Ceará

VIGILÂNCIA POPULAR

Entrevista | "A Vigilância Popular da Saúde é baseada, principalmente, no protagonismo popular"

Fernando Carneiro falou sobre o projeto Participatório em Saúde e Ecologia de Saberes e sobre Vigilância Popular

Brasil de Fato | Juazeiro do Norte CE |

Ouça o áudio:

Fiocruz Ceará permanece com cadastramento aberto para experiências com ações de Vigilância Popular. - Rodolfo Santana

Fernando Carneiro, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz Ceará (Fiocruz Ceará) e um dos coordenadores do projeto Participatório em Saúde e Ecologia de Saberes, explica que a Vigilância Popular da Saúde é baseada, principalmente, no protagonismo popular, no processo de levantamento e produção de informações para a defesa da vida, mas que não visa substituir o papel do Estado. Mas o que é a Vigilância Popular da Saúde e qual o seu papel? O Brasil de Fato conversou com o pesquisador para saber mais sobre o tema. Confira.

Brasil de Fato – Fernando, você pode nos explicar o que é a Vigilância Popular da Saúde?

Bem, a Vigilância Popular da Saúde é baseada principalmente no protagonismo popular, no processo de levantamento e produção de informações para a defesa da vida. No Sistema Único de Saúde (SUS) nós temos a vigilância em saúde que envolve as vigilâncias ambiental, sanitária, epidemiológica, que esteve muito ativa agora na pandemia, e a vigilância ao trabalhador, que lida com as condições de saúde e trabalho. Todas essas vigilâncias são feitas pelo SUS, pelo aparelho do estado. Já a vigilância popular tem o protagonismo das comunidades, dos movimentos populares e não necessariamente uma atribuição do SUS, mas pode ser realizada de forma articulada tanto com o SUS quanto com as universidades. Então, o que se destaca e diferencia das outras vigilâncias é justamente esse protagonismo popular e o levantamento de dados na ação.

Brasil de Fato – O que caracteriza uma experiência de Vigilância Popular da Saúde?

Como havia falado, o principal diferencial da vigilância popular é justamente a produção da informação pela própria comunidade, o movimento e o desencadeamento de ações voltadas para defesa da vida, por exemplo, projetos de desenvolvimento, que muitas vezes são neoextrativista, que não só explora o trabalho das pessoas, mas explora a natureza, então a gente tem exemplos do enfrentamento a expansão do agronegócio, a mineração, entre outros. Então a vigilância popular foi quando as comunidades se organizaram para atuar frente a esses problemas, e o que caracteriza uma experiência de vigilância popular é esse protagonismo comunitário. Ela não visa substituir o papel do estado, isso é muito importante. Com isso a vigilância popular consegue, inclusive, ajudar técnicos engajados ou pesquisadores engajados, porque a comunidade vai à frente na luta pelos seus direitos produzindo informação que muitas vezes ficam invisibilizadas.

Brasil de Fato – Tem exemplos de Vigilância Popular da Saúde no estado do Ceará?

Sim, nós temos importantes exemplos de vigilância popular da saúde, um deles é o Movimento 21 (M21) que já tem mais de doze anos de existência e que surgiu na região de Limoeiro como reação ao assassinato de Zé Maria do Tomé e é voltada para o enfrentamento do agronegócio. Esse movimento reúne várias universidades, sindicatos, entidades sociais e realiza todo um processo de produção de informação para esse enfrentamento ao agronegócio.

E lembrando que o objetivo da vigilância popular não é só gerar informação, mas garantir ação, é um belo exemplo o M21 porque quando o Zé Maria do Tomé foi assassinado ele estava conseguindo aprovar uma lei na Câmara de Limoeiro contra a pulverização aérea de agrotóxicos, e o movimento assumiu essa luta que se tornou uma Lei Estadual sancionada também pelo governador Camilo Santana (PT), e isso tem sido espelho para os movimentos populares em vários estados brasileiros. Então veja, uma experiência do Ceará tem sido espelho para outros movimentos e pode ter impacto de jurisprudência nacional.

Temos exemplo com a questão da exploração das minas de urânio aqui no Ceará, uma das maiores minas de urânio do Brasil, e tem todo um movimento ligado aos atingidos pela mineração, o MAM, que está fazendo todo um trabalho de denúncia para evitar a instalação desse empreendimento em pleno semiárido, que traz um risco enorme de contaminação. Então é outro movimento de vigilância popular muito importante.

Brasil de Fato – E qual a importância desse tipo de ação e de organização?

Bom, a principal importância é dar visibilidade ao que está acontecendo com as populações vulnerabilizadas. Eu vou dar um outro exemplo que eu acho que é muito esclarecedor, o impacto da covid-19 sobre as populações indígenas do Brasil. Determinado momento da pandemia no Brasil, para o Governo Federal, em um ano de contabilidade cerca de quinhentos indígenas morreram por conta do vírus, já na contabilidade do movimento indígena esse número chegou na casa dos mil mortos. Por que essa diferença de quase o dobro? O movimento indígena criou um mecanismo de vigilância participativo popular a partir de uma comissão de memória onde eles também fizeram o site Emergência Indígena, coordenado pela APIB, e nesse site encontramos essa diferença.

Para o governo federal, os indígenas não aldeados que estão em áreas urbanas ou em áreas que não foram homologadas como áreas indígenas não são considerados nas contabilidades do governo. É esse fator que resulta nessa diferença. O governo federal quer invisibilizar esses indígenas que em gestões federais anteriores sempre foram considerados e isso é uma forma de invisibilizar, de atacá-los à medida que eles deixam de aparecer nas estatísticas oficiais e diminui a possibilidade, inclusive, de acesso à saúde e a uma série de direitos. Então essa vigilância popular indígena foi fundamental para mostrar essa tentativa de invisibilização que também ocorre nas áreas de favela, por exemplo.

Brasil de Fato – E sobre o projeto Participatório em Saúde e Ecologia de Saberes, o que é esse projeto?

Bom, esse projeto nasce a partir do momento que a Fundação Oswaldo Cruz lança um edital “Pesquisa de emergências de saúde pública”, e uma das linhas de financiamento era justamente na vigilância participativa. Às vezes a gente tem frestas e oportunidades em meio a tamanho desmonte da pesquisa, no financiamento de projetos no Brasil e a gente, que tem uma trajetória na área de vigilância ambiental, principalmente, sempre atuando na perspectiva do significado desse termo “ecologia de saberes”, e promove esse diálogo popular e acadêmico visando uma ação mais potente em um contexto de lutas pela vida e como já tínhamos também um observatório de saúde das populações do campo, já tínhamos a experiência de articulação com esses movimentos, fizemos o convite para vários movimentos populares do Ceará, do campo, da floresta, das águas, representantes do SUS, da área de saúde do trabalhador, da área de vigilância ambiental e também da academia como a UFC e UECE, por exemplo, e constituímos uma espécie de grupo de pesquisa.

Esse grupo de pesquisa se dá apenas em uma pesquisa teórica em busca de transformar a realidade e nossa proposta de projeto foi submetido e selecionada entre mais de cem projetos inscritos, e foi uma grande conquista nossa onde conseguimos ter a oportunidade de desenvolver esse projeto que vai ajudar não só a conceituar melhor em termos teóricos, mas também aprender com as experiências, com quem tem praticado a vigilância popular em todo o país, promovendo trocas de experiências e visibilizando quem tem feito as ações. Então foi assim que nasceu a ideia desse projeto e a gente espera que ele seja um projeto perene, que não se esgote e possa ser assumido pelas instituições.

Brasil de Fato – E como surgiu a ideia para a realização do projeto?

A ideia partiu de uma necessidade sentida por nós, pesquisadores, que acreditamos nessa ecologia de saberes, nesse diálogo, conhecimento científico-popular e como ele pode transformar a vigilância em algo menos tecnocrático, burocrático e se tornar mais dialógico, que possa realmente não ser militarizado, até mesmo os termos como sentinela, quarentena, campanha, entre outros termos. Então a nossa ideia é que a gente pode fazer vigilância de outra forma e com outro objetivo, na perspectiva de realmente gerar uma informação que geralmente o SUS não tem, que ela possa complementar as informações oficiais.

Brasil de Fato – E como esse projeto vai ser realizado e qual será o caminho dele daqui para frente?

O nosso projeto parte desse grupo e a nossa ideia é desenvolver vários produtos para serem disseminados para toda a sociedade. Para isso, criamos o cadastro no Participatório, que está no site da Fiocruz Ceará e tem um cadastro de experiências a nível nacional, com experiências de vigilância popular do país, seja de movimentos, da academia, e você pode cadastrar sua experiência que nós vamos analisar todos os passos para dar visibilidade a partir de um site que nós estamos estruturando.

Vamos selecionar também dez experiências, sendo cinco do estado do Ceará e cinco de outras regiões do país, contemplando no mínimo uma por região. E vamos a campo com essas experiências na perspectiva de a pesquisa apoiá-las, contribuindo para a realização de um plano de ação de enfrentamento de cada caso desses. A ideia também é que nesse processo comecemos a fazer formação dos vigilantes populares da saúde, também acabamos de lançar um curso a nível nacional de vigilância popular pelo campus virtual da Fiocruz, curso gratuito e aberto a todas as pessoas. Vamos produzir também um vídeo construído a partir dessas experiências e ao final vamos organizar um guia de vigilância da saúde. Essa é a nossa metodologia, esse caminho que sempre é dialogado com esse grupo de pesquisa que ajudou a criar o projeto e nós vamos construindo e gerando todos esses produtos.

Brasil de Fato – Esse período de cadastro de experiências que você falou ainda está aberto? Quem tem alguma experiência de vigilância popular pode ir no site da Fiocruz e realizar esse cadastro?

Sim, esse cadastro a princípio não vai fechar, porém, nós vamos parar provavelmente no mês de abril, digamos assim, e fazer um balanço dessas experiências, como se fosse um recorte e a partir desse recorte nós vamos selecionar essas dez experiências. Então realmente quem se cadastrar depois, talvez em maio, por exemplo, não entre nessa seleção, mas pode depois ter o seu projeto, sua iniciativa visibilizada de outra forma, através de nosso site, mas estimulamos muito que nesse momento cada comunidade possa cadastrar a sua experiência de vigilância popular.

Você pode cadastrar a experiência através do site https://ceara.fiocruz.br/participatorio/ . Vários assentamentos do MST realizam outro belo projeto que pode ser considerado vigilância popular que é a iniciativa dos Agentes Populares de Saúde. Então essas iniciativas de agentes populares podem também ser cadastradas já que também acontece com base no protagonismo das comunidades, no protagonismo popular.

Brasil de Fato – Fernando, e como as pessoas podem conhecer mais sobre o projeto e colaborar com ele?

Existem várias formas, nesse momento criamos espaços nas redes sociais, basta procurar no Instagram ou YouTube por Participatório em Saúde, inclusive recomendo todos assistirem o I Seminário Nacional Vigilância Popular da Saúde, Ambiente e Trabalho, onde tivemos falas do Ministério da Saúde, da Fiocruz, do SUS, da escola politécnica da Fiocruz, e também falas de experiências de estados como Tocantins.

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Edição: Francisco Barbosa