A importância de falar sobre o luto como um papel político para que os nossos nunca sejam esquecidos

Retornar, retomar e refazer são algumas palavras que têm feito parte desse momento da minha vida. Após a doença de meu pai a escrita ficou, cada vez mais, distante. Só escrevia palavras ou frases básicas que pareciam até os 140 caracteres do twitter – ou pelo menos a versão antiga do número de palavras do aplicativo – para inserir em algum texto rápido, ou postagem obrigatória em alguma produção. 

Fiquei sem condições, mas, não saía da minha cabeça a vontade de escrever, pois, sempre digo e repito que escrever é um ato político, uma responsabilidade, seja como jornalista, que tem o dever da profissão de informar e discutir temas importantes para a sociedade, ou seja, como mulher negra, que tem a tarefa de escrever para denunciar as desigualdades e refletir sobre as questões raciais que fazem parte da caminhada da população negra.

No entanto, tudo ficou para trás quando tive que ajudar nos cuidados com ele, inclusive a escrita, que foi deixada de lado para dar lugar as consultas e medicações, pois, a morte parecia muito próxima. Tão próxima que numa certa manhã, enquanto organizava seus remédios, percebi sua respiração longa e já não se contorcia de dores. Peguei na sua mão e foi quando presenciei o seu último suspiro na terra. Enfim, a morte chegou e com ela o segundo momento: o luto. Um tema tão delicado e tão permanente em nossa sociedade, um assunto que precisa ser sentido e refletido. 

O luto como tema tem sido recorrente nos últimos anos com a morte milhares de pessoas no mundo em decorrência da Covid-19. Contudo, essa questão já faz parte da vida de grupos sociais historicamente excluídos, por anos e séculos, como é o luto para a população negra, para as mulheres, para a população LGBTQIA+, dentre outras populações. 

Neste momento, me chegam alguns questionamentos apresentados no livro de Judith Butler quando pergunta: será que essas vidas são passiveis de luto? Essas vidas são merecedoras do luto social? Não à toa a frase “vidas negras importam” que tem aparecido com tanta frequência nas redes sociais, matérias jornalísticas e manifestações em diversos lugares do mundo, para dizer que essas vidas também são importantes e que precisam ser protegidas e respeitadas. 

Essas vidas têm importância, sim! A vida do meu pai, um homem negro, importa. Esse homem que não teve a oportunidade de estudar, que sempre trabalhou na construção civil – como pedreiro – e vivenciou momentos dolorosos que fazem parte da vida de uma pessoa negra. Pois, o racismo marca cada um e cada uma, seja ao contar dos apelidos racistas, relatos vividos, ou das falas preconceituosas de um, ou outro da família, ou fora dela. 

Depoimentos que compreendi quando me percebi uma mulher negra e que me fizeram entender que algumas vidas são passiveis de cuidado e outras não, algumas vidas são passiveis de luto e outras não. Vidas precárias que não têm direitos, respeito ou cidadania, vidas precárias que não têm permissão de viverem ou morrem com dignidade.

Assim foi também com meu pai, mesmo buscando formas de se esquivar do racismo, o racismo não se esquivou dele, nenhum instante, e ele teve de viver e sentir o seu peso. Ele que teve de aguentar a dor das exclusões, da retirada de seus direitos, e no fim, os cuidados tardios, diante do pouco acesso a uma saúde de qualidade.

Por isso, a importância de falar sobre o luto como um papel político para que os nossos nunca sejam esquecidos e a necessidade de uma escrita que tenha como tarefa, promover questionamentos sobre a sociedade ao meu redor. Que a memória de meu pai seja a força motora para transformar o meu luto em luta por nossos ancestrais que vivem e viverão para sempre entre nós. 
 

Edição: Camila Garcia