Rio Grande do Sul

Racismo

Após um ano do assassinato de Beto Freitas no Carrefour, acordos firmados são questionados

Segundo advogados, termos assinados por Carrefour e Vector desrespeitam a lei e mascaram crime de racismo

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Entidades ingressaram com Ação Civil Pública questionando acordos firmados por Carrefour e Vector - Ezequiela Scapini

Há um ano, João Alberto Silveira Freitas, o "Nego Beto", foi brutalmente assassinado no Carrefour do Passo D'Areia, que dois dias depois voltou a funcionar normalmente. Na primeira quinta-feira (4) do mês de novembro foi assinado o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) da empresa responsável por contratar os seguranças responsáveis pelo assassinato de Beto Freitas, como era conhecido, nas dependências do Carrefour da zona Norte de Porto Alegre, um dia antes do 20 de Novembro - Dia Nacional da Consciência Negra de 2020.

Conforme noticiou a Afropress, a empresa, de nome Vector, se compromete a destinar cerca de R$ 1,7 milhão para pagamento de bolsas e cestas básicas para moradores do bairro Passo D’Areia. Apesar de trabalhar com valores muito menores, o TAC assinado pela Vector é semelhante em seu conteúdo com o que já havia sido assinado pelo Carrefour, que contratava a Vector para fazer a segurança de suas lojas.

Ambos os TACs firmaram os compromissos com o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPRS), o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPE/RS), a Defensoria Pública da União (DPU), tendo a organização a Educafro e o Centro Santo Dias de Direitos Humanos como intermediadores.

Logo após a assinatura do TAC com o Carrefour, diversas organizações passaram a criticar o acordo, afirmando que ele fere a Lei de Ação Civil Pública, além de permitir isentar ambas as empresas (Vector e Carrefour) do crime de racismo.

Para entender essas críticas, procuramos Onir Araújo, advogado integrante do Coletivo Cidadania, Antirracismo e Direitos Humanos. O Coletivo de advogados entrou com uma Ação Civil Pública, questionando o TAC e requisitando a adequação do acordo com o que diz a lei.

Dinheiro disponibilizado pelas empresas deveria ir para fundos públicos

Onir relata que o Coletivo de advogados ingressou com uma Ação Civil Pública, no dia 30 de setembro, apontando que o TAC do Carrefour fere a Lei de Ação Civil Pública. Segundo explica o advogado, essa Lei teve uma alteração em 2010, em função do Estatuto da Igualdade Racial.

A partir dessa alteração, o artigo 13 prevê que valores decorrentes de acordos ou decisões judiciais envolvendo lesões de crimes raciais obrigatoriamente devem ser remetidos para fundos geridos por conselhos da comunidade negra. Estes devem ser os responsáveis por dar destinação a esses valores.

Conforme explica, se forem lesões em escala nacional, os valores devem ir para o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), que é um órgão do Estado composto por entidades nacionais negras, mas também o MP.

No caso de lesões de abrangência local ou regional, são os conselhos estaduais que devem definir a destinação desses valores. No RS, por exemplo, existe o Conselho Estadual de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Rio Grande do Sul (Codene).

Segundo aponta o Coletivo de advogados na Ação, a destinação de valores, da forma como ficou colocada no TAC, passa por cima da lei. Por exemplo, no Acordo do Carrefour, ficou acertado a concessão de bolsas de ensino para estudantes negros, mas em instituições de ensino privado, ou seja, os valores serão destinados diretamente para essas instituições.

"A nossa Ação visa alertar o poder Judiciário e corrigir essas distorções. No nosso entendimento, esses recursos deveriam ir para a Conapir ou o Codene, conforme determina a lei", afirma Onir.

O advogado reforça que a alteração na Lei de Ações Civis Públicas que instituiu a destinação de valores aos conselhos é fruto da luta e da mobilização do movimento negro e que, excluindo esses conselhos, também diminui o controle coletivo por parte da sociedade e do movimento.

“O TAC do Carrefour, de R$ 115 milhões, foi assinado em junho. O da Vector, de certa forma, seguiu o mesmo roteiro. Neste caso se previu um valor menor, cerca de R$ 1,7 milhão, mas com a mesma arquitetura, com bolsas para instituições de ensino privado", explica Onir.

Termos podem isentar as empresas do crime de racismo

Onir lembra ainda que o Coletivo de advogados levantou um outro ponto considerado ainda mais grave, pois, em ambos os Acordos, existem cláusulas que isentam o Carrefour e a Vector de crimes raciais.

No caso do TAC do Carrefour, na cláusula 5, denominada “Ações Judiciais e Inquéritos Civis”, ficou determinado que as partes que assinaram o acordo “reconhecem a suficiência das obrigações assumidas neste termo, com relação ao objeto de seus procedimentos e ações judiciais, nada mais podendo reclamar, […] comprometendo-se a se abster de iniciar quaisquer outros procedimentos, judiciais ou administrativos”.

Além disso, no item 5.2, ficou expresso que as obrigações assumidas pelo Carrefour “não importam no reconhecimento da prática de qualquer ato de racismo, discriminação ou violência e não poderão ser interpretadas nesse sentido”.

No caso do TAC da Vector, as afirmações são semelhantes. No item 8 ficou declarado que as obrigações assumidas pela empresa “não importam em confissão da prática de qualquer ato de racismo ou discriminação, não podendo ser interpretadas nesse sentido”.

Ainda por cima, em ambos os casos, as empresas deixaram expresso nos Termos que reservam à si próprias o chamado “direito de regresso”. Este é um termo jurídico para se referir a uma “Ação regressiva”, quando alguém paga ou cumpre a obrigação de outra pessoa e depois vai à justiça para exigir de volta essa quantia.

Ou seja, na prática, as empresas estariam isentas de serem também responsabilizadas pelo crime de racismo. Ficariam sujeitos ao reconhecimento de prática racista somente os dois responsáveis diretos pelo assassinato de Beto: os seguranças Magno Braz Borges e Giovane Gaspar da Silva, este último, à época, pertencente à Brigada Militar gaúcha.

As empresas responsáveis por contratar e treinar os seguranças, apesar de estarem pagando pesadas indenizações à sociedade pelo crime, fizeram constar nos Termos os itens que os isenta, como se passassem a mensagem de que somente os seguranças foram racistas.

Onir ainda recorda um outro ponto que merece atenção. No seu entendimento, ao isentar as empresas de serem acusadas de racismo, essas indenizações poderão ser consideradas doações e declaradas na Receita Federal para serem abatidas enquanto renúncia fiscal, o que possibilitaria ao Carrefour e à Vector ainda ter de volta parte desse dinheiro.

“Toda a sociedade brasileira vai estar pagando parte dessa indenização, que, ao fim, vai estar indo em sua maior parte para instituições privadas, como resultado de uma violência absurda que sofreu o Beto Freitas e sua família”, explica o advogado.

Instituições públicas se manifestam

Na tarde do dia 19 novembro de 2021, completando 1 ano do assassinato, os Ministérios Públicos e Defensorias Públicas lançaram uma nota, ressaltando alguns pontos sobre o TAC do Carrefour e esclarecendo outros com relação às Ações Civis Públicas.

Em relação às bolsas de estudo que serão destinados à estudantes negros, a nota afirma que “uma banca composta pelos órgãos públicos, representantes do Grupo Carrefour e uma representante da Associação Brasileira de Pesquisadoras e Pesquisadores Negros e Negras (ABPN) tem se reunido regularmente para formulação de um edital de seleção de instituições de ensino superior que poderão se beneficiar do programa”.

Ainda, sobre a destinação total de valores, esclarece que R$ 74 milhões irão para a oferta de bolsas, R$ 2 milhões serão utilizados para um projeto museológico, R$ 16 milhões para campanhas educativas e projetos sociais de combate ao racismo, além de R$ 10 milhões para projetos de inclusão social.

A nota não faz referência ao questionamento sobre a obrigação legal de destinar esses valores para os conselhos da comunidade negra. Também não toca no ponto das cláusulas que isentam as empresas do crime de racismo.

Na última quinta-feira (17), foi também divulgada uma nota, através do escritório dos advogados Hamilton Ribeiro e Carlos Barata, assinada pelo pai e viúva de Beto, João Batista Rodrigues de Freitas e Milena Freitas.

Segundo consta, é desejo da família que seja criada uma entidade sem fins lucrativos, destinada a perpetuar a memória de Beto e contribuir na pauta antirracista. A proposta da família é que essa entidade se chame Fundação Beto Freitas para a Cidadania, Superação do Racismo e Defesa dos Direitos Humanos.

O Brasil de Fato RS entrará em contato com representantes da Educafro e do Centro Santo Dias de Direitos Humanos, que será publicado em nova matéria. Com o objetivo de seguir dando publicidade ao caso e ouvindo todas as partes envolvidas, deixamos aberto o espaço para que as instituições públicas envolvidas na assinatura dos TACs se manifestem. Assim como, para a família de Beto e demais entidades que atuaram na intermediação e elaboração dos acordos.


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Edição: Katia Marko