Ceará

DESPEJO NA PANDEMIA

Entrevista | “Quando morar se torna um privilégio, ocupar passa a ser um dever”

Lara Costa, da Campanha Despejo Zero falou sobre a situação das ocupações urbanas e despejos forçados durante a pandemia

Brasil de Fato | Juazeiro do Norte CE |

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Ocupação Alto das Dunas tem 313 famílias que ocuparam um grande lote localizado no bairro Vicente Pinzón - Campanha Despejo Zero Ceará

O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal – STF, prorrogou até 31 de março de 2022 as regras que suspendem os despejos e as desocupações durante a pandemia de covid-19. Na decisão tomada ainda em dezembro do ano passado, o ministro também determinou que a medida fosse para imóveis localizados tanto na zona rural como urbana.

Para falar sobre os despejos e desocupações que aconteceram na pandemia e como fica a situação dessas famílias em 2022, o Brasil de Fato entrevistou Lara Costa, advogada popular, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) e integrante da Campanha Despejo Zero. Confira.

Brasil de Fato – Como está a situação atual da lei que suspendia os despejos e desocupações de imóveis urbanos por conta da pandemia do coronavírus?

Bom, nós realmente tínhamos a lei aprovada ano passado ao nosso favor, só que ela previa a suspensão dos despejos até o dia 31 de dezembro de 2021, então, ela já não se encontra mais em vigência, mas, precisamos explicar um pouco toda a situação jurídica em relação a essa lei. Em junho do ano passado, o ministro Barroso, do Supremo Tribunal Federal, acolheu um pedido formulado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 828 (ADPF 828), que visa justamente a suspensão dos despejos forçados durante a pandemia. E o ministro Barroso deu essa decisão cautelar que suspendia as remoções coletivas de todas as ocupações que já existiam antes do início da pandemia, e usamos como referência o mês de março de 2020, e essa decisão se estendia até o início de dezembro de 2021.

Em outubro do ano passado a lei foi aprovada e ela tinha um marco temporal de proteção mais extensa porque era válida até o final do ano, inclusive, ela protegia as ocupações que surgiram até o final do mês de março de 2021. Hoje não estamos mais com a proteção da lei, mas o próprio ministro Barroso estendeu os efeitos da liminar na ADPF 828 até o final de março deste ano. Vale ressaltar que tanto a liminar como a lei são vitórias da Campanha Despejo Zero nacionalmente, que fez muita incidência, inclusive para derrubar o veto do presidente em um primeiro momento sobre a lei, e a Campanha de Despejo Zero enviou mais de meio milhão de e-mails para representantes do Congresso Nacional, solicitando a derrubada desse veto na época da aprovação da lei.

Brasil de Fato – O que significa a extensão dessa liminar do ministro Barroso até o mês de março deste ano?

A liminar suspende os despejos coletivos tanto em áreas urbanas como áreas rurais. No primeiro momento era válida apenas para ocupações urbanas, mas a lei acabou estendendo para as ocupações rurais. É importante que a gente entenda que a aprovação da liminar se deu num momento de pandemia diferente do momento que estamos agora, em que vivemos sob mais uma onda de uma nova variante, e essa ação de despejo forçado deixa ainda mais pessoas em situação de rua, agravando mais ainda a pandemia e as mazelas que são causadas por ela.

E assim, os despejos forçados agravam ainda mais o cenário pandêmico, pela questão da saúde pública, aumentando, enfim, a vulnerabilidade dessas famílias que já são famílias vulneráveis e na maioria das vezes ocupam porque não possuem condições de pagar aluguel, e por isso essa liminar do ministro foi de grande importância para todos nós.

Brasil de Fato – Aqui no Ceará, qual a realidade das ocupações existentes? Há relatos de despejos acontecendo durante a pandemia?

No Ceará a realidade não difere do restante do país, já vimos despejos acontecendo em várias regiões do estado, inclusive, a Rede Nordeste, projeto do IBDU vem realizando um monitoramento desses despejos e desocupações. Atualmente, nós acompanhamos alguns escritórios de direitos humanos como o Escritório Frei Tito de Alencar e gostaria aqui de saudar o trabalho realizado pelo escritório durante a Campanha Despejo Zero que desenvolveu um papel super importante. E o escritório de Direitos Humanos Dom Aloísio. Além desses também temos acompanhado as denúncias que chegam via Defensoria Pública.

Do monitoramento conseguimos acompanhar o total de 48 conflitos, sejam casos de ameaça ou de despejos efetivados. Desse quantitativo de conflitos um total de 10 casos foram de remoções efetivadas que atingiram cerca de 1.034 famílias em todo o estado que foram despejadas, e dentro desse número de famílias despejadas, 414 foram removidas por causa de ordem judicial. Os outros 38 casos restantes são de ameaças ou tentativas de remoções. Ao todo, 25 casos foram judicializados pelo poder judiciário e outros 23 foram conflitos extrajudiciais, com ameaças de remoção sem nenhum processo judicializado na justiça. No geral, cerca de 4.785 famílias cearenses foram atingidas e despejadas durante a pandemia.

Então assim, a gente vê vários despejos acontecendo aqui no nosso estado, e aqui em Fortaleza a realidade é que esses números são ainda maiores.

Brasil de Fato – Há Alguma ação prevista por parte do poder público ou dos movimentos populares que vise barrar esses despejos?

Essa articulação da Campanha Despejo Zero é construída em todo o território brasileiro e estadualmente é composta por vários movimentos populares: o MTST, MST, ACNP, a Frente de Luta por Moradia digna, MLB, entre outros. Então são vários movimentos que se articulam nessa campanha, mas são movimento de moradia e movimentos que debatem essa pauta e pressionam tanto a prefeitura municipal de Fortaleza como o próprio governo do estado a tomarem medidas cabíveis a favor da moradia digna para o nosso povo.

Em dezembro do ano passado tivemos a notícia de um projeto aprovado na Assembleia Legislativa para um programa estadual de moradia e enxergamos isso como uma vitória dos movimentos de moradia do Ceará. O antigo programa que existia, voltado para a moradia, era o Programa Minha Casa Minha Vida, que desde o início do governo Bolsonaro foi sendo diminuído cada vez mais até o ponto em que ele acabou com esse programa. Então estamos ainda na espera de mais informações sobre esse projeto do governo do estado que visa a implementação de um programa estadual de moradia.

Brasil de Fato – Atualmente onde há ocupações urbanas aqui em Fortaleza?

Em Fortaleza tem várias ocupações, posso citar alguns bairros que aparecem no nosso monitoramento, alguns dele mais de uma vez, como o bairro Vicente Pizon, próximo da Praia do Futuro. Existe ocupação também na Sabiaguaba, Serrinha, Vila União, Messejana, e em outras localidades. Na verdade, depende do local, de como se dá essa ocupação, se acontece em alguma construção vazia ou abandonada, mas a certeza e que existem por toda a cidade.

Brasil de Fato – Você acha que a população ainda vê essas ações de ocupação com uma certa discriminação?

Infelizmente, a maior tarefa em uma ocupação é conseguir o apoio da população do entorno de onde a ocupação está sendo feita. Geralmente o pessoal trabalha muito nesse sentido, dessa conscientização com quem mora ali no entorno da ocupação, porque ainda existe essa disseminação de chamar de invasor, de usar esse termo em vez de ocupante, porque a gente ainda tem uma cultura muito baseada naquela proteção exacerbada sobre a propriedade privada, e aí muitas vezes a população não tem essa consciência da função social da propriedade, e é importante que os movimentos que fazem ocupações procurem publicizar e propagandear que a moradia é um direito, de ressaltar que é constitucionalmente previsto e que essas pessoas estão em luta pelo seu direito.

Brasil de Fato – Você falou sobre lutas. Quais são as pautas de luta dos movimentos populares que estão direcionadas a favor da moradia e contra os despejos?

Os movimentos populares têm essa pauta central, de garantir direito à moradia, mas, sobretudo, com políticas públicas para essa garantia. Nós vemos, por exemplo, o município de Fortaleza que, pelo menos durante o ano de 2021, para dar solução a essa demanda habitacional, a única solução que existia na Secretaria de Habitação era o aluguel social, oferecer aluguel social a família desejada.


O último despejo ilegal, no dia 22/09/2021, retirou cerca de 62 famílias (apesar da ADPF828-DF suspender despejos na pandemia). / Campanha Despejo Zero Ceará

Pude acompanhar o despejo de algumas famílias em que a prefeitura como resposta ofereceu o aluguel social, como garantia em se ter uma moradia digna. Por isso é importante que a luta se amplie, se amplie esse lugar social e se amplie a construção de novas unidades de moradias para as famílias necessitadas.

Brasil de Fato – Onde e como a população pode pegar mais informações sobre essas ações para acompanhar a luta e até para entender um pouco como funciona essas ações?

É possível acompanhar essas ações e saber mais informações através das redes sociais. Nós temos a Página Nacional da Campanha Despejo Zero e a Página Estadual da Campanha Despejo Zero, e temos também o site oficial da Campanha Despejo Zero para quem quiser se inteirar ainda mais sobre essas ações que acontecem em todo o estado e também em todo o país.

As informações sobre monitoramento e sobre os despejos também podem ser encontradas no site do IBDU, e tem uma parte no site do IBDU que é direcionada ao Projeto da Rede Nordeste. Enfim, sigam e apoiem a nossa causa, durante a pandemia construímos muito material, tem um acervo, inclusive, de pedidos de suspensão de remoção judicial, modelos, para poder fazer essa defesa nacionalmente e, enfim, continuar incidindo, seja pelo legislativo ou pelo judiciário para barrar esses despejos.

Brasil de Fato – Como a população pode ajudar nessa luta?

Primeiro é importante pensar em como descontruir essa visão de discriminação das ocupações que as pessoas têm, e é importante que essas pessoas também tentem entender melhor o movimento e apoiem essas iniciativas, as ocupações próximas de seus territórios quando houver, e ir ainda mais além, reverberando essa solidariedade para outras pessoas para que se crie uma rede de apoio, inclusive, é uma disputa também ideológica. Por isso é importante todo esse apoio e essa conscientização coletiva de que a ocupação acontece porque existe muita gente que não tem casa, muita casa sem gente. É uma questão de justiça social, de garantia de um direito e a gente ainda vive numa democracia, em que todos têm direito de lutar pela concretização dos direitos.

Bom, eu acho que a mensagem principal de hoje é justamente essa, do apoio à luta pelo direito à moradia, pedir apoio de todos à campanha de Despejo Zero, sigam as nossas redes, acompanhem as campanhas e se somem nessa luta pela moradia. Quando morar se torna um privilégio ocupar passa a ser um dever. Então é com essa frase que eu quero me despedir.

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Edição: Francisco Barbosa