Minas Gerais

Coluna

Leitura crítica: o assassinato de Marcelo Arruda, a agenda da mídia e o leitor resiliente

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Quero propor uma leitura ponderada das narrativas jornalísticas que envolvem o triste assassinato do guarda municipal Marcelo Arruda, morto a tiros pelo policial penal Jorge José da Rocha Guaranho - Vinícius Braga
Ler o enquadramento é enxergar as disputas simbólicas que são construídas ao redor de um fato


Quando as preocupações estavam voltadas para a guerra de desinformação que marcaria o pleito eleitoral de outubro, um assassinato nos avisa, abruptamente, que o futuro imediato é ainda mais preocupante. Junte guerrilhas em redes sociais, enxurrada de notícias falsas e um crime alvo de disputas simbólicas acirradas, e está montado um cenário em que é realmente difícil se posicionar com sensatez.

Da perspectiva em que escrevo, a de uma educadora para a mídia, tudo o que nós, leitores, podemos fazer é ter resiliência no nosso relacionamento com a informação (e com a desinformação, obviamente). Ser resiliente informacional requer uma série de habilidades que, aos poucos, serão abordadas aqui, lidando com casos concretos. 

Hoje, na coluna de estreia, quero propor uma leitura ponderada das narrativas jornalísticas que envolvem o triste assassinato do guarda municipal Marcelo Arruda, morto a tiros pelo policial penal Jorge José da Rocha Guaranho, quando comemorava, em 9 de julho, o aniversário de 50 anos na, já amplamente conhecida, “festa temática do PT”, em Foz do Iguaçu, no Paraná. 

Como leitora crítica da mídia, vou fazer a escolha óbvia pelas fontes de informação que podem ser validadas, neste caso, as edições disponíveis online de dois jornais: a Folha de S. Paulo, que tem abrangência nacional, e o Jornal da Manhã, um veículo local de Uberaba, Minas Gerais, de onde escrevo. Vou me deter às chamadas das primeiras páginas impressas dos dois jornais, no período de 10 a 15 de julho de 2022, e aos títulos das reportagens que foram publicadas nas páginas internas. O objetivo não é fazer uma análise exaustiva da cobertura, mas sim mostrar como se constrói a dinâmica do “enquadramento” de um fato, que eu já, já explico o que é.

O que é ser resiliente

Ler notícias comparativamente é uma estratégia produtiva para desenvolver nossa resiliência, que começaremos definindo como a capacidade de não sofrer o impacto emocional que a narrativa pode causar, qualquer que seja ele.

Podemos ficar com muita raiva do assassino, com muita pena do assassinado, mobilizar toda nossa capacidade de indignação contra um presidente que prega sistematicamente a violência (e que agora colhe os frutos das suas ações, já que nada neste universo acontece em vão) e por aí vai. Sinceramente, acredito que atitudes como essas não farão de nós leitores mais informados – dos jornais, da política e da vida em sociedade. 

Melhor seria usar esse inaceitável episódio para praticar um jeito sensato de apreender os fatos que rondam as eleições de outubro, sempre aprendendo com as narrativas. Aqui, vamos fazer o exercício de enxergar o “enquadramento” ou o modo como um jornal seleciona, enfatiza e excluiu informações para narrar um fato. A identificação do enquadramento nos diz muito sobre como as disputas simbólicas são construídas e, ao compreendê-las, estamos livres para formar uma opinião mais autônoma, sensata e resiliente.

O que está na Folha de S. Paulo 

Vejamos o que aconteceu nas capas e páginas internas nesses dois jornais, entre 10 e 15 de julho, data em que escrevo este texto.

Na edição de 10 de julho, a Folha de S. Paulo divulgou o fato na editoria de política, com o título “Ele gritou 'Bolsonaro mito', diz esposa de assassino de petista em Foz do Iguaçu”, seguido da linha fina (a frase que vem logo abaixo do título e o desenvolve) “Mulher de bolsonarista nega motivação política e diz que policial penal se sentiu ameaçado”.

No dia 11, o fato ganhou manchete de capa: “Bolsonarista invade festa e mata petista a tiros no PR”. A linha fina informa que “Agressor, que foi ao local dizendo ‘aqui é Bolsonaro’ também acabou baleado”. Nas páginas internas, são cinco títulos: “Bolsonarista invade festa e mata político petista no PR”, “Bolsonaro, que já estimulou 'fuzilar a petralhada', diz que dispensa apoio de quem é violento”, “É cedo falar em crime de ódio, diz Carla Zambelli”, “Esse louco chegou atirando, diz mulher de petista morto por bolsonarista no PR” e “Políticos repudiam assassinato de petista no PR; veja repercussão”.

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No dia 12 de julho, o fato continua na manchete de capa: “Posição sobre assassinato divide campanha bolsonarista” e com a linha fina “Ala política pede declaração mais firme por pacificação, mas presidente ignora”. Nas páginas internas, temos os seguintes desdobramentos: “Congresso repudia violência política, e reação de Bolsonaro expõe divergências na campanha”, “Entenda caso de petista morto por bolsonarista em Foz do Iguaçu (PR)”, “PGR rejeita intenção do PT de federalizar assassinato de petista”, “PT envia recomendações de segurança a militantes antes de ato com Lula no DF”, “Bolsonaro reclama de repercussão e diz não ter nada a ver com assassinato de petista”, “Mourão não vê crime político em Foz e fala em briga de quem deve ter bebido antes”, “Casos de violência política disparam no país em 2022, mostra novo levantamento”, “Petista morto foi engraxate e era conhecido por atuação social e tolerância política”, “Petista assassinado teve encontro com Bolsonaro em Brasília em 2017; veja foto” e “Promotoria vai investigar agressores de atirador bolsonarista e prevê reconstituição”.

No dia 14, uma pequena chamada na primeira página informa que “Bolsonaro liga para irmãos de petista morto”. O texto da chamada acrescenta que o presidente os convidou para ir a Brasília e que Lula “insinuou interesse eleitoral do presidente”. Nas páginas internas, temos quatro títulos: “Campanha de Bolsonaro busca tirar foco de violência política após ligação a irmãos de petista”, “Primeiro bate e depois quer consolar, diz irmã de petista morto sobre telefonema de Bolsonaro”, “Família de bolsonarista diz que crime em Foz não foi político e que vive pesadelo” e “Lira usou tese bolsonarista e citou Adélio ao debater morte de petista, diz oposição”.

A edição do dia 15, o último do recorte que estou fazendo para esta análise, o assassinato em si desaparece da primeira página, mas há uma notícia correlata: “PF aciona Estados por mais segurança a presidenciáveis”. O texto da chamada informa que a decisão foi tomada antes do assassinato de Arruda.

Como a notícia é construída

Só pela leitura dos títulos, podemos enxergar o modo como o jornal vai ajustando a agenda noticiosa do fato: o assassinato de Arruda por Guaranho foi representado como ato impensado de defesa (segundo a mulher do assassino), como disputa política, como ação estimulada pelo discurso de ódio do presidente Jair Bolsonaro, como briga de bêbados (segundo o vice-presidente Hamilton Mourão). 

Os desdobramentos do fato alcançaram as estratégias da campanha bolsonarista, a falta de sensibilidade do presidente, depois o seu oportunismo (ao ligar para os irmãos da vítima), a índole socialmente engajada, a mente aberta e a tolerância da vítima (que, apesar de apoiar o PT, já havia se encontrado com Bolsonaro), a comparação com o atentado a faca sofrido pelo presidente, por uma pessoa que já havia sido filiada ao PSOL, a vitimização do assassino, que levou chutes na cabeça depois de atirar e ser atingido, o aumento da segurança aos candidatos, dada a onda de violência que vai tomar a campanha.

É interessante notar como as relações de causa e consequência vão sendo criadas nas notícias: a polarização política se torna violenta por causa do discurso do presidente, mas as pessoas envolvidas eram todas cidadãs comuns, embora bebessem um pouco e, por isso, perderam a cabeça. O presidente, mesmo pressionado pelos estrategistas de campanha, não abre mão do seu discurso bélico, mas liga para os familiares da vítima, num gesto de humanidade (ou de oportunismo, segundo seu oponente). E também é bom lembrar que o próprio presidente Bolsonaro foi vítima de violência física durante sua campanha, o que sugere uma relação de equivalência no espectro político: ali, ninguém é santo. 

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Repare como são essas relações confusas que também pautam as conversas e trocas de conteúdo nas redes sociais. Tendemos a achar que o público se comporta assim porque é “gado”, mas não é descabido avaliar em que medida a agenda do público reproduz a agenda da mídia. O que o público pensa sobre um fato é coerente com o modo que a mídia divulga esse fato. Ela nos mostra a floresta e, com isso, nos impede de ver a árvore.

O que disse o Jornal da Manhã

Eu comecei este texto dizendo que iria comparar a cobertura de dois jornais, um nacional e outro local, sobre o mesmo fato. Mas não vou conseguir cumprir minha promessa porque o assassinato de Marcelo Arruda simplesmente não apareceu nas capas impressas do Jornal da Manhã. No mesmo período observado, 10 a 15 de julho, há duas notícias sobre Bolsonaro e a disputa presidencial. 

No dia 10 de julho, uma chamada na capa informa que “Bolsonaro participa da Marcha para Jesus em Uberlândia” e, em 14 de julho outra chamada noticia um ataque de tinta na fachada da sede do diretório do PL em Uberaba: “Vandalismo eleitoral – Na madrugada desta quarta-feira, o Diretório Municipal do Partido Liberal, sigla do presidente Jair Bolsonaro, foi alvo de vandalismo”. Nos desdobramentos, cogitou-se que o ataque foi feito com tinta guache por um bolsonarista que participou de motociatas na cidade e estava tentando criar cortina de fumaça. Um suspeito foi depois identificado (trata-se de um bombeiro militar) e resistiu à prisão em flagrante, mas acabou sendo levado para a delegacia. 

No contexto do enquadramento, o silêncio informa tanto quanto o destaque noticioso (lembre-se da definição: prática, inevitável, de selecionar, enfatizar e excluir informações). Se o Jornal da Manhã ignorou por completo um fato que ganhou manchetes em diversos jornais importantes do país durante uma semana, e optou por enfatizar um fato local de menor importância, mas que vitimiza o presidente Bolsonaro, essa decisão editorial diz muito sobre a perspectiva política do jornal. 

Ler o enquadramento é enxergar as disputas simbólicas que são construídas ao redor de um fato. E são essas disputas que, ao longo do tempo, vão modelando nosso senso comum e o modo como nos posicionamos sobre as mais diversas controvérsias. É por isso que temos mais comportamento de manada do que gostaríamos. Sem querer, você também pode se comportar como “gado”. Mas eu sugiro que você dedique um tempo da sua vida para aprender a ser resiliente informacional.

Alexandra Bujokas de Siqueira é professora de Mídia-educação na Universidade Federal do Triângulo Mineiro em Uberaba.
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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal


 

Edição: Larissa Costa