Coluna

Enquanto o planeta queima, o gasto em armas bate recordes

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Dia Al-Azzawi (Iraque), Massacre de Sabra e Shatila, 1982–⁠83 - Reprodução
Em 2021, o mundo gastou mais de 2 trilhões de dólares em guerra

Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Dois relatórios importantes foram divulgados mês passado e nenhum deles recebeu a atenção merecida. Em 4 de abril, foi publicado o relatório do Grupo de Trabalho III do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), evocando uma forte reação do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres. O relatório “é uma ladainha de promessas climáticas não cumpridas. É um arquivo da vergonha, catalogando as promessas vazias que nos colocam firmemente no caminho para um mundo inabitável”, disse ele. Na COP 26, os países desenvolvidos se comprometeram a gastar modestos 100 bilhões de dólares para o Fundo de Adaptação para ajudar os países em desenvolvimento a se adaptarem às mudanças climáticas.

Enquanto isso, em 25 de abril, o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI) divulgou seu relatório anual, revelando que os gastos militares mundiais ultrapassaram 2 trilhões de dólares em 2021, uma cifra jamais atingida anteriormente. Os cinco maiores gastadores – Estados Unidos, China, Índia, Reino Unido e Rússia – são responsáveis por 62% desse valor; os Estados Unidos, sozinhos, responsáveis por 40% do total de gastos com armas.

Há um fluxo interminável de dinheiro para armas, e uma ninharia para evitar um desastre planetário.


Shahidul Alam/Drik/Majority World (Bangladesh), A resiliência do habitante de Bangladesh médio é notável. / Reprodução

Essa palavra “desastre” não é um exagero. O secretário-geral da ONU, Guterres, alertou que “estamos em um caminho rápido para o desastre climático… É hora de parar de queimar nosso planeta”. Essas palavras são baseadas nos fatos contidos no relatório do Grupo de Trabalho III. Agora está firmemente estabelecido no registro científico que a responsabilidade histórica pela devastação feita ao nosso meio ambiente e ao nosso clima recai sobre os Estados mais poderosos, liderados pelos Estados Unidos. Há pouco debate sobre essa responsabilidade em um passado distante, consequência da implacável guerra contra a natureza levada a cabo pelas forças do capitalismo e do colonialismo.

Mas essa responsabilidade também se estende até a atualidade. Em 1º de abril, um novo estudo foi publicado no The Lancet Planetary Health demonstrando que, de 1970 a 2017, “as nações de alta renda são responsáveis por 74% do uso global de material excedente, impulsionado principalmente pelos EUA (27%) e pelos 28 países de alta renda da UE (25%)”. O uso de materiais excedentes nos países do Atlântico Norte se deve à utilização de recursos abióticos (combustíveis fósseis, metais e minerais não metálicos). A China é responsável por 15% do uso global de material excedente e o restante do Sul Global é responsável por apenas 8%. O uso desse material excedente nos países de baixa renda é impulsionado em grande parte pela utilização de recursos bióticos (biomassa). Essa distinção entre recursos abióticos e bióticos nos mostra que o uso de materiais excedentes no Sul Global é amplamente renovável, enquanto o dos estados do Atlântico Norte não.

Tal intervenção deveria estar nas primeiras páginas dos jornais do mundo, particularmente no Sul Global, e suas descobertas amplamente debatidas nos canais de televisão. Mas mal foi notado. Prova decisivamente que os países de alta renda do Atlântico Norte estão destruindo o planeta, e precisam mudar seus caminhos e investir nos vários fundos de adaptação e mitigação para ajudar os países que não estão criando o problema, mas que sofrem com o seu impacto.

Os estudiosos que escreveram esse artigo observam que “as nações de alta renda têm a esmagadora responsabilidade pelo colapso ecológico global e, portanto, têm uma dívida ecológica com o resto do mundo”. Esses países precisam assumir a liderança em fazer reduções radicais no uso de seus recursos para evitar mais degradação, o que provavelmente exigirá abordagens transformadoras de pós-crescimento e decrescimento”. Esses são pensamentos interessantes: “reduções radicais no uso de recursos” e depois “abordagens pós-crescimento e decrescimento”.


Simon Gende (Papua Nova Guiné), O exército estadunidense encontra Osama bin Laden escondido em uma casa e o mata, 2013 / Reprodução

Os Estados do Atlântico Norte – liderados pelos Estados Unidos – são os maiores gastadores de riqueza social em armas. O Pentágono – as forças armadas dos EUA – “continua sendo o maior consumidor individual de petróleo”, diz um estudo da Brown University, “e, como resultado, um dos maiores emissores de gases de efeito estufa do mundo”. Para conseguir que os Estados Unidos e seus aliados assinassem o Protocolo de Kyoto em 1997, os Estados membros da ONU tiveram que permitir que as emissões de gases de efeito estufa pelos militares fossem excluídas dos relatórios nacionais sobre emissões.

A vulgaridade desses assuntos pode ser demonstrada claramente pela comparação de dois valores monetários. Primeiro, em 2019, as Nações Unidas calcularam que a lacuna anual de financiamento para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) era de 2,5 trilhões de dólares. Entregar os 2 trilhões anuais em gastos militares globais para os ODS ajudaria muito a lidar com os principais ataques à dignidade humana: fome, analfabetismo, falta de moradia, falta de assistência médica e assim por diante. É importante notar aqui que o valor de 2 trilhões de dólares do SIPRI não inclui o desperdício vitalício de riqueza social dado a fabricantes privados de armas para sistemas de armas. Por exemplo, o sistema de armas Lockheed Martin F-35 está projetado para custar quase 2 trilhões de dólares.

Em 2021, o mundo gastou mais de 2 trilhões de dólares em guerra, mas apenas investiu – em um cálculo generoso – 750 bilhões de dólares em energia limpa e eficiência energética. O investimento total em infraestrutura energética em 2021 foi de 1,9 trilhão, mas a maior parte desse investimento foi para combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão). Assim, os investimentos em combustíveis fósseis continuam e os investimentos em armas aumentam, enquanto os investimentos para a transição para novas formas de energia mais limpa permanecem insuficientes.


Aline Amaru (Tahiti), La Famille Pomare (A família Pomare), 1991 / Reprodução

Em 28 de abril, o presidente dos EUA, Joe Biden, pediu ao Congresso do país que fornecesse 33 bilhões de dólares para sistemas de armas a serem enviados à Ucrânia. O pedido por esses fundos vem em paralelo a declarações incendiárias feitas pelo secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, que disse que os EUA não estão tentando remover as forças russas da Ucrânia, mas “ver a Rússia enfraquecida”. O comentário de Austin não deve ser uma surpresa. Isso reflete a política dos EUA desde 2018, que tem sido impedir que China e Rússia se tornem “rivais próximos”. Os direitos humanos não são uma preocupação; o foco é evitar qualquer desafio à hegemonia dos EUA. Por isso, a riqueza social é desperdiçada em armas e não usada para resolver os dilemas da humanidade.


Teste atômico de Shot Baker sob a Operação Crossroads, Bikini Atoll (Ilhas Marshall), 1946 / Reprodução

Tomemos como exemplo a forma como os Estados Unidos reagiram a um acordo entre as Ilhas Salomão e a China, dois vizinhos. O primeiro-ministro das Ilhas Salomão, Manasseh Sogavare, disse que o acordo visa promover o comércio e a cooperação humanitária, não a militarização do Oceano Pacífico. No mesmo dia do discurso do primeiro-ministro Sogavare, uma delegação de alto nível dos EUA chegou à capital do país, Honiara. Eles disseram ao primeiro-ministro Sogavare que, se os chineses estabelecerem qualquer tipo de “instalação militar”, os Estados Unidos “teriam preocupações significativas e responderiam de acordo”. Eram ameaças simples. Alguns dias depois, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin, disse: “os países insulares no Pacífico Sul são estados independentes e soberanos, não um quintal dos EUA ou da Austrália. Sua tentativa de reviver a Doutrina Monroe na região do Pacífico Sul não terá apoio e não levará a lugar nenhum”.

As Ilhas Salomão têm uma longa memória da história do colonialismo australiano-britânico e cicatrizes de testes da bomba atômica. A prática do “blackbirding” sequestrou milhares de habitantes das Ilhas Salomão para trabalhar nos campos de cana-de-açúcar em Queensland, Austrália, no século 19, levando à Rebelião de Kwaio em 1927, em Malaita. As Ilhas Salomão lutaram arduamente contra a militarização, votando em 2016 com o mundo para proibir as armas nucleares. O apetite de ser o “quintal” dos Estados Unidos ou da Austrália não existe. Isso ficou claro no poema luminoso “Sinais de Paz” (1974), do escritor das Ilhas Salomão, Celestine Kulagoe:

Um cogumelo brota de
um árido atol do Pacífico
Desintegra-se no espaço
Deixando apenas um resíduo de poder
ao qual, por uma ilusória
paz e segurança,
o homem se apega.

Na calma da madrugada
o terceiro dia depois
o amor encontrou a alegria
no túmulo vazio
a cruz de madeira da desgraça
transformada em símbolo
de serviço de amor
e Paz.

No calor da calmaria da tarde
a bandeira da ONU tremula
escondida da vista por
bandeiras nacionais
sob as quais
homens sentados com os punhos cerrados
Assinam tratados
de paz.

Cordialmente,

Vijay.

 

*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano, diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Felipe Mendes