Coluna

Aspectos do urbano na Amazônia

Poluição e lixo em igarapés de Manaus são exemplos dos riscos da ocupação irregular aos recursos hídricos - Alterma Alcantara / Semcom
As demandas das populações são etapa para o início a um processo de recivilização do Brasil

 

*Por Juliano Pamplona Ximenes Ponte - Professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e coordenador do Núcleo Belém do Observatório das Metrópoles.

A Região Amazônica brasileira é, legalmente, uma área correspondente a 5 milhões de quilômetros quadrados, com 772 municípios de nove diferentes Estados da Federação, representando quase 60% do território nacional em área. A este recorte, denominado Amazônia Legal, associamos uma população de 28,4 milhões de pessoas, em dados da estimativa populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2021.

O Brasil, por sua vez, é um país de maioria de municípios de pequeno porte, o que ocorre do mesmo modo na Amazônia. Em média, nos 5,5 mil municípios brasileiros, há 38 mil habitantes. Aproximadamente 88% dos municípios do país estão situados em faixas de população de até 50 mil habitantes.

Para falarmos de cidades da Região Amazônica é interessante abordar inicialmente estas diferenças demográficas e territoriais. Proporcionalmente, a Amazônia Legal Brasileira possui 86% de seus municípios inseridos em faixas de população de pequeno porte, até 50 mil habitantes. Os municípios entre 20 mil e 50 mil habitantes são 27% do total na Amazônia, enquanto correspondem a 20% dos municípios brasileiros.

Na faixa de população entre 50 mil e 100 mil habitantes há, novamente, diferença; na realidade brasileira há 6% dos municípios nesta faixa, enquanto na Amazônia o contingente corresponde a 8% do total. As cidades médias típicas, entre 250 mil a 500 mil habitantes, assim como as cidades grandes, acima de 1 milhão de habitantes, previsivelmente ocorrem em maior percentual na média brasileira.

O Brasil, no Censo Demográfico 2010, era 84% urbano e 16% rural, em termos da situação de seus domicílios. Historicamente, nos últimos Censos, a Amazônia e a Região Norte brasileira apresentam proporções em torno de 75% de população urbana e cerca de 25% de população rural. Nota-se, portanto, uma diferença significativa na situação do domicílio quanto à composição da população e, como expressão, quanto ao uso da terra.

A Amazônia também se caracteriza por ser uma região brasileira de densidade demográfica proporcionalmente menor, com municípios extensos; a média de área territorial da Região é de 6.515 km², enquanto a média brasileira é de 1.527 km². Os municípios amazônicos são, em média, 5% menos populosos do que a média nacional, mas sua malha territorial é quatro vezes maior em área.

A situação econômica, por sua vez, é ainda mais sensivelmente diferente. O produto interno bruto (PIB, soma das riquezas produzidas em uma região, nos preços correntes adicionada de impostos) médio dos municípios da Amazônia Legal é 37% menor do que o PIB municipal brasileiro médio. Isto ocorre apesar da participação da Região na pauta de exportações nacional e nos resultados da balança comercial, dentro do modelo voltado ao mercado externo, à atração e valorização do dólar e ao favorecimento das chamadas commodities como produto na política econômica ultraliberal do país, atualmente.

A internalização de benefícios, em jargão econômico, acaba reforçando o padrão periférico da Região diante do país; a renda média domiciliar na Amazônia Legal (R$ 1.142,90) é 46% menor do que a renda média nacional (R$ 2.126,66). Diante das diferenças do PIB municipal, nota-se, portanto, ainda maior concentração e discrepância entre renda e riqueza na comparação entre Região e país.

Esta desigualdade é, em termos históricos e estruturais, centralmente baseada na concentração da terra e de seus potenciais. Sendo claramente uma região de ocupação urbana, uma tendência nacional, e com importância majoritária e progressiva do setor terciário no produto interno bruto municipal, há ainda um curioso tipo de modo de vida urbano de base primária em parte das cidades amazônicas.

As cidades amazônicas são estruturadas, do ponto de vista do pós-ocupação colonial, a partir de entrepostos comerciais, pela via fluvial principalmente, mas relacionadas a uma extensa rede agroextrativista, oscilando entre territórios ribeirinhos, de várzea ou de terra firme, nas áreas interiores mais altas topograficamente.

A este aspecto acrescenta-se um conflito também histórico quanto à entrada de dinâmicas capitalistas, modernas, em uma formação social com diversos traços pré-capitalistas até meados do século 20, como o compartilhamento de terras. O acirramento do conflito de terras dado pela política de ocupação territorial da ditadura militar de 1964-1985, desastrosa e genocida, não apenas representou fluxo de populações migrantes para a Amazônia, mas uma notável alteração econômica, produtiva, epidemiológica e social.

O choque entre a implantação de uma estrutura fundiária parcelada, com porções rigidamente delimitadas em torno da lógica da propriedade privada regulada pelo Estado, diante de formas então caboclas de compartilhamento tácito de margens de rio, bosques e campos com atividades produtivas, se reflete em diversos indicadores nas áreas urbanas e rurais até os dias de hoje, incluindo as mortes no campo, os surtos sazonais de doenças e o isolamento espacial da população.

Sobre este último aspecto, cabe ressaltar que a média de distância linear entre localidades da Amazônia Legal fica em torno de 1 mil km, o que coloca questões adicionais para a logística de transportes planejada para sua realidade específica – e para o desmonte das hidrovias igualmente promovido com o rodoviarismo da ditadura de 1964.

Pela característica de região de fronteira de expansão capitalista, a Amazônia ainda possui em suas cidades e municípios eventuais perfis de sexo denotando participação masculina excepcionalmente alta na população, bem como distribuição etária reforçando a primazia de jovens.

Estes são evidentemente traços de populações afetadas por antigos fluxos migratórios e pela necessidade de políticas sociais estruturantes. Esta característica, contudo, não pode ser desvinculada das relações de poder envolvidas na regionalização do Brasil desde o século 19; o lugar destinado às cidades amazônicas tem sido de apoio, como entrepostos, de uma região subordinada no arranjo regional brasileiro, periférica de um modo permanentemente vinculado ao modelo de desenvolvimento econômico vigente.

Por isso, historicamente, a produção e extração de produtos cotados internacionalmente como commodities, a conversão em área de mineração, pasto, produção de grãos, geração de energia elétrica de base hidráulica. Da borracha às hidrelétricas e ao minério de ferro, a Amazônia Legal não pode ser exatamente considerada como região desvinculada do projeto econômico e territorial brasileiro, mas a desumanização de sua população e sua inserção subordinada na regionalização nacional parecem evidentes.

A atuação de movimentos sociais se refere há cerca de um século a lutas em torno do acesso à terra, inclusive para populações tradicionais, bem como ao acesso a políticas sociais, como educação e saúde, e à infraestrutura urbana e regional. Em paralelo convivem as demandas, com fortes motivações externas e com a subserviência do Governo Federal conservador de plantão, em direção aos chamados Grandes Projetos (de Desenvolvimento), o que explica também a recorrência de plantas de mineração e geração de energia na Região.

Com indicadores de infraestrutura urbana situados abaixo da média nacional, a Amazônia e seus municípios apontam para uma evidente necessidade de equacionamento da questão regional brasileira. Claramente, se faz necessária a recolocação de um modelo, e de um programa nacional, de provisão de infraestrutura, como nas áreas da habitação de interesse social, do saneamento básico e ambiental, dos transportes públicos urbanos e (micro)regionais e da mobilidade cotidiana.

As políticas urbanas na Amazônia precisam, previsivelmente, de uma mediação quanto às especificidades territoriais e de sua formação socioeconômica. O Brasil, submetido a um projeto ultraliberal e predatório de dominação em relação à influência norte-americana dada pelo golpe parlamentar de 2016 e pelo governo Bolsonaro, precisa retomar as decisões sobre sua própria sociedade, território e economia, incluindo o pleito eleitoral vindouro. Não deve ser feita, a partir de nossa classe, apenas uma defesa meramente corporativa do planejamento territorial enquanto necessidade, mas uma sustentação do projeto político nele envolvido, de justiça social, de acesso franqueado a oportunidades, recursos e possibilidades de produção da existência.

Este projeto de política urbana para a Amazônia deve incorporar a dimensão de direitos da população local, mas também reconhecer os pressupostos das relações centro-periferia existentes na formação social e territorial brasileira e em seu arranjo regional consequente. A ideia de uma região subordinada, ainda que dentro de um país periférico, nada possui de inédito nas formações sociais capitalistas:

As agendas da habitação, do saneamento e dos transportes, assim, ressaltam de modo ainda mais central a dimensão da regularização fundiária, hoje liberalizada por legislação recente, de 2017, e demandando a retomada dos princípios da função social da propriedade, esta miragem histórica ainda vigente, e da terra, como substrato essencial ao desenvolvimento econômico e social.

A questão da moradia na Amazônia demanda o reconhecimento do papel das soluções de adequação habitacional para um estoque de domicílios rústicos, para a adequação habitacional inclusive em áreas de baixa densidade e pelo enfrentamento urbano dos assentamentos precários. A Amazônia há duas décadas figura como região brasileira cujos municípios aparecem com maior frequência nas posições de maior precariedade habitacional e sobretudo de infraestrutura sanitária e urbanística em geral do país.

O processo de precarização e de estruturação de territórios populares não atendidos por direitos e infraestrutura percorre municípios de pequeno, médio e grande porte na Região, sem distinção, praticamente. A uma política habitacional amazônica devem ser associados os ativos presentes na população, com os trunfos da densidade cultural e da presença de instituições nas áreas de Saúde e Educação situadas nos municípios-polo, capazes de estruturar uma rede de equipamentos públicos e comunitários finalmente suficientes para a demanda.

Uma questão sanitária e de provisão de infraestrutura em geral, em escala urbana e regional, precisa reconhecer tanto aspectos fisiográficos e geodésicos da Região quanto a capacidade de pagamento de sua população. Embora possam representar aparente perda de escala e aumento de custo, a prevalência de municípios de pequeno porte mostra a necessidade, em paralelo ao atendimento padrão de demandas urbanas, de sistemas descentralizados e de média e pequena capacidades.

As condições de sítio alagável, de topografia plana e baixa, de relativa proximidade de cursos d’água nas cidades, influencia as decisões tecnológicas sobre estes sistemas e os relaciona com a tradição, tanto regional quanto mundial, do nome da vez das chamadas soluções baseadas na natureza, uma revisitação de antigas técnicas pré-modernas de se produzir infraestrutura de drenagem e esgotamento. Deve ser dissolvida a percepção do estigma das ditas soluções “alternativas” para a Região, uma vez que há casos em que a alternativa não se revela como excêntrica ao padrão, mas inserida nele, conceitualmente.

Neste sentido, o problema do isolamento espacial e da fragmentação territorial tanto se relaciona com o desmonte e a desarticulação de antigas redes espaciais e socioeconômicas existentes na Região quanto com a implantação do projeto moderno, capitalista.

Do mesmo modo, devem ser reconhecidos os potenciais da combinação das estratégias multimodais, associando a pertinência do uso de modais fluviais de transporte regional com soluções urbanas terrestres, como os ônibus, os veículos leves sobre trilhos (VLT) e variantes, e, também, as formas ativas de deslocamento cotidiano, todas associadas a uma retomada progressiva da malha hidroviária em diversas escalas territoriais.

Demanda-se investimento, evidentemente, mas é notório, do mesmo modo, o passivo de investimento em infraestrutura existente na Amazônia e a, digamos, “funcionalidade” deste ocaso de atendimento dentro do padrão histórico de desigualdade regional brasileira. A equalização das demandas das populações, inclusive as tradicionais, e suas Regiões, representa uma etapa de politização e de enfrentamento necessário do arranjo regional brasileiro que, neste período eleitoral, esperamos que dê início a um processo de recivilização do Brasil.

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato 

Edição: Rodrigo Durão Coelho