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Perfil | Uma mãe na luta pelo desencarceramento

Saga de uma professora pela garantia de direitos ao filho preso impulsionou criação de Frente pelo Desencarceramento

Curitiba (PR) |
"A gente paga imposto para ressocialização, a gente não paga imposto para homicídio", diz Marilene Lucas da Silva - Foto: CDH Alep

Foi tão em cima da hora que, quando a professora aposentada Marilene Lucas da Silva percebeu que ninguém poderia representar o Paraná pela Frente pelo Desencarceramento do estado, ela disse que iria. Já fazia quase dois anos que reunia denúncias de violação de direitos humanos no sistema penitenciário do Paraná, que perder a oportunidade de entregar isso ao comitê de enfrentamento à tortura da Organização das Nações Unidas (ONU), no Brasil, no início de fevereiro, estava fora de cogitação.

Reuniu os documentos que tinha, em menos de dois dias, e pegou um avião para Brasília. Ela chegaria à capital brasileira no mesmo dia que estava previsto o encontro com a comitiva da ONU, para o qual 20 mulheres de diversos estados do país se organizaram para participar. O motivo era trazer denúncias de violações dos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade durante a pandemia nos presídios do Brasil.


"A gente paga imposto para ressocialização, a gente não paga imposto para homicídio", diz Marilene Lucas da Silva / Divulgação

Marilene trabalhava nessa luta desde 2020. Veio de uma família tradicional, estudou em colégio de freiras, mas, quando professora, atuou apenas em colégios periféricos da cidade de Campo Largo, que fica cerca de 30 quilômetros de distância de Curitiba. Isso lhe deu outra visão de mundo, ao perceber que as crianças traziam em suas brincadeiras uma realidade diferente da dela, em que a violência policial e o tráfico de drogas eram rotina.

O que nunca imaginou é que veria isso dentro da própria família, quando o filho foi preso por tráfico, no ano de 2019. Por sofrer de epilepsia refratária, que é quando o paciente precisa de um acompanhamento direto, pois o corpo muda a reposta às medicações de forma recorrente, ele foi encaminhado ao Complexo Médico Penal (CMP), localizado na Região Metropolitana de Curitiba, na cidade de Pinhais.

Em tese, a unidade deveria ter uma estrutura médica para atender aos apenados doentes, capaz de dar todo o suporte e ainda atuar pela ressocialização, seja em relação a condições físicas ou mentais. Mas bastou uma primeira visita ao filho para perceber que aquele lugar não se encaixava nisso.

Debilitado e em uma cadeira de rodas, no fim de 2019, o jovem que a mãe via mal conversava, diferenciando-se muito daquele que entrara no sistema. A comunicação mais eficaz entre eles veio então por um bilhete que deixou sair da unidade e que colocou a mãe em uma luta sem volta: o CMP era uma masmorra e seu filho, sentiu, estava sendo “envenenado”.

Naquela época, a Frente pelo Desencarceramento do Paraná ainda não existia, mas aquele bilhete serviria para semear a criação do grupo organizado que nasceria depois.

Marilene havia estudado neuropsicologia e, com dois filhos com epilepsia, há anos debruçava-se em pesquisas sobre a doença e a medicação, para garantir um tratamento adequado que não fosse prejudicial a eles. O tema do seu TCC foi exatamente este: interação medicamentosa na aprendizagem de pessoas com epilepsia. Então, ela sabia o que a doença significava. Por isso que, ao ver seu filho em uma cadeira de rodas, teve a certeza de que algo não ia bem. Mas ela precisava de provas.

“Em 24 de dezembro de 2019, soube que ele havia sido transferido para um hospital. Não me deixaram ver meu filho porque ele era responsabilidade do Estado”, relembra Marilene. “Com muito custo consegui entrar e filmei ele. Daí eu vi que seus olhos estavam inchados e a boca inchada. Aquilo era sinal de alergia. Também tirei foto da cabeça, que estava cheia de feridas. Pensei: como que pode se tem médico lá dentro? Aí eu comecei a luta.”

O caminho que Marilene passou a trilhar a partir disso foi de uma investigadora, o que abriu portas para que outras mães e esposas com filhos e companheiros presos no sistema, no Paraná, buscassem-na para, juntas, lutarem pela garantia dos direitos que já são previstos na Lei de Execuções Penais (LEP).

Das primeiras conversas com a pastoral carcerária às investigações que fez por conta própria, Marilene encontrou outras mulheres que, como ela, travavam uma luta solo pela pessoa que estava recolhida no sistema.

“Paralelo à questão do meu filho, familiares de pessoas que morreram no sistema me procuraram. E aí começamos a conversar e vimos que CMP era, como eu gosto de chamar, central pra matar preso. As denúncias foram vindo e eu fui encaminhando. Muitas famílias eram sem instrução, sem leitura. E eu, como professora, achei que tinha mais que a obrigação de ajudar. Foi muito difícil no começo lutar sozinha.”

Entre as denúncias apontadas por Marilene estavam a retenção de medicação pelo sistema, má alimentação e a reutilização de itens básicos de saúde, como bolsas de colostomia. Dessas denúncias é que se formou um grupo de mulheres que criou a Frente pelo Desencarceramento do Paraná, no ano de 2020, organizando-se junto a entidades de outros estados por uma pauta em prol dos direitos humanos.

Foi uma virada de chave na vida de Marilene. Ela sempre acreditava que um dia encontraria algo pelo que lutar e, na busca pelo desencarceramento, achou o mote para a vida.

Em janeiro deste ano, quando o comitê contra a tortura da ONU visitava o Brasil, ela já tinha um arsenal de denúncias. Só era preciso organizar esse material. Como nenhuma das outas mulheres tinha a disponibilidade, Marilene foi, e naquela terça-feira, 1º de fevereiro, organizou rapidamente o documento que, quando pronto, trazia cerca de 200 páginas de violações cometidas em diversos presídios do Paraná.

Tudo foi impresso e entregue em mãos ao comitê. No ato, Marilene ainda pode falar, por cinco minutos, sobre as denúncias que trazia documentadas. Eram fotos, cartas, e-mails trocados, decisões judiciais, laudos médicos e a análise de quem se assessora com advogados para embasar os argumentos.

“A gente paga imposto para ressocialização, a gente não paga imposto para homicídio. E, sinceramente, o contribuinte está pagando pra matar”, denuncia.

Quatro meses após a denúncia ter ido à ONU, ela ainda aguarda respostas. No mês passado, o Conselho Regional de Medicina determinou a interdição ética do CMP, que não pôde mais receber apenados. Mas, para Marilene, é só um respingo de uma luta que é constante.

“Meu celular toca o dia inteiro. Vivo de muita leitura e gasto meu tempo pensando na forma como os juízes podem pensar para não fazer uma denúncia em que possam me pegar em contradição”, reverbera. “Eu tenho que pensar muito bem em todas as minhas palavras. Eu acho que denunciar algo vazio não resolve, você tem que denunciar em base na lei. Sempre tive essa queda pelo direito, mas não tive coragem de fazer, então, pra mim, é uma coisa a que me dedico.”

Nesses dois anos, Marilene já documentou 10 denúncias formais contra o sistema. Dentre elas, a do próprio filho, que conquistou, a muito custo, a prisão domiciliar. Mas mesmo que veja a vitória pela própria prole ela mantém a missão que encabeça por todos os outros filhos do sistema penal.

Edição: Frédi Vasconcelos e Lia Bianchini