Rio Grande do Sul

Investigação

MP investiga curso ‘pré-militar’ de Canoas em que crianças cantam sobre fuzil e pistola

Vídeo com crianças e adolescentes cantando foi gravado por oficial da reserva do Exército e passou a circular nas redes

Sul 21 |
Estudantes do curso, que não tem vinculação com o Exército, fazem treinamento militar simulado, portando também simulações de armas - Foto: CTPM/Facebook

“Quando eu morrer, quero ir de FAL e de Beretta, pra dar um tiro na cabeça do capeta”, cantam crianças e adolescentes em um vídeo que circulou nas redes sociais no dia 2 de abril. FAL refere-se  a um fuzil de fabricação belga. Beretta refere-se a uma pistola de origem italiana. Eles vestem calças e boinas que simulam um uniforme militar e são guiados por instrutores em uma marcha militar. Nas costas da camisa do instrutor, aparecem os dizeres “Pré-Militar” e CTPM, acima de uma caveira com uma faca entre os dentes. CTPM é uma abreviação de Centro de Treinamento Pré-Militar, empresa de Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, que oferece cursos para crianças e adolescentes de 7 a 17 anos. Outras partes do canto falam também de temas relacionados a armas, questões militares e guerra.

O vídeo foi gravado por Heraldo Makrakis, oficial da reserva do Exército e professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul. Morador do bairro Igara, em Canoas, ele diz que já se deparou com as aulas do curso no parque Capão do Corvo em diversas oportunidades.

Makrakis conta que, na primeira delas, viu um jovem que aparentava ter entre 19 e 20 anos dando instrução militar para crianças e que resolveu questioná-lo sobre a natureza da atividade, ouvindo como resposta que seria uma ação autorizada pelos pais e de preparação para que estudassem em escolar militar.

“Aí eu perguntei: mas qual escola militar? ‘Todas’. ‘Por exemplo, se quiserem entrar no colégio militar, eles vão chegar lá e não vão ter dificuldade de ordem unida’. Bom, na realidade, colégio militar não tem nenhum problema de ordem unida, porque é algo muito incipiente, é basicamente o que se fazia na década de 1970 nas escolas. Educação do corpo, fica quieto, obedece ao sargento-monitor, que é o bedel. Então, o que o rapaz comentou não tinha nenhum propósito. Mas depois ele comentou também que ‘no futuro, caso tenha uma escola cívico-militar em Canoas, nós vamos poder preparar esses alunos para essas escolas’”, relata Makrakis.

A busca pelo CNPJ da empresa indica que ela foi criada em 8 de janeiro, sob a razão social Nicholas Silva dos Reis e o nome fantasia Centro de Treinamento Pré-Militar. O registro da empresa é para as atividades de “Cursos preparatórios para concursos” e “Treinamento em desenvolvimento profissional e gerencial”. O endereço indicado é um apartamento no bairro Estancia Velha, de Canoas.

Apesar de o CNPJ ter sido criado em janeiro, o Centro de Treinamento Pré-Militar tem uma página oficial no Facebook, de 20 de fevereiro de 2020, pela qual se comunica com as famílias dos alunos e onde informações sobre os cursos são divulgadas. Além disso, Nicholas Reis concedeu entrevista para uma matéria publicada em 7 de agosto de 2020 pelo jornal O Timoneiro, de Canoas, sobre a criação do centro. Na notícia, ele explica que a proposta da empresa é atrair “jovens e adolescentes que têm como objetivo ingressar na carreira militar”, além de interessados em participar de “aventuras” e “realizar atividades físicas diferenciadas”.

A mesma matéria diz que Nicholas estava em processo de formação em Gestão de Segurança Privada e que havia servido à Força Aérea Brasileira em Canoas por três anos. Além disso, destaca que o curso foi criado em parceria com a esposa dele, Gabriela Cruz. Gabriela é proprietária de outra empresa, que tem o seu nome como razão social, e o nome fantasia de CTPM Artigos Militares, também criada em 8 de janeiro de 2022 e com o mesmo endereço do CNPJ ligado a Nicholas.

Em postagem dezembro de 2021, a página informa sobre a abertura de uma turma para meninos e meninas de 7 a 17 anos a ser iniciada no dia 5 de fevereiro, com aulas aos sábados pela manhã. No anúncio, ela indica que as aulas têm o objetivo de desenvolver habilidades como liderança, trabalho em equipe, coordenação motora, foco e concentração, agilidade e cidadania por meio de diversas atividades.

Entre essas atividades, estão: ordem unida militar; armamento e tiro com Airsoft; aula teórica sobre concursos, carreiras militares e policiais; patrulhas; defesa pessoal; camuflagem; noções de primeiros socorros; armadilhas; abrigos improvisados; montagem de acampamento e fogueira; técnicas de abordagem, entre outras.

A taxa de matrícula é de R$ 80 e a mensalidade é de R$ 120, valores nos quais estariam inclusos uma camiseta personalizada com o “nome de guerra” do estudante, um boné e uma máscara (ainda era obrigatório o uso para prevenção à pandemia).

No vídeo, Makrakis questiona o instrutor se ele é militar, ouvindo como resposta que ele é “civil” e “ex-militar”. Na sequência, pergunta sobre o “porquê da instituição fascista”. Na conversa com o Sul21, o militar da reserva prefere classificar o curso como uma manifestação “protofascista”, para não “gastar o termo”, mas ele diz que há valores compartilhados por grupos de caráter paramilitar que poderiam ser considerados como fascistas.

“Que valores são esses? É uma sociedade militarizada. Esse eu acho que é o cerne da questão. ‘Ah, mas eu quero militarizar’. Se você quer militarizar, ótimo, mas é cabível isso? É cabível uma criança que não é militar receber instrução militar? Onde é que cabe o militarismo? Para mim, é dentro dos quarteis. Eu não vejo de outra forma. ‘Vamos militarizar a Igreja, a escola’. Não, para mim não cabe isso. O fascismo é essa ideologia ultra nacionalista e autoritária que quer a repressão de qualquer tipo de oposição”, diz.

Para Makrakis, a existência do curso reflete a militarização da sociedade e é respalda por uma “idealização” por parte dos pais de que a escola militar ou cívico-militar daria melhores condições para que seus filhos se formassem “cidadãos ideais”. “Eu, como professor, vejo a idealização de uma sociedade platônica, em que não existe contradição e que somente alguns estão mais capacitados de conduzir a nau, que é aristocracia, e todo mundo cumpre as coisas direitinho, como é ensinado nas escolas cívico-militares”, diz.

Em setembro passado, a Prefeitura de Canoas, sob a gestão do agora afastado Jairo Jorge (PSD), assinou o termo de adesão da escola municipal de ensino fundamental (EMEF) Ícaro, que tem turmas de 1º ao 9º, ao Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares. A Ícaro foi a primeira escola da cidade a fazer parte do programa, mas a meta da Prefeitura, na época da assinatura da adesão, era ter outras três escolas cívico-militares até 2024.

Vereador de Porto Alegre, Leonel Radde (PT) diz que já vem monitorando a existência desses grupos pré-militares há alguns anos e que, recentemente, havia feito a denúncia sobre um curso ministrado no Parque Redenção, na Capital, em que os alunos faziam ordem unida (marcha militar característica), cantavam hinos militares e eram identificados por uniformes. “É uma lógica paramilitar, né, porque não é vinculado às forças armadas nem nada. Muitos que passam esses cursos não são nem militares”, diz.

A avaliação de Radde é que os cursos do tipo são ilegais, pois não se tratam de cursos preparatórios para o ingresso em colégio militar ou nas carreiras militares, como é o caso do tradicional curso Azambuja, que é focado na preparação para as provas de ingresso e concursos, e sim de treinamento militar sem qualquer vinculação com as Forças Armadas.

“É como se fosse um treinamento em si, então eles fazem apoio, abdominal, cânticos, vão para o mato, simulam movimentações de combate. Quer dizer, é nitidamente uma formação de milícia, uma formação paramilitar. A margem do Estado tu tem um treinamento que deveria ficar a cargo do Estado e, o pior, utilizando menores de idade para esse fim”, diz Radde.

Após a publicação do vídeo por Makrakis, Radde encaminhou uma denúncia ao Ministério Público pedindo investigação sobre o curso de Canoas. Contudo, ele destaca que são vários os cursos do tipo em andamento no País. O próprio CTPM menciona, em publicações nas redes sociais, sua vinculação com uma Federação de Grupos Pré-Militares do Brasil, sediada no Rio Grande do Norte.

Makrakis pontua que não se pode comparar cursos pré-militares com as atividades desenvolvidas por instituições de ensino militares porque estas contam com profissionais com formação específica para o trabalho com crianças e adolescentes.

“Eu gostaria de saber honestamente se o governo municipal, o nosso legislativo, está cobrando que as escolas tenham pedagogos. Será que tem um pedagogo, um profissional de educação? Pelo que eu vi ali, para mim era uma atividade de educação física. Tem professor de Educação Física? O Colégio Militar tem o tenente com curso de Educação Física, o sargento que é monitor com formação para isso. Então, não tem nada a ver. É a mesma coisa que eu juntar a gurizada na rua e brincar de médico, sair distribuindo cloroquina para ‘curar’ todo mundo”.

Ele avalia ainda que essa naturalização da militarização da sociedade é um processo que pode resultar em um regime de exceção. “O processo protofascista não nasce da noite para o dia, não vem por decreto. É um processo que vem amadurecendo na sociedade de aceitação de coisas que não deveriam ser aceitáveis. Eu acredito que a aceitação de crianças cantando hino militares na rua e simulando tropas de combate é inaceitável”.

Na mesma linha, o coronel Marcelo Pimentel, que foi um dos responsáveis pela propagação do vídeo, também classifica a existência de cursos como o oferecido pela CTPM como uma consequência da militarização das escolas e algo que vem na esteira do programa de escolas cívico-militares. Contudo, ele avalia que a atividade que aparece no vídeo e o hino militar cantado deveriam ser restritos aos quartéis.

“É uma música que se cantava no quartel do Exército na hora do exercício para animar a tropa e eram letras que, desde a minha época de tenente e capitão nos ano 80 e 90, já eram proibidas de serem cantadas fora dos quartéis, porque tratavam de interrogatórios, eram resquícios da época da ditatura, então poderiam causar algum constrangimento num Brasil que estava se reencontrando com a democracia e as forças armadas tentando reconstruir a sua imagem”, diz Pimentel.

Na quarta-feira (6), o Ministério Público do Rio Grande do Sul divulgou nota à imprensa informando que o promotor de Justiça João Paulo Fontoura de Medeiros solicitou à Justiça naquele dia a abertura de investigação a respeito das circunstâncias do vídeo e sobre a possibilidade de descumprimento de decisão judicial por parte do CTPM. Isso ocorre porque uma ação judicial proferida em 1º de outubro de 2018 acatou um pedido feito pelo MP para o encerramento das atividades de uma empresa que, segundo o promotor, teria o mesmo nome por violação de direitos de crianças e adolescentes. A decisão determina que “o réu se abstenha de exercer quaisquer atividades dirigidas a crianças ou adolescentes vinculadas ou não ao Grupo CTC Comandos, que consistam na realização de treinamentos de caráter paramilitar ou congênere”.

Questionado pela reportagem se o Centro de Treinamento Pré-Militar identificado no vídeo seria o mesmo que foi alvo da ação judicial, o MP indicou que isso será esclarecido pela investigação, bem como se os proprietários são os mesmos.

No entanto, o promotor destacou que a análise do vídeo feito por Heraldo Makrakis permite concluir “que os uniformes contêm os mesmos emblemas [e traços identificativos] constantes dos uniformes que aparecem nas fotos acostadas aos presentes autos”. Destaca ainda que publicações feitas pela página da CTPM sobre uma formatura realizada em 18 de dezembro de 2021 indicariam o descumprimento da decisão judicial de 2021. Diante disso, antes mesmo da conclusão da investigação, solicitou a aplicação de uma multa diária no valor de R$ 50 até que seja comprovado o encerramento das atividades do CTPM.

O Centro de Treinamento Pré-Militar foi procurado pela reportagem e, por meio de nota à imprensa (confira a íntegra ao final), informou que todas as atividades são “preparadas e permanentemente revisadas por assessoria pedagógica e ministradas por profissionais especializados em cada uma das áreas”. A nota afirma que o curso foi criado em 2020.

Diz ainda que, atualmente, o curso conta com mais de 100 alunos matriculados que estariam sendo expostos nas redes sociais por uma “gravação não autorizada e fora de contexto, acompanhada de manchetes que não reproduzem a verdade”. “Lamentamos profundamente as manifestações irresponsáveis, com distorção das informações e objetivos escusos e, sobremaneira, com a propagação das imagens de menores não autorizadas, para o qual a coordenação juntamente com os pais dos alunos, que já identificaram a sua origem, estão tomando as devidas medidas reparadoras”, diz a manifestação.

Os advogados Francis Beck e Rafael Ariza, responsáveis pela assessoria jurídica do CTPM, dizem que a empresa nunca foi processada pelo Ministério Público, tampouco descumpriu qualquer decisão judicial. “Pelo que se percebe da nota ministerial, houve confusão entre as empresas CTPM e Grupo CTC Comandos, que nunca possuíram qualquer relação”, disseram em nota encaminhada à reportagem.

NOTA DE ESCLARECIMENTO

O Centro de Treinamento Pré-Militar é um curso realizado na cidade de Canoas desde 2020, que foi desenvolvido para atender meninos e meninas dos 7 aos 17 anos. Tendo como principal objetivo, promover aos jovens experiências de aventura e desenvolvimento pessoal, sem qualquer objetivo de formá-los militares ou promessa de ingresso a qualquer tipo de carreira. Entre os temas trabalhados estão primeiros socorros, combate a incêndio, meio ambiente, sobrevivência, defesa pessoal, nós e amarras, entre outros. Além das instruções, o curso conta com treinamento de ordem unida, treinamento físico e promoção de ações sociais. Todas as atividades foram planejadas com o objetivo de desenvolver o espírito de liderança, trabalho em equipe, pró-atividade, raciocínio lógico e concentração. As instruções são preparadas e permanentemente revisadas por assessoria pedagógica e ministradas por profissionais especializados em cada uma das áreas.

Desde o último sábado (dia 02 de abril) nosso curso, que conta hoje com mais de cem alunos, tem sido exposto nas redes sociais através de uma gravação não autorizada e fora de contexto, acompanhada de manchetes que não reproduzem a verdade. Quem nos conhece e acompanha o nosso trabalho, testemunha que o objetivo do Centro de Treinamento é trabalhar valores como família, respeito e disciplina, e que estamos constantemente aperfeiçoando nossa metodologia de trabalho. Os inúmeros testemunhos de pais e responsáveis asseguram que estamos no caminho certo e contribuindo positivamente no desenvolvimento dos alunos.

Reiteramos o nosso repúdio e manifestamos a nossa indignação com a forma que a imagem do curso, assim como a dos nossos alunos, estão sendo divulgadas. Tratam-se de adolescentes que estão sendo vítimas de assédio moral e difamação online em seus locais de convívio.

Lamentamos profundamente as manifestações irresponsáveis, com distorção das informações e objetivos escusos e, sobremaneira, com a propagação das imagens de menores não autorizadas, para o qual a coordenação juntamente com os pais dos alunos, que já identificaram a sua origem, estão tomando as devidas medidas reparadoras.

Coordenador, Nicholas Reis.

Edição: Sul 21