDF, o parlamentar informou que o mandato está acompanhando o caso e que conversou com a secretária de saúde de Iguatu, Marleuda Gonçalves. Ao parlamentar, ela disse que o Hospital Regional de Iguatu estava passando por uma auditoria interna. “Nós também acionamos o Ministério Público para acompanhar esse caso porque são muitos relatos de má administração do hospital e é preciso lembrar que o município de Iguatu passa por uma instabilidade na gestão pública, com três prefeitos nos últimos três anos e isso está afetando as políticas públicas”, ressaltou o deputado.

O Brasil de Fato entrou em contato com a assessoria de comunicação da Prefeitura de Iguatu para saber da condução da gestão municipal sobre os casos denunciados, mas não houve resposta. Ednaldo Lavor (PSD) e Franklin Bezerra (PSDB), prefeito e vice-prefeito de Iguatu reeleitos em 2020, foram cassados por abuso do poder, pelo desvio de finalidade do uso da mídia institucional da Prefeitura, ou seja, eles usaram as redes sociais da Prefeitura para fazer campanha pela reeleição.


Francisca e Maria buscam respostas para a morte dos filhos no HRI. / Arquivo Pessoal

Com o afastamento, quem assumiu a gestão do município foi a mulher de Ednaldo, na época, presidente da Câmara Municipal de Iguatu, Eliane Braz (PSD). A partir de 1º de janeiro, com as novas eleições da Câmara Municipal, o vereador Ronald Bezerra (Republicanos), novo presidente, assumiu como prefeito interino e segue no cargo. 

No dia 13 de março, a Procuradoria Geral Eleitoral (PGE) deu parecer favorável ao retorno de Ednaldo Lavor e de Franklin Bezerra aos cargos de prefeito e vice-prefeito, respectivamente. Entretanto, os políticos não devem voltar de imediato aos cargos. O recurso segue ainda para o voto da relatora, a ministra Cármen Lúcia, que já havia se posicionado contra o retorno dos gestores aos cargos. É bom lembrar que na decisão inicial foi declarada a inelegibilidade de Ednaldo de Lavor Couras, por 8 anos, a partir das eleições de 2020. 

Em meio ao trâmite, o prefeito interino continua no cargo, no entanto, não comentou as denúncias envolvendo a saúde do município de Iguatu.

Atraso de salário e falta de estrutura 

O caos na saúde pública de Iguatu inclui o atraso no salário de servidores e profissionais contratados por cooperativas. De acordo com os trabalhadores, desde setembro os atrasos são constantes. O  Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Iguatu-SPUMI, realizou uma assembleia para debater o caso com a Secretaria de Saúde. Uma paralisação pode ocorrer, caso os pagamentos não sejam regularizados até o dia 10 de abril.

Um colaborador que não quis se identificar, relata a precarização do trabalho enfrentado por profissionais da enfermagem, médicos e dentistas que trabalham no Hospital. "Falta algodão, luva, até dipirona, a gente já precisou pedir em outra instituição. Nas reuniões, argumentam que o governo não está fazendo o repasse corretamente e por isso tudo está atrasado", diz.

O Brasil de Fato entrou em contato com a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa). Em nota, a Secretaria informou que repassa recursos do Tesouro Estadual para o Fundo Municipal de Saúde de Iguatu em duas modalidades. A primeira como incentivo de custeio do Hospital Regional de Iguatu por meio da Política de Incentivo Hospitalar (PIH), tendo em vista que a unidade é classificada no processo de regionalização do Estado como hospital polo.

Em 2022, foram destinados R$ 12 milhões para Cirurgia Geral, Obstetrícia, Clínica Médica, Pediátrica, Neonatal, Traumato-ortopédica, Anestesiológica, Saúde Mental e Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Adulto. A segunda modalidade é referente a recursos de convênios de custeio para realização de procedimentos médico-hospitalares, beneficiando usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). O último contrato, de R$ 3 milhões, foi definido em junho de 2022 para executar cirurgias. De acordo com a nota enviada pela Sesa, este repasse segue calendário de pagamento conforme cronograma de desembolso do Plano de Trabalho previamente aprovado.

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Edição: Camila Garcia