Ceará

Conta de luz

Entrevista | "O aumento do preço da energia elétrica tem impacto direto no preço dos alimentos"

Luciana Crisóstomo, do Sindeletro, falou sobre o impacto do aumento da tarifa na vida dos consumidores cearenses

Brasil de Fato | Juazeiro do Norte CE |

Ouça o áudio:

Novo reajuste na tarifa de energia elétrica no Ceará pode chegar a 25,9% - Marcelo Camargo/Agência Brasil

Em abril, a ENEL anunciou um aumento médio de 24,88% na conta de energia dos cearenses. O reajuste que foi aprovado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) chega logo após o fim da bandeira de escassez hídrica anunciado pelo Governo Federal. Mas qual o impacto desse aumento da tarifa de energia elétrica na vida dos consumidores cearenses?

Para falar sobre essa mudança e sobre as suas consequências, vamos receber Luciana Crisóstomo, Diretora do Sindicato dos Eletricitários do Estado do Ceará (SINDELETRO). Confira:

Brasil de Fato – Em abril, tivemos o aumento médio de 24,88% da conta de energia elétrica no estado do Ceará. O que representa esse aumento na vida das pessoas?
É muito lógico o que vai acontecer, vai ser um impacto direto no bolso dos consumidores e da população em geral, e não só isso, esse impacto vai repercutir na questão do emprego e das empresas, porque o que acontece, toda empresa usa energia básica, é uma questão de uso de qualquer empresa, seja comércio ou indústria, e obviamente para elas manterem o lucro e até sobreviverem, elas não vão guardar esse custo para a empresa, elas vão repassar esse custo para o seu produto final ou retirar do bolso dos seus trabalhadores.

Já ouvi inclusive em uma entrevista que nosso estado sobrevive basicamente do ramo de serviços, o turismo é um dos serviços que mais emprega pessoas no estado do Ceará, e já ouvi do Presidente da Associação dos Hotéis que eles vão ter que repassar esse custo e diminuir o número de trabalhadores, seguido da redução de seus salários. Então, repercute diretamente no bolso da população, seja através da sua conta de energia, seja por contas que o empregador dele vai retirar do bolso dele de outra forma, é uma espécie de efeito dominó.

A energia elétrica é um insumo básico de toda a linha de produção, seja comércio ou indústria de transformação, nós precisamos naturalmente de energia. Quando o preço da energia sobe e ela subiu muito, não há como a gente dizer que foi uma subida perto da inflação, porque nós estamos com a inflação na casa dos dois dígitos já chegando aos 12%, mas esse reajuste foi simplesmente o dobro da inflação.

Brasil de Fato – Você falou um pouco sobre como o aumento da energia pode impactar na redução dos empregados no setor de serviços. E quando o assunto é alimentação, existem produtos que precisam do freezer ou geladeira para ser conservados. Esse aumento do preço da energia também vai impactar no preço dos alimentos?

Totalmente. Aqui no estado existem as empresas da fruticultura, e elas necessitam basicamente de irrigação, e não existe irrigação sem energia elétrica. E vai impactar bastante esse aumento da energia nessas empresas e principalmente no preço dos produtos que essas empresas oferecem, porque o aumento ele foi diferenciado.

Quem possui um menor consumo de energia vai passar a pagar o maior aumento, chegando a 25,9%, que são em sua maioria pessoas da agricultura e do ramo rural. Então, essas pessoas vão pagar 25,9% de aumento na sua conta de luz devem repassar esse aumento para o preço dos alimentos, dos laticínios, das frutas, verduras, flores e toda sua linha de produção.

Brasil de Fato – O reajuste médio vai ser aplicado a todos os consumidores de forma igual ou vai ter diferença entre as categorias de consumo de energia?
Sempre existe uma diferenciação. O sistema Elétrico Brasileiro foi alterado durante o governo Fernando Henrique Cardoso para que ninguém entenda. Nem todo mundo paga o mesmo valor de consumo de energia. Existem os chamados “Consumidores Cativos” que pagam uma taxa mais alta do que os consumidores chamados “Consumidores Mercado Livre”. Os consumidores cativos somos nós, pequenos comércios, pequenas indústrias, até médias indústrias, baixa renda, nós somos todos consumidores cativos, porque nós somos obrigados a consumir diretamente da distribuidora, ou seja, da Enel. Então nós estamos recebendo nos residenciais 23,99% de reajuste.

Já as pessoas ou pequenas empresas de baixa tensão como os comércios, os rurais vão receber 25,9%. E o pessoal que consome alta-tensão, que são os chamados “Consumidores Mercado Livre”, estão recebendo 24,16%. Então é um absurdo esse reajuste. Principalmente porque se você for olhar a justificativa tanto para a bandeira vermelha quanto para a bandeira de escassez hídrica é para não deixar as empresas de distribuição terem prejuízos, mas se você for ver durante esses últimos três anos 2019, 2020 e 2021, nenhuma empresa de distribuição teve prejuízo, todas tiveram lucros exorbitantes.

A ENEL agora passou dos quatrocentos milhões de reais em lucro. Como é que uma empresa que está tendo o lucro de mais de quatrocentos milhões de reais precisa de ajuda do Governo Federal para se manter? E aí pergunto a você cearense que tem o seu pequeno comércio, que tem a sua pequena indústria, você recebe ajuda do governo se você passar necessidade? Eu não vejo o governo ajudando o pequeno comerciante e o pequeno industrial. Não vejo. Cada um que corra o risco no seu negócio.

Desde seu processo de privatização ainda em 1998, a ENEL tem a garantia de que ela nunca vai ter prejuízo, foi um total negócio feito de pai para filho, você nunca ter o risco de ter prejuízo na vida e esse dinheiro sai do nosso bolso, do bolso do cearense para ir para Itália.

Brasil de Fato – Quem consome menos energia vai passar a pagar uma porcentagem maior do que grandes empresas que consomem mais. Tem uma explicação para essa divisão? Como funciona?
Existe uma explicação sim, mas que não justifica. Na década de 1990, quando Fernando Henrique Cardoso decidiu privatizar as empresas de distribuição de energia, na realidade ele queria privatizar todo o setor de energia, tanto a distribuição, mas também a transmissão e geração. Porém, ele não teve tempo hábil por conta do apagão que aconteceu em 2001, e foi nessa época que ele alterou totalmente a lógica de quem paga e quanto paga pelo consumo de energia elétrica.

Então, as grandes indústrias vão comprar energia elétrica em leilões que acontecem periodicamente durante o ano pagando um valor bem menor, tarifas médias de cerca de trinta a sessenta por cento pelo giga watt, e por ela comprar no atacado, vamos dizer assim, essas empresas compram por um valor mais barato do que nós, que compramos no varejo, e por isso pagamos bem mais caro e ainda sofremos com esses reajustes periódicos abusivos impostos pela lei da concessão.

Esse contrato de concessão que consta o reajuste periódico acontece sempre no mês em que a empresa foi privatizada, ou seja, a Coelce foi privatizada em abril de 1998, então todo mês de abril ela solicita para a Aneel uma porcentagem de reajuste, e já houve casos em que a Aneel concedeu um valor de reajuste até mesmo maior do que o valor solicitado pela Enel.

A ANEEL é uma agência reguladora e que deveria fazer o papel de regulador, de controlador, de fiscalizador, saber se as indústrias e as empresas do ramo estão cumprindo com o seu papel de serviço público, mas o que nós vemos é que na realidade eles fecham os olhos para os problemas das empresas e jogam o problema para cima do consumidor. E protegem muito essas grandes empresas, você não vê nenhuma delas correndo risco de perder a sua concessão e olha que nós do Sindicato dos Eletricitários lutamos muito na época da privatização dizendo “olha, vai causar aumento na tarifa, vai causar mortes”, e infelizmente aconteceu tudo isso que nós já dizíamos.

Brasil de Fato – E existe uma justificativa para esse aumento na tarifa imposto pela ENEL agora no mês de abril?
Então, ela faz estudos, ela diz que os custos aumentaram, entregam esses estudos para a ANEEL, e a agência nacional apenas assina embaixo. Se ela disser que precisa de um reajuste de 10%, a ANEEL vai dar de10%, se ela disser que precisa de 20%, a ANEEL dá 20%. Isso acontece para que ela mantenha a taxa de lucro, porque essa taxa de lucro não pode diminuir. O que é um absurdo, porque é em decorrência disso que eles fazem reajustes periódicos.

Brasil de Fato – O Ministério Público do Ceará anunciou a criação de uma comissão em defesa dos consumidores cearenses diante do reajuste da tarifa de energia elétrica solicitada pela ENEL e aprovada pela ANEEL. Qual é a importância dessa iniciativa?
Toda iniciativa que venha priorizar a população ela é louvável. Para garantir o direito do consumidor, garantir os direitos da população, tudo é bem-vindo, mesmo que tardia. Já se passaram 25 anos desde a privatização da Coelce e só agora é que o Ministério Público, a OAB, a Assembleia Legislativa abriram os olhos para essa questão. Olhe que nós já denunciávamos isso há muito tempo. Não só nós dos eletricitários, mas os movimentos sociais, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) que fazem um trabalho belíssimo, o pessoal da Via Campesina. Então todos nós dos movimentos sociais já tínhamos levantado essa bola desde a época da privatização para esse absurdo.

Então agora é a hora de alguma atitude ser tomada, aconteceu agora o reajuste de 25%, mas pode ser que amanhã tenha um novo de 30%. Aliás, o Governo Federal novamente quer privatizar o setor elétrico, voltando os olhos agora para a Eletrobras. Se isso acontecer, vai ser a mesma coisa, nenhuma empresa que é privatizada vai diminuir os seus preços. Há estudos inclusive da FIESP e da FIEC, que o impacto da privatização da Eletrobras vai gerar um novo aumento de mais 25% na tarifa de energia elétrica. Tu imaginas o que é ter um aumento em um único ano de mais de cinquenta por cento na sua conta de luz? É pra acabar com qualquer comércio e qualquer indústria. Serão mais desempregos e mais fome, e é isso que nós estamos tentando alertar mais uma vez aos legisladores, aos candidatos que estão aí se colocando ao Senado, ao Governo do Estado do Ceará. O Ceará corre um risco tremendo de total desindustrialização por falta de competitividade, caso a energia suba nessas proporções, estamos avisando que a Eletrobras sendo vendida vai ser uma nova ENEL.

Brasil de Fato – Já existe alguma iniciativa contra a privatização da Eletrobras? Alguma mobilização?
Na realidade nós já estamos há mais de seis anos na luta contra as privatizações. Já passamos por questões no Congresso, que infelizmente do mesmo jeito que é a Assembleia Legislativa do Ceará, aprovou a privatização da ENEL. Hoje, os mesmos deputados estaduais que na época foram a favor da privatização, estão dizendo que foi um erro. Agora estamos a depender aí do Tribunal de Contas da União (TCU) que está avaliando todo esse processo e nós estamos cruzando os dedos para que esses ministros do TCU sejam realmente os nossos olhos e ouvidos e não deixem que se concretize esse pecado contra o Brasil.

Nós temos contatos com alguns deputados aqui do Ceará, com membros da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e a gente dá todo subsídio para que eles possam realmente ver se alteram a legislação ou alteram o contrato. Quando a gente quer, a gente corre atrás essa é a verdade, e o brasileiro tem que estar mais antenado vendo o que acontece na sua Câmara Municipal, na Assembleia Legislativa, porque é lá que ocorrem os mandos e os desmandos. A gente peca muito porque não vai atrás de saber o que está acontecendo.

Brasil de Fato – O deputado estadual Renato Roseno (PSOL) protocolou no dia início de maio um projeto de decreto legislativo para que a população cearense decida se quer ou não a manutenção da concessão privada dos serviços de energia elétrica. E se a proposta for aprovada pelos deputados, será o primeiro plebiscito na história do Ceará. Qual é a importância dessa ação?
Essa atitude do Renato Roseno é muito louvável, realmente ela vem em boa hora porque nós precisamos fazer essa crítica real a ENEL que é a controladora da Coelce. Esta aí tem os piores índices de reconhecimento público, com maior taxa de reclamação e esse é o momento de dizer que nós cearenses queremos a nossa Coelce de volta, controlada pelo estado e regulamentada de uma forma mais transparente. Essa é uma boa atitude do deputado e acho que novamente a população tem que ser esclarecida sobre essas questões e dar a sua resposta.

Brasil de Fato – Estamos chegando ao final da nossa entrevista e você pode deixar deixar alguma mensagem aos nossos leitores?
É importante mais uma vez que a gente não desista e que tome conta do que é nosso, em relação tanto a ENEL, quanto a Eletrobras. Energia é uma questão primordial e quem está vendo aí a guerra na Ucrânia, não é outra questão a não ser uma disputa por energia, seja o gás, seja o petróleo.

E aí a gente vem para o Brasil onde estão querendo entregar a nossa energia nas mãos de estrangeiros, por exemplo. Os Estados Unidos compra uma parte da energia, a Rússia compra outra, eles entram em guerra e como é que nós ficamos? E nós, Sindicato dos Eletricitários do Ceará vamos sempre manter a atenção da população para essas informações e dizer que nós precisamos estar juntos, sociedade organizada, movimentos sociais, movimento sindical para lutar pelos direitos da população que é a parte mais frágil da história.

Para receber nossas matérias diretamente no seu celular clique aqui.

Edição: Camila Garcia