Ceará

Uso da fé

Eles dizem defender valores cristãos, mas votam pela retirada de direitos e propagam fake news

Apoiadores de Bolsonaro no Ceará evocam religião enquanto votam pela retirada de direitos e difundem preconceitos

Brasil de Fato | Fortaleza, CE |
Padres redentoristas chamam atenção para "a utilização da religião como manipulação da realidade e para impor o medo e a exclusão dos pobres". - Divulgação

Durante a visita de Bolsonaro e sua comitiva ao Ceará foi possível observar a constante presença dos seus fiéis apoiadores e daqueles que se aproximaram depois da definição política do primeiro turno das eleições no estado. Em meio à polêmica do uso da religião e do debate sobre corrupção é importante lembrar que apesar do que dizem defender, muitas contradições podem ser apontadas nos discursos dos apadrinhados do atual presidente.

Na terra onde nasceu Dom Hélder Câmara e Antônio Conselheiro, a onda bolsonarista, conservadora e religiosa tem como representantes a deputada estadual reeleita Dra. Silvana (PL) e seu esposo reeleito deputado federal Dr. Jaziel (PL). Na Câmara Federal, a atuação política do médico, que também é pastor, tem histórico de votações e falas polêmicas. Em maio, ao declarar seu voto a favor do projeto que regulamenta o ensino domicilar (homeschooling), o parlamentar ofendeu a comunidade escolar ao dizer que “escolas tendem a doutrinação, aborto e erotização das crianças”. 

De acordo com a plataforma “quem foi quem”, promovida pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), que mostra a atuação dos parlamentares, o deputado votou contra os interesses dos trabalhadores e trabalhadoras em todos os projetos aprovados no Congresso Nacional. Entre eles, a reforma da Previdência, a flexibilização das leis trabalhistas, a regulamentação do trabalho aos domingos e feriados sem hora extra. Ele também votou a favor de projetos polêmicos como o voto impresso, a privatização dos correios, a flexibilização de licenciamento ambiental e a liberação de agrotóxicos.

Já na Assembleia Legislativa do Ceará, a deputada Dra. Silvana (PL) informa que sua atuação política tem como meta “a defesa à inviolabilidade de princípios divinos, como família da forma original da sua instituição e a defesa da vida,” como consta no site oficial da Assembleia Legislativa do Ceará. No Ceará, é de sua autoria o polêmico projeto (retirado de pauta) que criaria o programa  “Escola sem Partido” na rede estadual de ensino, proibindo docentes de veicular conteúdo, ou promover atividades “que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais, ou responsáveis pelos estudantes”. O programa fere o artigo 5º da Constituição Federal que garante a liberdade de expressão, enquanto o artigo 206 garante a liberdade de ensino.

A parlamentar também está constantemente envolvida em polêmicas sobre o tema da suposta “ideologia de gênero”. Tramita na Assembleia, por exemplo, o projeto de lei (Nº 555/2021) de sua autoria, que visa proibir o uso de banheiros compartilhados nas escolas estaduais. Em 2021, durante uma votação sobre políticas públicas para melhorar o atendimento nos Cras (Centros de Referência da Assistência Social), a deputada entrou em mais um embate ideológico ao criticar uma emenda parlamentar de autora da deputada Augusta Brito (PT) que adicionava aos objetivos do Cras “estimular o fortalecimento da cultura do diálogo no combate a todas as formas de violência, de preconceito e discriminação”. Durante discussão no plenário, a deputada criticou o uso da palavra discriminação, alegando que havia uma tentativa de levar “militância ideológica ao Cras e  comparou a homossexualidade ao crime de roubo. “Para mim, prostituição, bebedices, embriaguez, mentira, roubo e homossexualismo, lesbianismo... é pecado”, afirmou à época, usando o termo “homossexualismo”, abolido das discussões pois o sufixo ismo só é usado quando que trata de doenças ou anormalidades.

Quem também se apresenta como defensor da família e dos bons costumes é o deputado estadual André Fernandes (PL), coordenador da campanha de Bolsonaro no estado. Parlamentar mais votado para a Assembleia Legislativa do Ceará em 2018, André repetiu a votação expressiva e entrou para a Câmara Federal com mais de 229 mil votos, sendo o parlamentar mais votado do estado. Com apenas 24 anos, o parlamentar diz que luta pela redução de impostos e contra a ideologia de gênero, do aborto e das drogas. Mas André coleciona polêmicas e representações contra o seu mandato, por injúrias, calúnias, difamações e uso das redes sociais para espalhar fake news.

No começo deste ano, o Ministério Público do Ceará trouxe à tona uma denúncia contra o deputado por manter uma funcionária fantasma na Alece.  Durante a pandemia da Covid-19, André usou as redes sociais para descredibilizar as ações do governo do Ceará na luta contra as mortes causadas pelo coronavírus. Em 2020, ele teve seu mandato suspenso por 30 dias por quebra de decoro parlamentar, após acusar, sem provas, o deputado Nezinho Farias (PDT) de integrar facção criminosa. Em 2019, o parlamentar foi obrigado a fazer uma retratação pública em seu Twitter, por divulgar informações falsas, após afirmar que o então governador Camilo Santana (PT) não teria aderido ao programa de militarização do ensino público. 

Já em 2021, André Fernandes foi condenado a pagar indenização de R$ 50 mil à jornalista Patrícia Mello, depois de publicar nas redes sociais ataques machistas contra a repórter da Folha de São Paulo. No mesmo ano, o Ministério Público do Estado do Ceará ingressou com uma ação contra André Fernandes por nepotismo, após a contratação de dois parentes para cargos no seu gabinete na Assembleia Legislativa. Em acordo com o MPCE, ele chegou a pagar  R$ 1 mil de multa.

O deputado federal Capitão Wagner (UB), que perdeu a disputa para o governo do estado no primeiro turno, também declarou voto ao presidente Bolsonaro. Apesar de se manter alinhado ao chefe do executivo, Wagner não havia declarado apoio abertamente, pois seu partido tinha a senadora Soraia Thronicke como candidata à presidência.

Crescem as críticas de religiosos pelo mau uso da fé

Em busca de melhorar a votação no Nordeste, o presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) jogou peso nas atividades de campanha na região. Depois de passar pelo Pernambuco e Piauí, foi a vez de Fortaleza receber a sua comitiva no último fim de semana. Na sexta-feira (14), durante o dia, a primeira-dama Michelle Bolsonaro e a senadora eleita Damares Alves participaram de um ato com as mulheres em um hotel na Praia de Iracema. A noite elas estiveram na Igreja Apostólica Novidade de Vida em um ato religioso intitulado como “grande clamor pelo Brasil”.

Michelle faz parte da Igreja Batista Atitude de Brasília. Fiel fervorosa, foi ela quem apresentou a religião ao presidente, que se reconhece como católico mas já foi batizado no rio Jordão pelo pastor Everaldo, preso em 2020 por desviar recursos de combate a Covid no Rio de Janeiro.  A religião é usada como plataforma política das campanhas de Jair Bolsonaro. Em 2018, ele foi eleito com votação expressiva entre os evangélicos das mais diversas igrejas. 

No entanto, uma ampla frente de resistência se formou nos últimos quatro anos com pastores e líderes evangélicos de correntes progressistas, em defesa da pluralidade e da convicção de que jesus sempre está do lado do oprimido. "É interessante como a leitura fundamentalista da Bíblia, capturada durante o processo eleitoral, é enviesada, selecionada. É um uso e abuso da Bíblia. É impor um tipo único de interpretação da Bíblia. Qualquer pessoa que leia os Evangelhos perceberá que a pauta de Jesus de Nazaré era outra. O tema principal de sua mensagem era o Reinado de Deus, em oposição ao Império Romano. O movimento camponês e marginal de Jesus, na periferia da Galiléia, propunha justiça, paz e, igualmente, partilha do pão e da terra. Então, deveríamos, ainda que não acriticamente, estar mais próximos dessas necessidades de vida e bem estar e não de discursos eleitoreiros", ressalta o teólogo  Ivan Martins, pastor da igreja Metodista.

Política e religião nunca estiveram tão próximas  no Brasil. Em uma tentativa de aproximação com os católicos, que votam na sua maioria no candidato Lula (PT), Bolsonaro esteve no Santuário de Aparecida, no último dia 12, deixando um rastro de polêmicas entre os fiéis, com direito a perseguição de apoiadores do presidente aos jornalistas, bolsonaristas bebendo em evento religioso e desrespeito ao momento da consagração com vaias e insultos ao padre celebrante. A confusão causou uma série de manifestações de católicos anônimos, religiosos e entidades. Em mensagem aos missionários, a União dos Redentoristas do Brasil alerta:  "Nesse turbilhão de acontecimentos, vivemos um fenômeno que devemos estar muito atentos: a erosão da democracia, a utilização da religião como manipulação da realidade e para impor o medo e a exclusão dos pobres. Essa realidade deve nos fazer pensar", diz um trecho do documento.

Para o Padre Luiz Sartorel das Comunidades Eclesiais de Base do Ceará, há a instrumentação da religião pela extrema direita. "Os sacerdotes do tempo de Jerusalém condenaram Jesus justamente porque ele se colocava contra certas maneiras de viver e instrumentalizar a religião. Portanto acho que é o anticristo quem usa a religião como forma de instrumentalizar a boa fé do povo. Eles proclamam alguns princípios de moral e ética, mas que na prática não seguem os ensinamentos de Jesus que são o perdão, a paz, a reconstrução da dignidade. Eles contribuem para o ódio, para a homofobia e a degradação da mulher na nossa sociedade. No Brasil estamos dentro de uma escolha entre a direita liberal capitalista que só pensa em ganância e uma linha que procura reconstruir a dignidade das pessoas" ressalta o religioso.
 

Edição: Camila Garcia