Coluna

Sindemia, metrópoles e crise urbana

Apresentamos no texto hipóteses sobre os impactos possíveis da inserção da ordem urbana nesse padrão rentista de desenvolvimento capitalista brasileiro - Nelson Almeida/AFP
O traço definidor fundamental do rentismo como lógica de acumulação é o aumento do poder do capital

Em publicação recentemente disponibilizada no site do Projeto Saúde Amanhã da Fiocruz, refletimos sobre as forças sociais de grande escala que disputam o futuro da metrópole brasileira no contexto da crise urbana instilada pela pandemia do coronavírus. Aqui, resumimos a discussão realizada e os principais pontos dessa publicação, realizada, sobretudo partir das pesquisas desenvolvidas pelo INCT Observatório das Metrópoles e de seus resultados, tendo também como referências dois outros textos escritos por nós.

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No artigo, levantamos, em primeiro lugar, os sinais de uma crise urbana, chamando a atenção para a necessidade de entender a complexidade das forças que constituem os padrões de difusão do SARS-CoV-2 e seus efeitos a partir de uma abordagem sindêmica. Como base na literatura que vem consolidando o conceito de sindemia, essa perspectiva fornece estratégias potentes para identificar como fatores sociais, políticos, econômicos e ambientais interagem com o desenvolvimento biológico das doenças. Portanto, é uma abordagem fundamental para construir as pontes necessárias entre os campos científicos da saúde e dos estudos urbanos.

Argumentamos inicialmente que a saúde pública e o planejamento urbano se encontram novamente desafiados a criar estas pontes cognitivas e políticas. Trata-se, porém, de um desafio ainda de maior envergadura do que o ocorrido no século XIX e início do XX, na medida em que estamos diante de crises sanitárias sindêmicas, nas quais os próprios meios social e urbano são vetores de constituição dos padrões de difusão das infecções, dos distintos graus de gravidade, letalidade e mortalidade.

A reflexão que desenvolvemos sobre a crise urbana no contexto pandêmico e sua relação com forças sociais de grande escala parte da premissa de que o conflito entre a “cidade para o capital versus a cidade para o bem-estar” se agudizou com a pandemia, decorrendo de um processo já em curso com a inflexão conservadora-ultraliberal a partir do golpe parlamentar de 2016, dirigido pelas forças políticas que representam o rentismo brasileiro e sua tradução no projeto “Uma Ponte para o Futuro”. Posteriormente, esta inflexão é radicalizada com os resultados das eleições de 2018 e a formação de uma coalizão que vem empreendendo uma revolução conservadora, como denominou o cientista político Marcos Nobre, com um verdadeiro desmantelamento do Estado Nacional.

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No texto, destacamos ainda que esta coalizão vem promovendo a desconstrução do marco constitucional, legal e institucional herdado dos compromissos sociais e políticos aprovados na Assembleia Constituinte de 1988 e, ao mesmo tempo, criando condições para acelerar os processos de desindustrialização, reprimarização e reperiferização do Brasil. Além disso, a posição do país na hierarquia mundial se configura cada vez mais em uma nova dependência frente às forças que comandam a economia global. Como consequência, arma-se uma crise urbana ainda mais aguda na medida em que as metrópoles deixam de suprir as necessidades coletivas de reprodução social, uma porta aberta para novas crises sanitárias se tornarem sindêmicas.

Defendemos também que a crise urbana se soma às crises sanitária, econômica e social, numa combinação inédita e profunda, que anuncia um desastre societário sem precedentes na nossa história, cuja contenção vai exigir esforços incomuns do governo, da sociedade civil e de empresários comprometidos com o desenvolvimento nacional e os princípios democráticos e republicanos. Nesse contexto faria total sentido falar em uma sindemia de crises nacionais, uma tempestade perfeita cujas sombras começam a cobrir nossas metrópoles, onde justamente estão concentrados os efeitos mais claros e imediatos dessas crises.

Apontamos que um dos exemplos mais evidentes e dramáticos dessa crise é o verdadeiro colapso dos sistemas de transportes coletivos. Nesse setor, com a erosão da demanda decorrente da diminuição da atividade econômica mesmo antes da pandemia, do desemprego e da queda brutal da renda, empresas concessionárias vêm sucateando frotas, diminuindo a frequência das linhas e até mesmo abandonando concessões. Não escapa desse verdadeiro apagão dos transportes urbanos os modos de alta capacidade, responsáveis por grande parte da mobilidade metropolitana. Nesse caso, o exemplo mais negativo vem do Rio de Janeiro, onde, nos serviços de trem e de metrô, são cada vez mais comuns as interrupções, irregularidades na frequência, lotação e acidentes. Além disso, a este conjunto de problemas do lado da oferta dos serviços se somam os decorrentes da dissociação entre as tarifas e os claros sinais de empobrecimento da população.

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Também a título de exemplo, mostramos que, mesmo com a crise instalada e já sentindo os efeitos da pandemia, a concessionária dos serviços de trens metropolitanos no Rio de Janeiro anunciou, em junho de 2021, um aumento de 25% na tarifa, que passaria de R$ 5,00 para R$ 5,90. Para um trabalhador que recebe um salário mínimo e depende do trem para chegar ao seu local de trabalho, o gasto mensal com transporte pode comprometer até um quarto de seu salário. Ainda nesse exemplo, destacamos que o círculo trágico do desastre urbano que assola essa metrópole se fecha com as consequências dos frequentes roubos de fios para a venda do cobre no mercado ilegal do ferro-velho. O Rio de Janeiro é, portanto, uma das cidades brasileiras onde claros sinais da crise urbana aparecem de forma bastante evidente.

O encadeamento entre o apagão da mobilidade, o desemprego e a brutal perda de renda do trabalho formam um círculo vicioso de empobrecimento e miséria urbana, como buscamos destacar. Com efeito, a busca pelas escassas oportunidades de ocupação ou emprego, mesmo as possibilidades das práticas da economia da sobrevivência através das diversas atividades informais, tornam-se restritas na medida em que a ausência da renda, a deficiência e os elevados níveis das tarifas de transportes urbanos bloqueiam a mobilidade do trabalhador em busca de oportunidades. Nesse cenário, chamamos a atenção também para uma brutal perda da renda do trabalho nas metrópoles, atingindo mais fortemente os estratos dos 40% mais pobres da estrutura social brasileira e os considerados miseráveis.

Na nossa visão, os sinais da emergência de uma verdadeira crise urbana estão mais do que evidente. Para nós, uma crise urbana no sentido do colapso da função da cidade em assegurar a reprodução da vida, onde registra-se uma crescente incapacidade da metrópole em assegurar a produção, a distribuição de equipamentos e os serviços coletivos hoje imprescindíveis à reprodução social em sociedades que se urbanizaram completamente. Essa crise, no âmbito econômico, não está desconectada, por sua vez, da dominância rentista, financeira e extrativista do atual regime de acumulação. Como consequência, há, sobretudo, um desinteresse das forças econômicas dominantes em relação à provisão de meios de consumo coletivo, ao mesmo tempo em que a cidade é transformada em objeto desse rentismo.

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Na prática, a crise urbana cria oportunidades para que fundos financeiros globais incorporem os serviços coletivos aos seus ativos, abrindo as portas para a clara financeirização das cidades em detrimento da oferta dos serviços orientados pelo bem-estar. Este é o caso do Metrô Rio, cuja concessão estava nas mãos da empresa Invepar, de propriedade de fundos de pensão estatais brasileiros: Previ, com 25,56%; Petros, com 25%; Funcef, com 25%. A recente incorporação deste bem público à propriedade do Mubadala, fundo de Abu Dhabi, acentua a lógica de gestão que se orienta fortemente pela dinâmica do mercado de capitais, ou seja, uma gestão muito mais interessada no valor acionário dos bens do que na sua rentabilidade operacional.

Em outra parte do texto, acrescentamos que, no Brasil, a crise urbana ser reveste de maior gravidade por sua profundidade e amplitude ao se conectar com reperiferização, na medida que a posição do país na hierarquia mundial se configura cada vez mais em uma nova dependência frente às forças que comandam a economia global. Esse processo casa com a fragilização da base econômica das metrópoles como consequência da desindustrialização e da reprimarização da economia nacional. Estes três processos têm como fundamento o domínio pelas grandes empresas e pelos Estados centrais das novas fontes de acumulação da riqueza baseadas na propriedade do dinheiro, do saber (conhecimento e informação), das marcas (bens intangíveis) e da terra (natureza), o que vem configurando o que muitos autores vêm designando como rentismo.

O traço definidor fundamental do rentismo como lógica de acumulação é o aumento do poder do capital sobre os processos de geração e de extração de excedentes, sem necessitar controlar diretamente a esfera da produção. O poder do capital hegemônico, ou do grande capital, passa a ser exercido, principalmente, na esfera da circulação do valor, controlando à distância os novos “chãos da fábrica”. Este fato alterou o sistema capitalista na medida em que a acumulação passou a se realizar sob os imperativos da propriedade mais do que da produção.

Nesse contexto, apresentamos no texto hipóteses sobre os impactos possíveis da inserção da ordem urbana nesse padrão rentista de desenvolvimento capitalista brasileiro, a partir de cinco dimensões:

1. Rentismo e fragmentação do território nacional – A natureza predominantemente rentista, financeira e extrativista da atual fase de dependência econômica do país, tendo como correlato a desindustrialização e a reprimarização da economia nacional, parece autorizar a retomada da hipótese de uma fragmentação do território, a partir do momento que operam as lógicas da abertura ao mercado externo, da privatização, do abandono do projeto nacional e de políticas de desenvolvimento regional, além da especialização regressiva, da integração competitiva das regiões e, portanto, da inserção diferenciada das regiões nos distintos circuitos extrativistas.

2. Rentismo e diferenciação da metropolização – Na nova etapa da dependência brasileira, está sendo adicionada uma nova tendência de complexificação e diferenciação da rede urbana brasileira com o surgimento e a aceleração de novos padrões de metropolização correspondentes às novas dinâmicas de produção do espaço urbano, organizadas pelos distintos circuitos da acumulação rentista-extrativista, relacionadas com a exploração dos recursos minerais e à expansão do agronegócio. Estes espaços são submetidos a um tipo urbanização distinto em vários aspectos daquele ocorrido anteriormente sob a dinâmica da industrialização.

3. Rentismo e terciarização da economia metropolitana – Nessa hipótese, em resumo, a economia metropolitana vem sendo incorporada por uma nova forma de organização do capital expresso no conceito de capitalismo de plataforma. O capitalismo de plataforma consolida e desenvolve a acumulação flexível em novo regime socioprodutivo, expresso no fato do poder financeiro-informacional-digital permitir a articulação no espaço-tempo de produtores, comerciantes, financiadores, trabalhadores, consumidores e usuários dispersos.

4. Rentismo e economia política da metrópole – Por um lado, ocorre uma crescente articulação da produção imobiliária, da infraestrutura urbana e dos serviços urbanos com os circuitos do capitalismo financeirizado, notadamente sob a dominância da sua forma mais avançada que são os fundos financeiros (private equity). Por outro lado, também vêm ocorrendo mudanças na clássica organização dos capitais urbanos com a constituição de grandes empresas que atuam simultaneamente nos circuitos imobiliário, de obras públicas, infraestrutura e serviços urbanos. Como consequência, a anterior forma molecular de produção do espaço vem sendo substituída por formas monopolistas, que se manifestam no poder de planejar e coordenar a geração e a extração das rendas urbanas.

5. Rentismo e novos mecanismos de extração de rendas urbanas – Por último, gostaríamos de mencionar que a hipótese defendida sobre uma nova condição de dependência do capitalismo brasileiro implica na incorporação das metrópoles aos mecanismos gerais do rentismo através da ação combinada da expansão do capitalismo de plataforma, da financeirização da economia urbana e da acumulação urbana. Isto se explicita na constituição de mecanismos diretos de extração de renda da cidade por articulação das atividades da economia urbana às Big Five Tech Companies (Apple, Amazon, Alphabet, Microsoft e Facebook), denominadas por Moraes Pessanha como plataforma-raiz.

Na parte final do texto, destacamos que o conceito de sindemia aplicado ao diagnóstico das causas e efeitos da pandemia de covid-19 leva os seus formuladores a conceber que a estratégia de enfrentamento da atual crise sanitária – e as próximas que inevitavelmente a sucederão – se alicerce em uma nova concepção da política sanitária, alargando a terapêutica focada nos corpos dos indivíduos e na doença para as ações holísticas, preventivas e reformadoras do meio social onde a vida se desenrola e se reproduz, através do trabalho, do consumo, do lazer, da mobilidade, da habitação e da sociabilidade em geral.

Nessa linha, vemos sentido em resgatar a ideia de uma reforma da ordem urbana, que assegure a provisão universal e equitativa dos equipamentos e serviços coletivos que conformam o meio urbano construído. Trata-se, reconhecemos, de um horizonte bastante desafiador, considerando que a ordem urbana brasileira está submetida às grandes forças liberais que comandam o modelo liberal-periférico do capitalismo brasileiro e a sua subordinação ao capitalismo rentista, financeiro e extrativista global, fato que vem se traduzindo na grave crise urbana.

Defendemos, diante isso, que dada a profundidade e extensão dessa crise, nenhuma saída será simples. Todavia, não há dúvidas de que será inevitável superar a estreita visão ultraliberal encastelada no Estado e enraizada na sociedade. A nosso ver, só assim será possível restaurar qualquer estratégia de desenvolvimento nacional e de superação do passivo deixado pelas múltiplas crises que assolam a sociedade brasileira. Por isso, também acreditamos que faz total sentido em pensar em um New Deal Urbano, que entendemos como um ciclo de investimentos concentrados nas metrópoles.  Isso incluiria investimentos em transportes de massa (metrô e trem metropolitano, por exemplo), saneamento e habitação, acompanhados de um conjunto de medidas regulatórias e habilitadoras, que orientem a dinâmica do nosso crescimento urbano na direção do atendimento efetivo das necessidades da população e dos objetivos do desenvolvimento sustentável. Trataria de um ciclo de inversões que, além da indução do crescimento que rompa a lógica de precarização em curso, gere renda e redesenhe a economia metropolitana na direção produtiva, como alternativa à economia urbana rentista-extrativista em expansão, com impactos macroeconômicos relevantes.

Trata-se, como afirmarmos, de um enorme desafio. Poderia ser uma miragem a julgar a extensão e profundidade das crises nacionais e a quase hegemonia da concepção ultraliberal? Pode ser, mas, como bem demonstrou a economista Laura Carvalho (2020), a pandemia e os seus efeitos econômicos, sociais e políticos vêm gerando um verdadeiro “curto-circuito” na ideologia ultraliberal e na sua “ponte para o futuro”, calcado no desmanche das instituições criadas a partir da Constituição Federal de 1988 e das herdadas da nossa experiência desenvolvimentista. Curto-circuito que vem obrigando o Estado a expandir o gasto público, a aumentar o seu endividamento para 80% do PIB em razão da criação de um programa de transferência de renda. Para além dos seus efeitos imediatos, o curto-circuito está fragilizando as travas constitucionais, legais e ideológicas que constituem os alicerces do projeto ultraliberal para o país urdido pelo golpe parlamentar de 2016. Do ponto de vista do financiamento, os trabalhos escritos por especialistas e publicados na coletânea “Bidenomics nos trópicos” (livro organizado por André Roncaglia e Nelson Barbosa) contêm análises convincentes sobre as possibilidades fiscais e financeiras que assegurem o retorno do Estado brasileiro ao papel de empreendedor do desenvolvimento nacional.

Por fim, diante da pandemia da covid-19, destacamos que a articulação entre os campos da saúde pública e do planejamento urbano renderá um papel relevante a ser exercido, de convencer a sociedade e mobilizar as forças políticas sobre a imperiosa necessidade de um ciclo político representado no campo econômico pelo New Deal Urbano, como um caminho de enfrentamento societário do que hoje pode ser considerado como um novo risco sistêmico e global.

 

*Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro é professor titular do IPPUR/UFRJ e coordenador nacional do INCT Observatório das Metrópoles; e Juciano Rodrigues é pesquisador e membro do Comitê Gestor do INCT Observatório das Metrópoles. Coordenador editorial da Revista Eletrônica de Estudos Urbanos e Regionais e-metropolis.

**Há mais de 20 anos o INCT Observatório das Metrópoles vem trabalhando sobre os desafios metropolitanos colocados ao desenvolvimento nacional através da sua rede de pesquisa, organizada em 16 núcleos regionais. No contexto da atual crise econômica, social e sanitária, suas respectivas consequências presentes e futuras podem ser elementos mobilizadores para a construção de uma contra narrativa progressista e redistributiva para o país. Esta coluna se relaciona com os esforços atuais da nossa rede de reflexão e incidência sobre o tema, a partir do projeto "Reforma Urbana e Direito à Cidade nas Metrópoles". Leia outros artigos aqui

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo