Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | O que ainda falta ser dito sobre a inocência de Lula

"O processo contra o Lula se tornou um estranho caso em que a condenação era a própria prova da culpa"

Brasil de Fato | Santa Maria |
"Revogada a sentença acusatória e declarada a suspeição do Juiz, o que resta sobre o Lula é nada, nem um processo legítimo, nem provas, nem convicção, nem suspeição e nem a possibilidade de culpa" - Ricardo Stuckert

Quando os processos e sentenças contra o Lula na Vara de Curitiba foram anulados pelo ministro Fachin porque aquela não era a jurisdição correta e Moro não era o Juiz Natural para aqueles processos, os que sempre festejaram a sua condenação disseram “ah, as condenações contra o Lula foram anuladas por questões processuais formais, mas isso não significa que Lula é inocente”.

Quando o STF declarou que Moro foi parcial, tendencioso, persecutório, arbitrário, que conspurcou o devido processo legal em conluio com procuradores, disseram, “ah, mas essa é uma questão processual, isso não significa que o STF absolveu Lula”.

Quando os processos de Curitiba foram redistribuídos para as jurisdições corretas e um a um foram sendo arquivados, por falta de consistência nas denúncias ou prescrição de prazo, disseram, “ah, mais uma vez questões processuais, isso não absolve Lula”.

Quando Dallagnol foi condenado a indenizar Lula pelo abuso de autoridade naquele infame PowerPoint na apresentação da denúncia do Triplex, disseram, “Ah, mas isso não significa que as acusações eram falsas, que Lula é inocente”.

Agora, quando um Comitê de 15 juízes internacionais da ONU ratifica tudo isso, afirmando que o Juiz era parcial, que Lula não teve um julgamento justo, que sofreu arbitrariedades e teve direitos civis e políticos violados, novamente a mesma imprensa que ajudou a tornar a Lava Jato uma operação de perseguição política e fora da Lei, vem a público e diz: “isso não quer dizer também que o ex-presidente Lula foi inocentado, porque tudo a gente tem que repetir bem devagarzinho, né?", pra usar as palavras literais da apresentadora da Globo News Maria Beltrão.

Ou seja, a resposta daqueles que ajudaram a conspirar contra a democracia e o Estado de Direito e não têm coragem de reconhecer os próprios erros é sempre a mesma: “apesar de todas estas manifestações e correções da Justiça, Lula não foi inocentado”.

Então... embora este seja o discurso corrente nos meios de comunicação que outrora agiram em colaboração com a Lava Jato e glorificaram Moro, todos os juízes e advogados que ouço se pronunciarem sobre isso sempre advertem que este é um tipo de afirmação absurda, imprópria e que desconsidera um dos pilares do Estado de Direito moderno: a presunção de inocência. Ou seja, todos são inocentes até que se prove o contrário, até que se tenha uma sentença condenatória válida.

Então, você não precisa ser inocentado para se tornar inocente, o que ocorre é exatamente o contrário, é preciso que haja um processo transitado e julgado com uma sentença condenatória para que você seja considerado culpado. Até lá todos são inocentes, portanto, se não há nenhuma denúncia válida contra o Lula, nenhuma acusação posta, nenhum processo em andamento, nenhuma sentença condenatória legítima, Lula é tão inocente quanto a maioria de nós.

Ok, este argumento juridicamente perfeito já seria suficiente, como o é, para rechaçar de vez todos estes infames que ficam sofismando sobre a inocência de Lula, querendo manter sobre ele, contra todas estas decisões judiciais, a pecha simbólica de suspeito e réu.

Mas eu ainda não me sinto plenamente confortável nem contemplado com este tipo de afirmação, porque ela não repõe a verdade sobre o que foi aquela condenação do Lula no caso do Triplex, a única de fato proferida pelo então Juiz Moro. Fazendo aqui uma comparação hiperbólica, este é o mesmo tipo de afirmação jurídica que se daria para evitar dizer que o Maníaco do Parque era o assassino daquelas mulheres, porque ele não havia sido ainda condenado, mesmo depois de exaustivamente comprovado. Ou seja, ele só se tornaria culpado depois de haver uma sentença condenatória.

Agora, quem acompanhou aquele caso do Triplex, da acusação à sentença, sabe que o que ocorreu ali foi exatamente o contrário. Não havia nenhuma prova, e a sentença condenatória do Juiz Moro foi uma peça de ficção, uma obra de contorcionismo linguístico e jurídico já exaustivamente debatida e esquartejada por inúmeros juristas e advogados, a ponto de se tornar um exemplo de julgamento parcial, viciado e com desvio de finalidade, que será estudado no futuro nos cursos de Direito sobre como não conduzir um processo e como não julgar. O que ocorreu ali foi um julgamento subjetivo, por “convicção” e não por provas, para dizer o mínimo.

Um exemplo destas obras que se debruçaram criticamente sobre este julgamento e desmontaram a sentença do Moro está na trilogia “O Livro das Suspeições”, “O Livro das Parcialidades” e “O Livro dos Julgamentos”, que conta com dezenas de artigos de quase uma centena de juristas e advogados.

Agora, assim como se encontra facilmente centenas de juristas e advogados que provam que aquela foi uma condenação sem provas, de outro lado nunca houve um jurista sequer que se aventurasse na árdua tarefa de defender o julgamento e a sentença do Moro, a não ser os próprios juízes das instâncias superiores que ratificaram a sentença. Mas sobre estes não há muito o quer dizer, todos devem lembrar que tempos foram aqueles, e o que acontecia com qualquer um que ousasse se colocar no caminho da Operação Lava Jato. Naquele processo, no fundo, os juízes dos tribunais superiores não estavam julgando novamente o Lula, estavam julgando o trabalho do Moro, que na época era tratado como um Semideus pela imprensa e por parte significativa da população. E todos sabem o mal que o incenso da mídia e da plateia é capaz de fazer à vaidade humana.

Então, o fato é que o julgamento do Lula NÃO foi mais um daqueles casos em que se tem muitas provas, mas a sentença é anulada por irregularidades processuais, e aí o sujeito se torna inocente por questões formais, pelo princípio da presunção de inocência. Não, o que houve ali foi exatamente o contrário, era um processo em que não havia absolutamente nenhuma prova, mas, paradoxalmente, houve uma sentença condenatória, baseada apenas na convicção do Juiz, o que tornava o Lula formalmente culpado. Ou seja, apesar de não haver provas o Lula era formalmente culpado, porque houve um fato jurídico, a condenação.

O fato de não haver provas era tão evidente que chegou a virar senso comum. É só observar que sempre que alguém se referia ao Ex Presidente como “ladrão”, bastava perguntar “mas o que ele roubou?” que a resposta era apenas: “ele foi condenado, aceita!”. Ou seja, sequer os seus detratores sabiam qual teria sido a corrupção ou crime naquele caso, ou a razão da condenação do Juiz.

E assim, o processo contra o Lula se tornou um estranho caso em que a condenação era a própria prova da culpa.

Agora, revelada e declarada pela Justiça a parcialidade do Juiz Moro, sua tendenciosidade, seu viés acusatório, seus interesses políticos, seu conluio com o Ministério Público para favorecer a acusação, seu desprezo pelo direito de defesa, suas violações aos direitos dos réus, pôde-se entender com clareza porque ele trouxe os processos do Lula para Curitiba tirando-os de suas jurisdições naturais, e porque ele condenou o ex-Presidente sem provas, apenas por suas convicções pessoais.

Até certa medida, a convicção formada por um Juiz pode ser admitida como parte da legitimação da sentença, embora não exclusivamente. Mas sabemos que convicções são subjetivas, tem a ver com conhecimentos, com a razão, mas também tem a ver com crenças, desejos, interesses, ideologias e poder. Por isso, é fundamental a imparcialidade do juiz, pois quando o juiz é parcial se perde a fé pública em suas convicções.

Então, voltando ao começo, para entendermos corretamente tudo o que aconteceu neste caso e colocar no seu devido lugar, ou seja, no lixo, aqueles argumentos que dizem que as decisões recentes não inocentaram Lula, precisamos inverter a ordem das coisas. Mais ou menos como se faz quando se troca a direção de causalidade em uma função matemática. E é importante trazer a matemática aqui, porque esta é uma questão puramente lógica.

Ao invés de apenas reiterar que Lula é inocente porque no Estado de Direito todos são inocentes até que se prove o contrário, o correto é dizer o oposto disso, que Lula é que foi considerado culpado apenas porque havia uma condenação contra ele, porque no Estado de Direito alguém só é culpado se há uma sentença condenatória, mas que nunca houve um processo legítimo nem qualquer prova contra ele. Não é a sua atual inocência que é formal, ao contrário, sua culpa é que era apenas formal, porque a única coisa que pesava sobre ele era uma sentença, nada mais.

Mas revogada a sentença acusatória e declarada a suspeição do Juiz, o que resta sobre o Lula é nada, nem um processo legítimo, nem provas, nem convicção, nem suspeição e nem a possibilidade de culpa. Se uma pessoa assim não pode ser declarada inocente, quem poderá?

* Renato Souza, professor Titular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), formado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Pelotas (1992), mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996) e doutorado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004).

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko