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São Sebastião é uma fotografia da vontade de destruir

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"A calamidade no Litoral Norte de São Paulo é mais um alerta sobre a situação de risco social e cívico na qual vive o Brasil" - Rovena Rosa/Agência Brasil
Há muito trabalho pela frente para reconstruir a civilidade

A calamidade no Litoral Norte de São Paulo é mais um alerta sobre a situação de risco social e cívico na qual vive o Brasil. A volumosa chuva caída durante o Carnaval novamente mostrou que os castigos climáticos somados à incúria, desprezo e vilania, nos governos e fora deles, são desastres potencializados pela sociedade de classe e seu poder. A intensa e concentrada chuva atingiu centenas de habitações, a maioria de baixa renda, mais de 65 mortos confirmados, mais de 30 pessoas desaparecidas e quase 5000 desabrigadas ou desalojadas.

Em fevereiro de 2022, 241 pessoas perderam a vida em Petrópolis, RJ, também em decorrência de enxurrada que impactou assentamentos humanos em áreas de risco. Poderíamos citar outras tragédias derivadas de inundações e trombas d’água e agregar ainda as vítimas das estiagens, fome, abandono, violência e invasões de áreas protegidas, como a Terra Yanomami. O número é, miseravelmente, inaceitável.

Mas há um fator que potencializou esta e as demais tragédias. A política de austeridade de Michel Temer e Jair Bolsonaro, nos seis desastrosos anos de seus governos quando foram retirados bilhões de reais do amplo leque de políticas públicas que vai das universidades ao Sistema Único de Saúde, passando pela política de habitação e infraestrutura urbana. Em especial o corte de recursos para a defesa civil, o sistema federativo responsável pela prevenção e atendimento emergencial contra desastres e crises, aumentou a dramaticidade dos episódios.

Uma elucidativa matéria do Brasil de Fato demonstra que o orçamento do Ministério do Desenvolvimento Regional e da Defesa Civil para 2023 teve um corte de 93% dos recursos em relação ao período anterior. Especificamente, nas dotações destinadas à contenção de encostas a redução foi de 94%. Para habitação o corte foi da mesma magnitude: o orçamento de Bolsonaro para 2023 previa R$ 34,1 milhões, 95% menor do que o empenhado em 2022. A vilanagem se estende a mais cortes em outras áreas sensíveis para a sociedade.

Sabemos que a dita austeridade é uma estratégia política. Trata-se de uma medida decisiva para a apropriação de renda pública em mãos privadas, as mãos dos super-ricos do sistema financeiro. Para o que a autonomia do Banco Central, a alta taxa de juros e o teto de gastos são fundamentais. Os governos Temer e Bolsonaro aprofundaram tal estratégia. “Passaram a boiada” rentista aproveitando-se da onda reacionária que ascendeu ao governo a partir do golpe do impeachment.

Contudo, essa expropriação dos fundos públicos destinados às políticas de proteção social e desenvolvimento tomou, no governo Bolsonaro, uma dimensão ideológica mais radicalizada ainda. O que tornou este governo um período de violência social sem pudor ou dissimulação.

Bolsonaro foi um governo de hegemonia reacionária, uma frente ideológica movida contra as conquistas sociais da modernidade política brasileira, no sentido de recuperar os padrões sociais e políticos do passado autoritário. Por isso a destruição de tudo que se refere ou se referencia na evolução obtida nos períodos de governos progressistas era basilar nas ações do bolsonarismo no governo. Trata-se de uma intenção não um acaso ou efeito colateral.

Retirar recursos de políticas sociais e de políticas de proteção social não é só fazer poupança para alimentar o mercado financeiro, mas também uma espécie de carga de cavalaria contra o que seria a decadência do ocidente, como dissertou Ernesto Araújo[1], ex-chanceler de Bolsonaro. A destruição do legado do progressismo incluía destruir tudo que se relacionava a dividir renda, reconhecer o pensamento científico, ampliar os beneficiários de política de Estado, com o objetivo de restaurar os valores tradicionais da sociedade brasileira.

Bolsonaro foi um governo que arremeteu contra a civilidade, ainda precária, que se havia construído no país. Abandonar as pessoas à própria sorte - como o fez durante a pandemia da Covid-19 ou com as nações indígenas e com os atingidos por calamidades - não foi ato de imperícia ou incapacidade. Foi ideologia regressiva. Um meticuloso e brutal plano de extermínio de direitos e de sujeitos. Uma operação para voltar ao passado.

Há muito trabalho pela frente para reconstruir a civilidade. A começar pelos atingidos e vitimados pela política reacionária, tomada pela vontade de destruir do reacionarismo. Reorientar os investimentos públicos, estender as mãos às principais vítimas da regressão são decisivos e primordiais. Mas será necessário disputar os corações e mentes da sociedade brasileira para que se asfixie a extrema direita no país.

[1] ARAUJO, Ernesto Henrique Fraga. Trump e o Ocidente In: Cadernos de Política Exterior. Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais. Volume.3, número.6, dezembro de 2017. Brasília: FUNAG, 2015.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko