Coluna

O que fazer com o legado do Programa Minha Casa Minha Vida na cidade do Rio?

Imóveis do programa Minha Casa Minha Vida em Santa Cruz, Rio de Janeiro - Fernando Frazão / Agência Brasil
A cidade do Rio se destacou por ter sido uma das que mais recebeu investimentos do programa

Por Samuel Thomas Jaenisch* e Adauto Lucio Cardoso**

 

O Programa Minha Casa Minha Vida, lançado pelo governo federal em 2009, se consolidou ao longo de seus quase dez anos de atuação como um dos maiores programas de habitação de interesse social da história do país e uma das mais expressivas políticas sociais dos governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff, tendo financiado a produção quase 4 milhões de unidades habitacionais em mais de 4.700 municípios de todos os estados da federação. O programa teve o mérito de conseguir direcionar cerca de metade da sua produção para famílias de baixa renda, inclusive para aquela população em situação de maior precariedade habitacional, algo inédito quando comparado à atuação dos programas de habitação anteriores, que sempre acabaram beneficiando principalmente a classe média. A importância desse dado se reforça quando consideramos que o déficit habitacional calculado pela Fundação João Pinheiro para o ano de 2009 estava em torno de 5,8 milhões de domicílios, com 90% desse total concentrado na população com renda mensal de até três salários-mínimos.

A cidade do Rio de Janeiro se destacou nesse cenário por ter sido uma das que mais recebeu investimentos do programa, principalmente durante os dois primeiros mandatos do prefeito Eduardo Paes à frente da prefeitura, entre os anos de 2009 e 2016. Ao todo foi financiada a construção de 116 empreendimentos para a chamada “Faixa 1” (aquela voltada para famílias de baixa renda) totalizando cerca de 38.000 unidades habitacionais, com potencial para receber entre 150.000 e 200.000 moradores. Porém a forma como a implementação do programa foi conduzida na cidade apresentou diversos pontos críticos, já muito problematizados e debatidos pela literatura especializada, comprometendo de sobremaneira sua validade enquanto uma política habitacional plena, capaz de garantir o acesso a uma moradia digna e promover ganhos efetivos em qualidade de vida, ou mesmo de reduzir os quadros de desigualdade e segregação que historicamente caracterizaram o processo de urbanização da cidade.

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Um dos problemas mais evidentes diz respeito à localização dos empreendimentos financiados pelo programa, que ao invés de terem operado de forma a melhorar a integração da população de baixa renda ou aproveitar a infraestrutura existente nas áreas mais consolidadas, acabaram por reforçar uma dinâmica de periferização. Em geral, eles foram construídos em frentes de expansão urbana, principalmente no limite da zona oeste da cidade, em áreas distantes dos principais centros de emprego e renda, com pouca oferta de serviços básicos no entorno e pouco atendidas pelos modais de transporte público. Isso acabou levando a graves problemas de adaptação dos moradores, que tiveram suas rotinas diárias afetadas pelo processo de reassentamento, em muitos casos dificultando o acesso as redes públicas de saúde e ensino básico, impedindo a permanência em seus empregos, ou mesmo desestruturando as suas redes de sociabilidade e solidariedade.

Um agravante desse processo foi o uso recorrente do programa para viabilizar os processos de remoção articulados à agenda do “Ciclo Olímpico” que estava sendo implementada pelo poder público na cidade (em uma articulação entre prefeitura, governo do estado e governo federal) visando a realização da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016. Vários relatos de moradores coletados nesse período mostram que essas ações foram marcadas por forte autoritarismo por parte dos órgãos envolvidos, não raras vezes envolvendo violência institucional e o uso da força policial, desconsiderando qualquer possibilidade de negociação ou participação da população atingida nas tomadas de decisão, que muitas vezes foi obrigada a abandonar suas casas de forma abrupta e se deslocar para empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida construídos a dezenas de quilômetros de distância. Esse tipo de ação ocorreu em favelas localizadas no entorno do Estádio do Maracanã e do Parque Olímpico, naquelas próximas aos corredores de ônibus expresso (principalmente na Transcarioca e na Transoeste), na área atingida pela Operação Urbana Porto Maravilha, nas obras para instalação dos teleféricos do Complexo do Alemão e do Morro da Providência, dentre várias outras.

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Localização dos empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida – Faixa 1 na cidade do Rio de Janeiro / Fonte: GT Habitação e Cidade


Concentração de unidades habitacionais do Programa Minha Casa Minha Vida – Faixa 1 na cidade do Rio de Janeiro / Fonte: GT Habitação e Cidade

Isso trouxe inúmeros impactos negativos sobre a vida dos moradores reassentados, que se acentuaram pela falta de um acompanhamento mais próximo das equipes de serviço social ou mesmo dos órgãos de urbanismo da prefeitura municipal. Mas o Programa Minha Casa Minha Vida também implicou em impactos sobre o território da cidade. Houve um grande deslocamento populacional para áreas da cidade caracterizadas até então por uma baixa densidade habitacional, principalmente na zona oeste, que tiveram suas dinâmicas urbanas alteradas com a chegada dos novos moradores. A adoção da tipologia “condomínio fechado” pela quase totalidade dos empreendimentos do programa resultou em uma fragmentação de bairros tradicionais (como Santa Cruz, Campo Grande ou Cosmos), que passaram a contar com vários empreendimentos segregados do entorno, sem nenhuma integração com a vizinhança, pouca articulação com a malha viária existente, muitas vezes criando espaços hostis ao trânsito de pedestre no entorno.


Empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida – Faixa 1 na zona oeste cidade do Rio de Janeiro e a fragmentação do território / Fonte: GT Habitação e Cidade


Empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida – Faixa 1 na zona oeste cidade do Rio de Janeiro e a ausência de relação com o entorno / Fonte: GT Habitação e Cidade

Ao longo da última década muitas dessas questões se agravaram e a situação dos empreendimentos financiados pelo Programa Minha Casa Minha Vida na cidade segue crítica e demandando uma presença mais efetiva por parte poder público, tanto prevendo ações de assistência social quanto de planejamento urbano. Uma articulação recente entre associações de moradores dos empreendimentos do programa e mandatos parlamentares de esquerda, vem chamando a atenção para essa pauta e conseguiu incluir o tema no processo atualmente em curso de revisão do Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro. Iniciativa de suma importância, pois procura chamar a atenção para o legado que foi deixado pelo programa na cidade e a necessidade de ações que consigam reverter os equívocos cometidos ao longo da implementação do programa e discutir diretrizes que orientem a elaboração de políticas de habitação mais inclusivas para o próximo decênio. Os empreendimentos financiados pelo Programa Minha Casa Minha Vida devem ser reconhecidos como espaços de moradia de interesse social ocupados por famílias de baixa renda, que exigem ações continuadas e capazes de integrar várias frentes de atuação por parte do poder público.

Esse tema foi debatido em reunião do Fórum Popular do Plano Diretor realizada no dia 07 de outubro de 2021, grupo que envolve cerca de quarenta entidades da sociedade civil organizada, que vem tensionando e se posicionando criticamente em relação à forma como o processo de revisão vem sendo conduzido pelos técnicos da prefeitura municipal, buscando garantir maior participação e mais espaço nesse debate para os movimentos sociais. A reunião contou com a participação de vários moradores e síndicos de empreendimentos financiados pelo Programa Minha Casa Minha Vida na cidade do Rio de Janeiro e municípios da Região Metropolitana, inclusive com lideranças da Associação dos Síndicos dos Condomínios Minha Casa Minha Vida do Estado do Rio de Janeiro (ACMMERJ). As demandas colocadas pelos moradores e síndicos ressaltaram a dificuldade para acessar os serviços públicos essenciais e a falta de políticas de assistência social voltadas para os moradores dos empreendimentos por parte da prefeitura, em especial de ações de capacitação profissional e atividades para crianças e adolescentes. Foram feitos vários relatos sobre a violência sofrida durante os processos de remoção e sobre a falta de acompanhamento por parte das equipes de assistência social. Quase todos os participantes relataram também um certo descaso do poder público em relação às demandas dos moradores dos empreendimentos, quase sempre dependentes de relações clientelistas, reforçando a inexistência de qualquer ação estruturada da prefeitura em relação aos investimentos que foram feitos pelo programa na cidade.

Essa discussão se desdobrou em uma audiência pública com o tema “Condomínios Minha Casa, Minha Vida – Impactos Urbanos e Sociais”, realizada na Câmara de Vereadores da cidade do Rio de Janeiro no dia 13 de outubro de 2021, organizada por uma comissão especial formada para debater essa pauta, formada pelos vereadores Reimont (PT), Monica Benício (PSOL) e Zico (Republicanos). Na oportunidade, foi possível reafirmar as demandas dos moradores e síndicos dos empreendimentos, além de debater ações que possam incidir sobre esse tema, em especial através do seu reconhecimento no processo de revisão do plano diretor. A audiência contou com a participação de lideranças dos empreendimentos, de representantes da prefeitura municipal, da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, além dos mandatos parlamentares envolvidos nessa articulação. A Rede Observatório das Metrópoles esteve presente com a participação do professor Adauto Lucio Cardoso (IPPUR/UFRJ), integrante do GT Habitação e Cidade.

Um ponto central na discussão foi a condição jurídica dos empreendimentos, usada com frequência pelo poder público para se esquivar de suas responsabilidades, tendo em vista que o modelo adotado pelo programa privilegiou a forma “condomínio fechado”, delegando a responsabilidade sobre as áreas comuns (coleta de lixo, iluminação, manutenção) à gestão condominial. Mas esse modelo se mostrou totalmente inadequado para a Faixa 1 do programa, considerando que os moradores são de baixa renda e tem dificuldades para arcar com os custos da formalização decorrente do processo de reassentamento. A consequência mais imediata disso é o alto nível de inadimplência das taxas condominiais, que dificultam as ações de gestão e manutenção por parte dos síndicos, resultando em uma precarização dos empreendimentos. Relatos dos síndicos e vídeos apresentados durante a audiência pública comprovaram a degradação dos espaços comuns e mesmo a deterioração de elementos construtivos, comprometendo a segurança dos moradores. Esses depoimentos também ressaltaram que houve uma descontinuidade dos investimentos previstos para o entorno de alguns empreendimentos, como um conjunto de escolas de ensino fundamental que seria construído próximo aos empreendimentos localizados na Estrada dos Jesuítas, no Bairro de Santa Cruz.

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A Associação dos Síndicos dos Condomínios Minha Casa Minha Vida do Estado do Rio de Janeiro (ACMMERJ) chegou a entregar a minuta de um projeto de lei à comissão com o objetivo de reverter esse quadro. O professor Adauto Cardoso reforçou a importância dessa iniciativa e indicou algumas estratégias que poderiam ser tomadas pela Prefeitura, para, por um lado, criar uma legislação que proíba a utilização da forma condomínio em empreendimentos para a baixa renda no futuro e, por outro lado, criar mecanismos que permitam melhorar as condições de vida dos moradores dos empreendimentos já construídos. Uma solução possível seria a designação desses empreendimentos como Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS), superando assim o argumento usado pela prefeitura para não realizar melhorias nesses locais, de forma similar ao que é utilizado para fundamentar juridicamente intervenções em conjuntos habitacionais produzidos por programas passados ou programas de urbanização de favelas. Nesse sentido, o novo Plano Diretor poderia estabelecer um tipo especial de AEIS para os empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida e criar um programa de requalificação e melhoria para reverter os quadros de precariedade. Seria possível também, além dos recursos municipais, o uso de fontes alternativas como o Fundo Estadual de Habitação de Interesse Social (FEHIS) para custear melhorias nos empreendimentos e investimentos no entorno. A lei municipal de assistência técnica para habitação de interesse social também seria um instrumento possível para articular ações nesse sentido.

É papel do plano diretor definir as diretrizes que vão orientar o uso e ocupação do solo, sendo fundamental pensar em ações que possam incidir sobre o processo de urbanização de forma a produzir cidades menos desiguais e menos segregadas em suas múltiplas escalas. O Programa Minha Casa Minha Vida foi um programa federal que teve grande impacto sobre a cidade do Rio de Janeiro, por ter promovido transformações drásticas no território e levado ao deslocamento forçado de milhares de pessoas, sendo de fundamental importância manter um olhar crítico sobre esse processo, reconhecendo suas fragilidades e reveses. Os desafios tendem a aumentar no próximo decênio devido ao agravamento dos problemas já identificados nos empreendimentos da Faixa 1, cabendo ao legislativo municipal dar prosseguimento aos debates realizados e incorporar as demandas colocadas pelas lideranças ao longo do processo de revisão do plano diretor que deve se estender até meados de 2022.

 

*Samuel Thomas Jaenisch é Doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e pesquisador do GT Habitação e Cidade do Observatório das Metrópoles. Bolsista de Pós-doutorado (PDR10) da FAPERJ.

**Adauto Lucio Cardoso é Professor do IPPUR/UFRJ. Coordenador nacional do projeto “Direito à cidade e habitação” e do GT Habitação e Cidade do Observatório das Metrópoles.

***Há mais de 20 anos o INCT Observatório das Metrópoles vem trabalhando sobre os desafios metropolitanos colocados ao desenvolvimento nacional através da sua rede de pesquisa, organizada em 16 núcleos regionais. No contexto da atual crise econômica, social e sanitária, suas respectivas consequências presentes e futuras podem ser elementos mobilizadores para a construção de uma contra narrativa progressista e redistributiva para o país. Esta coluna se relaciona com os esforços atuais da nossa rede de reflexão e incidência sobre o tema, a partir do projeto "Reforma Urbana e Direito à Cidade nas Metrópoles". Leia outros artigos aqui

****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo