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Crise econômica aumenta venda de “fiado” nas periferias

A compra pela caderneta de anotações movimenta pequenos comércios nos bairros mais afastados do Centro de Fortaleza

Fortaleza, CE |
Gladson Ferreira está há quatro anos a frente do Hiper Noélia, na rua 515, no Conjunto Ceará. - Foto: Angélica Feitosa

As placas de “Fiado só amanhã” podem até decorar mercadinhos e bares na periferia de Fortaleza. No entanto, a frase usada em várias anedotas pelo Brasil afora, não é o que impera, na prática, por esses locais na Capital. No Conjunto Ceará e na Vila Peri, por exemplo, o crédito de confiança, apenas pelo caderninho de anotações, ainda reina em pequenos e médios comércios e é o que faz girar boa parte da economia nos subúrbios.

Há quatro anos à frente do Hiper Noélia, na rua 515, no Conjunto Ceará, Gladson Ferreira abastece a vizinhança de produtos de limpeza, arroz, feijão, frutas, verduras e uma infinidade de produtos de higiene pessoal. Desde a abertura, o pequeno comércio, que funciona há quatro anos - um ano e meio antes da pandemia - já aceitava a compra por anotação. No caderno brochura, ele tem anotado o nome e as compras de cerca de 15 clientes, todos vizinhos. E Gladson sabe que, ali, é uma via de mão dupla: se não fosse fiado, não venderia e se não vendesse, o povo compraria em outro mercadinho também a prazo.

Por serem vizinhos, o risco do calote é menor. “Eu moro aqui muitos anos antes de montar o comércio. Conheço todos os vizinhos. Mas isso não impediu que eu levasse um calote. Mas foi um calote pequeno, de mais ou menos uns 100 reais e só foi um, por enquanto e, se Deus quiser, o único”, rir-se.

O radialista Elvis Marlon, 48, é cliente de Gladson há, pelo menos, dois anos. Ele mora a quatro casas de distância da bodega e, se estiver cozinhando e faltar algum ingrediente, corre para lá e compra. “Eu sempre pago porque, se não, ele não vende, né?”, brinca.


O radialista Elvis Marlon, 48, é cliente de Gladson há, pelo menos, dois anos. / Foto: Angélica Feitosa

Mesmo com o risco, seu Gladson, como é conhecido entre os clientes, não cobra juros com a venda à prazo. O preço que está anunciado nas pequenas etiquetas é o mesmo que repassa ao consumidor. “A rotatividade de mercadoria é alta e, como aqui é pequeno, não posso comprar muita coisa. Quando eu for comprar de novo, pode ser que eu compre por um preço mais caro, mas como o que eu vendi, eu já paguei, sempre vale à pena”, explica.

Por se tratar de uma prática bem informal, bancos públicos, como Caixa Econômica e Banco do Brasil não tem uma dimensão do valor que gira na economia do fiado. Aécio Oliveira, professor do curso de Economia Ecológica da Universidade Federal do Ceará (UFC), avisa que a venda por anotações é um traço cultural e que, nesse momento de pandemia, ela ressurge como forma de viabilizar o acesso à mercadorias a uma população com renda mais baixa. “Geralmente os comerciantes incorporam alguns juros. Os clientes, geralmente, não têm fluxo de renda no dia a dia, e quando recebem no fim do mês, a inflação já retirou uma parte”, explica.

A regra geral é que o comerciante precisa ter vários compradores na cadernetinha para viabilizar o fluxo de caixa, principalmente, ainda de acordo com o professor, quando há a perda do poder de compra com o salário mínimo. O valor incorporado ao crédito, segundo Oliveira, é justamente para compensar os aumentos dos produtos com a inflação.

Francisco Holanda é dono, há 30 anos, de um pequeno mercadinho na rua Leão do Norte, no bairro Vila Peri. Hoje, tem cerca de 30 clientes que compram pela caderneta. E nem todos pagam direitinho. “Todos os meses, levo um ou dois calotes”, contabiliza. Ele coloca o preço que está anunciado e não coloca juros em cima da mercadoria. “O pessoal já ganha pouco e, se eu for cobrar a mais, o salário se acaba”, atesta.


Francisco Holanda é dono, há 30 anos, de um pequeno mercadinho na rua Leão do Norte, no bairro Vila Peri. / Foto: Angélica Feitosa

O fiado é uma prática muito antiga nas periferias das grandes cidades, permeada por uma relação de confiança. A economista Silvana Parente, presidente do Conselho Regional de Economia do Ceará (Corecon), observa que a compra por anotação tem diminuído gradualmente com a introdução de novas tecnologias, como o cartão de crédito, o acesso às maquininhas e, mais recentemente, o Pix.

“O que ocorre com essa crise da pós-pandemia foi o aumento do trabalho informal. Cerca de 40% de toda mão de obra está na informalidade. Nem todos têm acesso a cartões válidos e a crédito na praça”, pontua. Com isso, ainda de acordo com a economista, a modalidade de compras voltou a acontecer como uma forma de sobrevivência, tanto para o vendedor que precisa vender - melhor vender fiado do que não vender nada - quanto para o consumidor, que não tem outra alternativa para poder fazer a feira da casa.

“Até porque mais de 77% dos brasileiros estão endividados, boa parte com o nome negativado e não tem acesso a esses mesmos pagamento formais”, cita Parente. A modalidade de fiado é, então, ainda de acordo com Parente, uma relação de confiança, de finanças, de proximidade. “E continua vigorando tanto nas pequenas cidades do interior como nas periferias das grandes cidades”, conclui.

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Edição: Camila Garcia