Pretos no poder

Palmares no Congresso: movimento quer aquilombar Legislativos de todo o país

Iniciativa Quilombo nos Parlamentos marca nova etapa da luta do movimento negro – sem deixar de lado a ancestralidade

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Lançamento da iniciativa Quilombo nos Parlamentos reuniu centenas de pessoas na Ocupação 9 de Julho, centro de São Paulo - Elineudo Meira

"Se Palmares não existe mais, faremos Palmares de novo." O tradicional canto do movimento negro brasileiro ganhou um novo significado na noite desta segunda-feira (6), durante o lançamento do Quilombo nos Parlamentos, que lotou a Ocupação 9 de Julho, no centro de São Paulo. A iniciativa da Coalizão Negra por Direitos apoia mais de 100 pré-candidaturas de pessoas ligadas ao movimento negro para a cargos no Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e na Câmara Distrital por todo território nacional. 

"Em 1931, aqui perto, foi a primeira casa da Frente Negra Brasileira na cidade de São Paulo. Não estamos aqui à toa. De onde a gente veio, coincidência tem outro nome. Estamos aqui quase um século depois fazendo o que a ancestralidade nos ensinou a fazer", disse Vilma Reis, liderança do movimento negro e pré-candidata a deputada federal pelo PT na Bahia, em sua fala na abertura do evento. Pouco antes, o babalorixá Júlio Cezar de Andrade, co-vereador do mandato coletivo Quilombo Periférico (Psol-SP), fez uma saudação reverenciando entidades das religiões afro-brasileiras. 

A iniciativa é um novo passo na caminhada da Coalizão, organização que reúne mais de 250 entidades do movimento negro em todo o país e que foi criada oficialmente em 2019, em um encontro realizado na mesma Ocupação 9 de Julho. 

"O que estamos fazendo hoje é continuidade de um processo longo, histórico, político do movimento negro desse país", afirmou Monica Oliveira, da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e da Coalizão. "Tivemos diferentes ativistas que se candidataram, pertenceram e criaram partidos que hoje fazem 30, 40 anos de história. Sempre pertencemos a esse campo chamado esquerda, construímos essa esquerda e, como disse Sueli Carneiro, somos nós que empurramos a esquerda para a esquerda", concluiu.

Ampliar as relações

A estratégia de ampliar a presença de ativistas do movimento nos espaços da política institucional, seja no Legislativo ou Executivo, começa em 2020. As ações envolvem formações diversas, como comunicação e apoio para busca de recursos. "Ajudamos a ampliar as relações, que são um ativo importante que os brancos sempre tem mais, mas temos as nossas também", destacou Monica. 

As ações deveriam ser mais intensas, mas foram atropeladas pela pandemia de covid-19, que impactou a todos – mas, como costuma acontecer com os problemas sociais no Brasil, atingiu com mais força as populações negras. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pretos e pardos representam 57% dos mortos pela doença enquanto brancos são 41% dos mortos. 

O número de mortes poderia ter sido maior, não fosse a ação da Coalizão Negra por Direitos, que organizou a campanha Tem Gente com Fome, distribuindo alimentos em todo o país. "A fome voltou no território, mas tenho muito orgulho que foi o movimento negro organizado que permitiu que os meus não passassem fome. E não estou falando de fome de terceiros, mas da minha família", relatou Taina Rosa, que junto com Luana Nara forma o mandato coletivo de vereadoras Mulheres Negras Sim, na Câmara de Belo Horizonte. Agora, elas buscam ocupar a Assembleia Legislativa de Minas Gerais. 

Foi só com o arrefecimento da pandemia que a Coalizão pode voltar sua atenção novamente para as articulações políticas.  Partindo de seu manifesto chamado "Enquanto houver racismo, não haverá democracia", aprovado em 2020, teve início a organização que levou ao evento dessa segunda-feira. 

Em todo lugar

Com o Quilombo nos Parlamentos, a Coalizão apoia 67 pré-candidatos que concorrerão ao cargo de deputado estadual; 31 para deputado federal; 2 a deputado distrital; e 1 ao Senado Federal. A iniciativa é suprapartidária, reunindo militantes de PT, PSOL, PCdoB, PSB, PDT e Rede do Distrito Federal e dos seguintes estados: Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Distrito Federal,  Goiás, Minas Gerais, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins. 

Um dos desafios da iniciativa é conseguir o apoio efetivo das direções partidárias - o que pode ser traduzido principalmente em financiamento. De acordo com o estudo “Desigualdade Racial nas Eleições Brasileiras”, realizado pelo Insper, em 2018, na disputa para a Câmara, a média de financiamento foi R$ 251 mil para os brancos e R$ 110 mil para os negros. Quando o fator gênero é incluído, há mais disparidade: mulheres negras registraram média de R$ 85 mil na briga pela Câmara, homens brancos arrecadaram R$ 283 mil, na média. 

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Veterano do Legislativo em seu quinto mandato, o deputado federal Vicentinho (PT-SP) conta que, nesse período, já foi confundido com segurança, garagista, faxineiro, “mas nunca com deputado”, ri. Segundo ele, é sempre mais difícil para candidaturas negras ocuparem esses espaços, mesmo em partidos de esquerda. Mas acredita que iniciativas como a da Coalizão possam mudar o cenário. 

"Os partidos progressistas que estão representados aqui dentro deviam olhar com muito mais atenção e muito mais respeito. Primeiro que mostramos que é possível a gente se mobilizar e sermos eleitos. Segundo, os partidos têm que dar uma prioridade porque para eles mesmos será ótimo, um deputado ou deputada negra eleita significa uma verba partidária duas vezes maior”, afirmou, referindo-se à Emenda Constitucional (EC) nº 111/2021. Promulgada pelo Congresso em setembro do ano passado, ela estabelece que os votos dados a candidatas mulheres e a pessoas negras serão contados em dobro para efeito da distribuição dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral nas eleições de 2022 a 2030. 

Pisando firme

Além de questões eleitorais, questões centrais para o movimento negro foram abordadas todo o tempo pelos pré-candidatos, como a urgência do combate ao genocídio da juventude negra, o fim da guerra às drogas e a efetivação do ensino de história africana e outras ações de combate ao racismo nas escolas. Também ganhou destaque a urgência em reverter os retrocessos do governo Bolsonaro em questões de emprego, renda e políticas de segurança alimentar para a população mais pobre – majoritariamente negra. 

"Essa candidatura para a Alesp é para o Estado nos reparar pela morte de nossas mulheres, pela execução de nossos filhos, pelo encarceramento em massa de nossa juventude preta e periférica. Em defesa da vida, a política genocida do Estado, e para derrotar a branquitude que silencia os nossos terreiros", afirmou Júlio Cezar, do mandato Coletivo Quilombo Periférico, que agora tentará uma vaga na Assembleia Legislativa de São Paulo. 

Um dos pré-candidatos presentes, Jhonatas Monteiro, que disputará uma vaga de deputado estadual na Bahia pelo PSOL, destacou a importância de se realizar o evento em um espaço tão representativo como a Ocupação 9 de Julho. "A gente não tem como avançar sem nos embeber no rio de lutas que nos trouxe até aqui, sem ter conexão com a luta de nosso povo", afirmou ele, que é vereador em Feira de Santana, que ele classifica como uma "cidade negra que se recusa a admitir isso". 

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A líder da Ocupação Carmen Silva também disputará uma vaga de deputada estadual por São Paulo. Ela conta que, em 1997, foi naquela casa que foi acolhida após chegar em São Paulo de Salvador, "fugindo de um feminicida" – o que considera a primeira vez que o Estado a separou de seus filhos, que não conseguiu trazer da Bahia. Dormiu nas ruas, foi para um albergue e lá conheceu o movimento de moradia. 

Ao se estabelecer naquele endereço no centro de São Paulo, trouxe as crianças. Anos mais tarde, veria dois deles presos por conta de suas atividades políticas, a segunda vez que o Estado os separou. Foragida, não pode acompanhar a reunião de lançamento da Coalizão Negra por Direitos, em 2019. 

Mesmo assim, ela agradece a quem continuou a luta em seu solo, quando ela não conseguiu estar lá. "Nós mulheres somos capazes de construir políticas públicas onde o Estado não faz. Aqui nesse quilombo, tivemos o primeiro cursinho popular da Uneafro. Temos brinquedoteca, horta comunitária, cozinha que prepara refeições para tantos", conta. "Foi aqui que eu pisei o pé e me firmei, com essas árvores que têm 50 anos ou mais. Foi aqui que fundamos o primeiro quilombo urbano da cidade de São Paulo, que recebe a todos, quilombo de resistência", conta. Se depender da Coalizão, os próximos serão nos Parlamentos. 

Para acessar mais informações sobre as candidaturas que participam do Quilombo no Parlamento, acesse: quilombonosparlamentos.com.br

Edição: Glauco Faria