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Coluna

Como reverter a política de promoção da fome?

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Elineudo Meira - Jornalistas Livres
Os caminhos para que a população do campo e da cidade tenha condições de vida digna já estão postos

A desarticulação das políticas públicas de combate e prevenção à fome foi uma das prioridades do governo Bolsonaro. Logo após a sua posse como presidente, foi emitido, no dia 2 de janeiro de 2019, o Decreto 9.674 que modificou o funcionamento do poder executivo. Ali, foi extinto o Ministério do Desenvolvimento Social. A pauta da segurança alimentar foi absorvida pelo recém-criado Ministério da Cidadania, que em sua atuação nos anos seguintes promoveu o enfraquecimento das políticas de segurança alimentar estabelecidas até então.

O encerramento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) foi um dos mais duros golpes proferidos contra as estratégias brasileiras de garantia à segurança alimentar. O Consea era um espaço de articulação entre a sociedade civil e os representantes do governo que orientavam o presidente da República acerca de assuntos relacionados à alimentação.

Ocorre que a discussão relacionada ao tema da alimentação toca necessariamente em questões complexas, como a fome, o uso de agrotóxicos, as consequências do atual sistema de produção e de distribuição de alimentos, entre outras. Na ausência do Conselho, as estratégias de promoção da segurança alimentar se desarticularam e se enfraqueceram, uma vez que era essa instância que fornecia uma estratégia de governo coordenada para combater a fome.

A política de controle de estoques públicos vem sendo enfraquecida desde 2019

Uma das importantes ações do Consea foi colaborar para a criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em 2003. Por meio do programa, os alimentos produzidos pela agricultura familiar são adquiridos a preço de mercado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), ou por governos estaduais e municipais, e encaminhados gratuitamente para instituições que atendem pessoas em situação de vulnerabilidade, como escolas, creches e projetos assistenciais.

De acordo com informações da Conab, o PAA adquiriu 297 mil toneladas de alimentos em 2012 e, em 2019, foram apenas 14 mil toneladas. Em 2021, o programa foi rebatizado como Alimenta Brasil e mencionado por representantes do governo na Cúpula dos Sistemas Alimentares da Organização das Nações Unidas (ONU) como um programa estratégico, o que é uma fala curiosa diante da grande redução de orçamento destinado à sua execução.

Preço dos alimentos e volta ao Mapa da Fome

A política de controle de estoques públicos também vem sendo enfraquecida desde 2019. Os estoques públicos atuam absorvendo o impacto das grandes oscilações nos preços, ou seja, comprando dos produtores quando o preço está muito baixo, garantindo níveis adequados de lucro, e vendendo aos consumidores quando o preço está muito alto, controlando o aumento dos preços finais.

Mesmo com esse relevante papel, a Conab anunciou, durante o atual governo, o fechamento de diversas unidades em sua rede de armazéns, além dos que foram privatizados ou repassados às gestões estaduais e municipais. O descaso com a política de estoques públicos contribuiu para que 91% dos alimentos acompanhados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre abril de 2021 e abril de 2022 tenham subido de preço.

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A inflação do preço dos alimentos está relacionada ao agravamento das situações de insegurança alimentar no Brasil. Nas últimas décadas, os indicadores de pobreza vinham se reduzindo no país, até que em 2014 o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU, que é composto por países que tem mais de 5% da população ingerindo menos calorias que o recomendável. Porém, em junho de 2022, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional publicou um estudo que mostra que a fome no Brasil chegou ao seu pior patamar desde a década de 1990.

De acordo com o relatório, mais de 33 milhões de brasileiras e brasileiros estão passando fome em suas casas; mais de 32 milhões viram a qualidade dos alimentos consumidos ser comprometida e a quantidade se tornar insuficiente para toda a família; e mais de 59 milhões abriram mão da qualidade dos alimentos consumidos para que a quantidade fosse adequada. 

Enquanto a população passa fome por não conseguir comprar alimentos, os pequenos produtores perdem suas colheitas pela dificuldade de comercializar, criando uma equação sem sentido na qual há fome de um lado e descarte de alimentos por outro. Essa situação se tornou ainda mais grave durante a pandemia, com a paralisação das feiras e fechamento do comércio local, que, aliados ao enfraquecimento das compras públicas, fizeram com que muitos agricultores perdessem suas colheitas e se vissem em uma situação de desespero.  

Bolsonaro vetou todas as propostas construídas

As propostas para amenizar os problemas enfrentados pela agricultura familiar foram reunidas no texto do Projeto de Lei (PL) 886/2020, protocolado por parlamentares do Partido dos Trabalhadores na Câmara dos Deputados e construído a partir de demandas colocadas pela população do campo. O PL 866 propunha a implementação de um Programa de Aquisição de Alimentos emergencial, liberação de crédito em condições especiais para agricultura familiar, renegociação de dívidas, e ações de apoio às mulheres do campo. Porém, o PL 866 foi substituído pela Lei 14.048 de 2020, com a grande maioria das reivindicações vetada pelo presidente.

O desmonte das políticas públicas de apoio à agricultura familiar são propositais

Em 2021, foi feita uma nova tentativa de viabilizar medidas de apoio ao setor por meio da proposição do PL 823/2021, que foi aprovado pelo Senado e pela Câmara, mas integralmente vetado por Bolsonaro. Posteriormente, o Congresso derrubou 11 dos vetos propostos pelo presidente, criando a Lei Ordinária 14.275/2021, que dispõe sobre medidas emergenciais de amparo à agricultura familiar.

Revendo os acontecimentos dos últimos anos, fica evidente que o desmonte das políticas públicas de apoio à agricultura familiar são propositais, em uma tentativa cruel de enfraquecer e desarticular os movimentos sociais do campo contrários à política da morte do atual governo. O aumento da fome pode ser tido como uma consequência direta dessa política, uma vez que a agricultura familiar é fundamental para a produção de alimentos e as políticas públicas associadas a ela trabalham para garantir que os alimentos estejam acessíveis à população mais vulnerável.

Compromisso de mudar o cenário de miséria e tristeza

Cabe agora um compromisso coletivo com uma profunda reflexão sobre como é possível que esse cenário de miséria e tristeza seja definitivamente eliminado no Brasil. Em primeiro lugar, é preciso promover o fortalecimento jurídico e institucional dos instrumentos de disseminação da segurança alimentar, inevitavelmente atrelados ao apoio à agricultura familiar, para que se tornem políticas de Estado de difícil alteração. Afinal, um país historicamente governado por elites agrárias sempre terá o desmonte dessas políticas em seu horizonte.

Além disso, é importante que a diversidade do mundo rural brasileiro esteja unida na defesa de seus direitos, e que a luta pela garantia territorial dos assentamentos, quilombos, aldeias indígenas, comunidades de fundo de pasto, entre tantos outros, somem forças para pressionar a celeridade dos processos de regularização. É preciso exigir que todos os meios (como as tecnologias de georreferenciamento) sejam utilizados efetivamente para combater as ilegalidades no campo, como a grilagem de terras, a invasão de garimpeiros e o desmatamento ilegal, há muito denunciadas pelos movimentos sociais.

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Tendo a terra, é preciso refletir sobre a questão hídrica. Sem um plano nacional sério para a recuperação hídrica, nenhuma terra poderá ser produtiva no longo prazo. O trabalho de recuperação de nascentes que vem sendo feito, na maioria das vezes de forma isolada por pessoas e movimentos locais, precisa ser estimulado, remunerado e regulamentado pelo governo federal, assim como as demais estratégias de preservação hídrica.

O fortalecimento das estruturas nacionais e estaduais de oferta de assistência técnica também é fundamental para que os programas cheguem aos produtores, com profissionais que atuam, não apenas na melhoria da capacidade produtiva, mas também na divulgação de direitos adquiridos e políticas públicas, orientando as pessoas no processo de cadastramento (trabalho que vem sobrecarregando os sindicatos de trabalhadores rurais).

É preciso fortalecer a agroecologia

Além disso, é preciso abrir espaço para a agroecologia dentro da esfera da assistência técnica pública. Muitas vezes, a agroecologia não é tida como um sistema viável, mas é necessário ampliar e qualificar esse debate, legitimar as técnicas e as experiências acumuladas pelos movimentos sociais e pelas comunidades tradicionais, que tanto têm a oferecer para a construção de uma estratégia de desintoxicação da terra, da água e dos alimentos, que, nos últimos anos, vêm sendo atacados pela liberação indiscriminada de agrotóxicos.

Um programa de implantação de sacolões populares nas periferias urbanas, abastecido pela agricultura familiar, poderia dar fim aos desertos alimentares

A agricultura familiar, combinada à agroecologia, em um contexto em que há garantia territorial, paz no campo, disponibilidade hídrica, assistência técnica e crédito subsidiado, gera uma produção diversificada, alimentos saudáveis, produtividade crescente e custos decrescentes ao longo dos anos. Havendo políticas eficientes de abertura de mercados e distribuição de alimentos, é possível reverter o quadro de fome e desnutrição para o qual retornamos.

Fortalecer restaurantes populares e oferecer alimentos de qualidade

Além da retomada dos programas anteriores, como o PAA e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), é preciso trabalhar para a ampliação de seus escopos e orçamentos. O PNAE, por exemplo, que hoje atende somente as escolas, poderia se estender para as universidades, as empresas públicas, os presídios, os restaurantes populares, enfim, para qualquer instituição pública que conte com refeitório. Empresas privadas que adquirissem produtos agroecológicos da agricultura familiar em seus refeitórios poderiam ter isenção fiscal, ampliando ainda mais o mercado. E os restaurantes populares precisam estar presentes em todas as grandes e médias cidades do Brasil, em quantidade proporcional à população municipal.           

Tão importante quanto dar acesso ao alimento, é combater a formação de “desertos alimentares”, que são lugares em que a oferta de alimentos frescos para venda no comércio é pequena, como em algumas periferias urbanas do Brasil. Nesse sentido, é preciso refletir sobre a importância da experiência de ir ao mercado escolher o que deseja comer e de encontrar alimentos frescos e saudáveis como opção. Recuperar a possibilidade de que as pessoas se relacionem afetivamente com a própria alimentação é fundamental. Essa possibilidade também é parte da reconstrução da dignidade das pessoas.

Um programa de implantação de sacolões populares nas periferias urbanas, abastecido pela agricultura familiar, poderia dar fim aos desertos alimentares, combater a insegurança alimentar em seus aspectos quantitativos (fome) e qualitativos (desnutrição e obesidade), além de criar um grande mercado para agricultura familiar e fortalecer os laços entre os movimentos sociais do campo e da cidade. As famílias mais vulneráveis poderiam ter suas compras subsidiadas pelos programas de transferência de renda federais.

Experiências para serem seguidas

Existem várias iniciativas de “vale feira” a serem tomadas como exemplo. Em rápida pesquisa, foi possível verificar iniciativas desse tipo no município de Rio do Campo (SC), Goiás (GO), Vila Pavão (ES), Mantena (MG) e Santa Cruz do Sul (RS). Tornar essas iniciativas uma política do governo federal, atrelada ao Bolsa Família, pode gerar uma transformação nas relações entre campo e cidade, além de fomentar a agricultura urbana e fortalecer as culturas alimentares locais, se convertendo em uma política de saúde, de cultura, de fortalecimento popular e de dignidade humana.

Os caminhos para a superação da fome e para que a população do campo e da cidade tenha condições de vida digna, na verdade, já estão postos. E todos eles passam pela implementação de boas políticas públicas. A história recente de retrocesso e suas consequências mostram a urgência de ter não só um governo disposto a acolher as demandas da população, mas uma estratégia de garantia à segurança alimentar que se consolide como um projeto permanente e intocável no Brasil.

Renata Guimarães Vieira é doutora em economia e membra do Instituto Economias e Planejamento (IEP)

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Larissa Costa