Ceará

25 de julho

Entrevista | “Não existe processo de resistência que não haja uma mulher negra a frente”

Sarah Menezes, do Instituto Negra do Ceará, o Inegra falou com o Brasil de Fato sobre a importância do dia 25 de Julho.

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |

Ouça o áudio:

"Eu acredito que a gente precisa desacostumar com essas violências que perpassam os corpos negros."
"Eu acredito que a gente precisa desacostumar com essas violências que perpassam os corpos negros." - Tânia Rêgo/Agência Brasil

O dia 25 de julho se tornou o Dia da Mulher Negra, Latino-americana e Caribenha. Ele foi instituído em 1992 a partir de um encontro realizado em Santo Domingos, na República Dominicana, onde centenas de mulheres discutiram sobre machismo, racismo e formas de combatê-los. A data reforça a luta das mulheres negras em uma sociedade estruturalmente racista e patriarcal. E para falar sobre o tema, sobre o Julho das Pretas e sobre as lutas dessas mulheres o Brasil de Fato conversou com Sarah Menezes, educadora popular do Instituto Negra do Ceará, o Inegra. Confira.

Qual a importância da existência do Dia da Mulher Negra, Latino Americana e Caribenha?

A gente sabe que as mulheres negras estão nessa resistência cotidiana, mas ter um dia que garanta essa visibilidade, que garanta que as pautas sejam colocadas no mundo, colocadas para serem discutidas é fundamental para que haja esse fortalecimento das mulheres negras enquanto coletivo, para que haja o fortalecimento do projeto político das mulheres negras que a gente vem há muito tempo falando sobre o bem viver junto com as mulheres indígenas, junto com os povos indígenas. Então, reconhecer esse momento, dessa reafirmação, dessa movimentação política das mulheres negras é o que garante esse 25 de Julho tão potente, esse 25 de Julho que traz essa efervescência para nós enquanto mulheres negras, latino-americanas.

Quais as principais pautas de luta dessas mulheres?

Uma pauta que eu acho que nos unifica, nos atravessa e que é colocada para nós enquanto mulheres racializadas, mulheres negras, que é o direito ao corpo, que é colocado como nosso primeiro território. A liberdade dos nossos corpos e dos nossos territórios é uma pauta que nos unifica. O território livre da exploração capitalista, o território livre da exploração do agronegócio, a luta pela segurança e pela garantia da segurança alimentar e nutricional, a geração de trabalho e renda.

A gente tem feito essa resistência histórica contra o patriarcado, contra o colonialismo patriarcal também, a participação política das mulheres negras. A gente ver que o contexto político tem colocado as mulheres negras enquanto protagonistas da política institucional, então isso também tem sido uma pauta muito importante para as mulheres negras. Existem momentos na nossa história que as mulheres negras foram invisibilizadas e o 25 de Julho também traz isso, de dizer que “não há como fazer política, não há como fazer política do cotidiano e muito menos institucional sem mulheres negras”. Então essa é uma pauta que tem sido levantada por nós nesse ano.

E como a população pode contribuir com essas lutas?

A gente precisa desacostumar. A população em geral precisa desacostumar com o cotidiano de ver trabalhadores escravizados. A gente viu nesse período da pandemia o quanto de denúncias o Ministério do Trabalho recebeu de trabalhadores escravizados, trabalhadoras domésticas que estavam em processos de trabalho análogo à escravidão, de trabalhadores nas plantações de cana, o quanto o agronegócio também produz trabalho escravo, o quanto nós, população negra, fomos atravessados pela violência policial, embora em período de pandemia onde a gente, supostamente, estava guardado em casa, mas existia gente sendo morta pela polícia, mesmo dentro de casa, e na política institucional.

Eu acredito que a gente precisa desacostumar com essas violências que perpassam os corpos negros, que perpassam a população negra como um todo, e nós, como mulheres negras, as nossas pautas não são nossas, a gente encara as nossas pautas como as pautas de um povo também. Se a violência policial atravessa a vida dos nossos filhos, dos nossos companheiros, atravessa as nossas vidas também. Se a gente está excluída da política institucional a gente deixa um vácuo também de qualidade, porque existem estudos que dizem que, quando uma mulher negra está na política ela mexe toda uma estrutura. Então há uma discussão maior sobre creches, há uma discussão maior e com qualidade sobre o direito à alimentação, sobre o direito à moradia, porque as mulheres negras estão à frente desses processos. 

Eu acho que não existe movimento, acho que não existe processo de resistência que não haja uma mulher negra a frente. Então acredito que a população geral precisa desacostumar com as violências que atravessam os corpos pretos.

Há alguma programação prevista no estado do Ceará para comemorar a data?

Antes de falar um pouco do estado do Ceará eu queria falar um pouco desse histórico do Julho das Pretas. Esse 25 de Julho, Dia de Tereza de Benguela, Dia da Mulher Negra, Latino-americana e caribenha.

Faz 10 anos que o nordeste direciona e está à frente de um processo chamado o Julho das Pretas, que esse ano tem como temática “Mulheres negras no poder, construindo bem viver”. Esse ano é a nossa 10ª edição que movimenta toda uma agenda política no nordeste como um todo. As programações iniciaram desde o dia 1º de julho com ocupações virtuais, com lives, mas também com atividades presenciais, com discussões, com debates sobre segurança pública, o debate de encontro com mulheres negras e indígenas. Em outros estados aconteceram discussões sobre o próprio bem viver, sobre o autocuidado, enfim, cada estado tem sua agenda.

No estado do Ceará faz dois anos que a gente consegue fazer uma agenda unificada. Este ano, nós, a Rede de Mulheres Negras do Ceará, como propulsora disso, faz essa chamada e os movimentos escutam e chegam juntos. Então esse ano nós tivemos uma agenda conjunta com o Movimento Ibiapabano de Mulheres, com a Campanha Fazer Valer as Leis, com o Projeto Mulheres Negras Resistem, com o Movimento Negro Unificado, com as Pretas Periféricas, então para a gente, acompanhar essa agenda é interessante que vejam as páginas do Julho das Pretas, do Mulheres Negras do Ceará.

No dia 25 vai haver um ato unificado em Fortaleza com intervenções, com falas, com atividades culturais, na Praça do Ferreira, a partir das 17 horas, que a gente está chamando de “Entardecer com as Pretas”, que vai ser o nosso momento de celebração e de denúncia também.


Tereza foi líder do Quilombo do Quariterê, onde comandou a maior comunidade de libertação de negros e de indígenas da capitania. / Reprodução

Você falou que o dia 25 de julho também é comemorado o dia de Tereza de Benguela. Gostaria que você nos apresentar quem foi a Tereza de Benguela.

Tereza de Benguela vivenciou o Quilombo de Quariterê, no Mato Grosso. Era um ajuntamento de pessoas negras e indígenas, que seus corpos não suportavam os grilhões, não suportavam o aprisionamento, não suportavam o cerceamento da sua subjetividade, então se juntaram nesse Quilombo. E o Quilombo de Quariterê foi uma organização política que sobreviveu durante duas décadas sobre o comando de Tereza de Benguela, tendo como Teresa sua rainha.

Esse Quilombo tem histórico de sua organização política, sua autonomia tanto alimentar quanto de processo de troca, de negociação até mesmo com os brancos, com a produção, tinha o processo de produção de algodão e de mesmo do tear, da produção das roupas naquele período. Isso é muito rico e enriquecedor para a gente ter um exemplo desses. Então evocar, trazer novamente o exemplo de Tereza de Benguela no 25 de Julho, principalmente, é trazer para nós, é nos relembrar das nossas potências, é dizer que houve o processo escravista, mas houve resistência.

Em 1770 esse Quilombo foi atacado, inclusive, Teresa foi aprisionada e foi colocada como prisioneira e chegou a não resistir, a não resistir a ser aprisionada, a esse processo violento de cerceamento da liberdade, enfim, passou por processo de grandes violências até que realmente o Quilombo se desfez. Mas ele se desfez fisicamente, mas espiritualmente, o nosso processo de resistência e de enfrentamento ao colonialismo, a esse processo de cerceamento da nossa subjetividade e da morte dos nossos corpos, tanto subjetiva quanto material, a gente continua resistindo e é por isso que nós estamos aqui hoje, é por isso que eu, Sarah Menezes, estou aqui hoje, por conta dessa resistência.

Essa resistência seria um legado deixado por Tereza de Benguela?

Com certeza. Nós temos um legado de mulheres muito potentes que nos faz ter fôlego, voz e experiência para olhar para trás, com o nosso olhar Sankofa, para fazer o que vem a frente, para estar à frente de processos presentes e futuros. Mulheres negras constroem a partir do que outras mulheres que vieram antes deixaram para nós enquanto legado, enquanto herança, enquanto presente.

Como anda a organização dos movimentos populares negros no Ceará, principalmente os que pautam as lutas das mulheres negras?

Olha, a gente tem vivido um momento de retrocessos muito profundos e de ataques também muito profundos, então a resistência do movimento negro tem sido, principalmente, na garantia da sobrevivência também da população negra. Nesse período a gente tem se movimentado, pautado, denunciado os retrocessos nas políticas públicas, mas, ao mesmo tempo, a gente tem feito movimentações que garantam, por exemplo, a comida no prato para as pessoas que estão sem trabalho, sem nenhuma renda, porque a gente sabe o contexto que o Brasil se encontra nesse desgoverno Bolsonaro.

A gente acredita que tem sido a nossa frente principal, a garantia tanto da comida na mesa, mas também a garantia de tentar intervir nas políticas públicas, fazendo as denúncias, mas também garantido minimamente a qualidade dessas pessoas na saúde mental, por exemplo, na garantia de tentar trazer para as mulheres negras, por exemplo, uma rede de apoio que garanta que essa saúde mental não seja tão abalada.

Embora os movimentos tenham sido atacados cotidianamente, porque o racismo tem se aprofundado, mas a nossa resistência também tem se organizado mais, então os movimentos negros no Ceará têm crescido, a gente vê a Rede de Mulheres Negras no Ceará se consolidando, crescendo, trazendo de volta os seus processos culturais que a Sexta Preta, a gente vê Mulheres Negras Resistem, que é um projeto de mulheres negras que faz formação política, a gente tem visto as ações do próprio MNU, a gente tem visto também as ações de outros movimentos populares que não se denominam enquanto movimento negro, mas que tem à frente pessoas negras e que movimentam e que apoiam, e que dão suporte à população negra com as cozinhas solidárias, com os almoços solidários, a própria resistência no campo.

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Edição: Camila Garcia