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Artigo | Por um DF sem despejos

Quase todos os casos de remoções e ameaças foram promovidas pelo próprio Governo

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
O medo do despejo é uma realidade para mais de 7.800 pessoas vulneráveis no DF. - Foto: Roberta Quintino

Quase 2 mil famílias foram removidas de seus locais de moradia ou estão ameaçadas de remoção desde o início da pandemia no Distrito Federal.

São 956 famílias de 14 ocupações, submetidas a despejos forçados em meio à situação de calamidade pública. Outras 986 famílias, de outras 16 ocupações, permanecem ameaçadas ou com o despejo suspenso temporariamente até 30 de junho, devido a uma liminar concedida pelo STF, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, que amplia o prazo de suspensão de despejos de pessoas vulneráveis previsto pela Lei 14.216/2021.

O medo do despejo é uma realidade para mais de 7.800 pessoas vulneráveis no DF.

As famílias vitimadas pelos despejos são em sua maioria chefiadas por mulheres negras, migrantes do Norte e Nordeste, com renda de um salário-mínimo. Há relatos de mulheres que estão em ocupações por terem sido vítimas de violência doméstica, escalada durante a pandemia, e ao sair de suas casas por motivos de segurança, não tiveram amparo estatal. Com os baixos salários advindos de trabalhos domésticos ou como catadoras de materiais recicláveis, a alternativa de moradia foi se juntar às ocupações.

Do total de ocupações despejadas ou ameaçadas no DF, 71% são urbanas. As ocupações rurais, embora em menor quantidade, são maiores, concentram 1.146 famílias ameaçadas durante a pandemia, 45% do total.

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A única ocupação mapeada pela Campanha cujo despejo foi suspenso definitivamente foi o Acampamento Dorothy Stang, transformado em ARIS (PLC n° 77/2021) graças à luta e organização das famílias e trabalhos de extensão da Universidade de Brasília.

Em pelo menos sete ocupações coletivas, formadas em sua grande maioria por catadores de materiais recicláveis em situação de rua, os despejos e destruição de pertences pessoais ocorreram mais de uma vez, vitimando cerca de 233 famílias, quase mil pessoas.


Mapeamento dos despejos e ameaças de despejos ocorridos no DF durante a pandemia / Gabriel Couto/Campanha Despejo Zero

O GDF continua afirmando que essas famílias não estão consolidadas nos locais de onde são removidas, que circulam entre várias áreas do Plano Piloto, embora algumas dessas áreas sejam ocupadas há décadas, havendo apenas o deslocamento de um local para outro. Em pesquisa recém divulgada, a CODEPLAN aponta que há quase 3 mil pessoas nas ruas do DF, majoritariamente negros e indígenas (90%), dos quais 38% foram parar nas ruas nos últimos dois anos.

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A repetição de um ciclo vicioso de remoções violentas e novas ocupações evidencia a incapacidade do GDF de apresentar soluções de moradia para a população vulnerável do DF.

A oferta de novos residenciais permanece ocorrendo nas regiões administrativas periféricas, onde há escassez de emprego, serviços, opções de cultura e de lazer, e de onde fica muito caro pegar o transporte público em busca de todas essas necessidades.

Ausência de políticas

Se o passe livre fosse estendido às famílias de catadores contempladas com moradias nos residenciais distantes - com espaços nas áreas centrais para o armazenamento dos materiais recicláveis coletados - possivelmente essas famílias não desistissem do atendimento, como ocorre com frequência, ou optassem por dormir nas suas próprias moradias, e não nas ruas, uma solução mais digna e mais barata que mobilizar o aparato do despejo a cada seis meses.

Enquanto isso, as propostas de políticas de locação social e de serviço de moradia social para população em situação de rua, previstas no Plano Distrital de Habitação de Interesse Social, em revisão, permanecem na gaveta. Políticas que já existiam, como os escritórios descentralizados de assistência técnica para a população de baixa renda, foram desmontadas. A Companhia de Habitação do Distrito Federal (CODHAB) sequer conta com corpo técnico concursado e estável, um absurdo para a capital do país.

É por isso que mesmo assim, junto àqueles em que não houve atendimento algum, que motivaram a apresentação do PL 1501/2022, que visa garantir procedimentos e alternativas adequadas às famílias quando o despejo for inevitável.

Não são apenas as ocupações da população em situação de rua e de catadores que incomodam o GDF. Aquelas que ocupam frentes de expansão do mercado imobiliário também estão na mira, como as famílias que residem no Jóquei Clube há cerca de 50 anos, onde o GDF pretende desenvolver um setor habitacional de média e alta renda, sem sequer mencionar a existência dos moradores atuais; e como as famílias de catadoras e de indígenas que ocupam o que hoje é o setor Noroeste desde a década de 1990, submetidas periodicamente a despejos violentos.

Interesses imobiliários velados e disputas pela terra também estão no centro dos despejos e ameaças truculentas dirigidos aos moradores do quinhão 23 em Santa Maria, que, além disso, foram coagidos a arcar com as despesas das próprias remoções.

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Uma especificidade do Distrito Federal é que a quase totalidade dos casos de remoções e ameaças foram promovidas pelo próprio GDF, que se vale do argumento da manutenção da ordem urbanística para manter as famílias de baixa renda longe da paisagem tombada do Plano Piloto.

Apenas duas das 26 ocupações monitoradas pela Campanha Despejo Zero no DF, para as quais foram obtidas informações sobre os proprietários dos imóveis, estão em terras exclusivamente de particulares (8%). A grande maioria dos despejos de vulneráveis que têm ocorrido no DF são remoções administrativas, justificadas pelo exercício do poder de polícia pelo GDF, desprovidas do devido processo legal.

É um flagrante desrespeito à Resolução nº 17/2021 do Conselho Nacional de Direitos Humanos, que estabelece que remoções administrativas de pessoas que demandam a proteção do Estado - sem que se configure situação extrema ou excepcional, e sem o devido processo administrativo ou legal - configuram-se como violação de direitos humanos.

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Além disso, há os despejos e ameaças a ocupações culturais consolidadas, como o Ponto de Cultura Resistência Cultural Filhos do Quilombo, e o Jovem de Expressão, respectivamente situados no Setor P e na Praça do Cidadão, em Ceilândia, e a projetos sociais como os conduzidos pela Associação dos Amigos dos Autistas do Distrito Federal, que era desenvolvido no Instituto de Saúde Mental, no Riacho Fundo I, com anuência do GDF até então.

Enquanto isso, as ocupações de média e alta renda em terras públicas são toleradas, com a grilagem e parcelamento dessas terras ocorrendo cotidianamente no DF.

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Com a ampliação das possibilidades de regularização fundiária em terras públicas proporcionadas pela Lei 13.465/2017, ignorar a grilagem e depois regularizar os condomínios, mediante o pagamento das famílias de classe média, tornou-se lugar comum.

Assim, a destinação do imenso estoque de terras públicas do DF vai sendo dilapidado, sem controle social e sem definição de qual seria a melhor forma de destinar essas terras para que cumpram sua função social, em benefício de famílias de baixa renda e de toda a coletividade da cidade.

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Com o aumento dos casos de COVID-19, a persistência da crise econômica, o aumento assombroso da população vivendo nas ruas do DF e o desmonte das parcas políticas habitacionais, o fim da suspensão dos despejos de vulneráveis no final de junho vai assumindo os contornos de uma tragédia humanitária anunciada. 

Por um Brasil sem despejos!

*Campanha Despejo Zero DF

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Flávia Quirino