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Contribuinte, consumidor e usuário: o cidadão neoliberal

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Enquanto ser cidadão for sinônimo de pagador de impostos, de consumidor de bens, ou de usuário de serviços, continuaremos convivendo com as desigualdades. - Foto: Licia Rubinstein/Agência IBGE Notícias
Igualdade, participação e liberdade, foram substituídos por equidade, protagonismo e consumo

Os comentaristas e jornalistas da imprensa comercial há muito tempo já decretaram a extinção da ideia de cidadania. Para a ideologia neoliberal, em que tudo é visto sob as lentes do mercado, impregnada na TV aberta e fechada, os cidadãos e cidadãs no Brasil são rotulados de contribuintes, consumidores e, mais recentemente, usuários. O rebaixamento da categoria de cidadania a tais nomenclaturas, guarda, na verdade, uma coerência com os valores hegemônicos que legitimam a atual fase de desenvolvimento do modo de produção capitalista, em que a utopia de uma cidadania plena assentada na garantia universal de direitos civis, políticos e sociais é cada vez mais um horizonte intangível.

Nesse “jogo de palavras”, princípios básicos do próprio pensamento liberal como igualdade, participação e liberdade, que alicerçam o conceito moderno de cidadania desde o século XVIII, foram substituídos por outras categorias, como equidade, protagonismo e consumo, respectivamente. As próprias garantias legais incorporadas na nossa “Constituição Cidadã”, não passam, quase sempre, de mera formalidade. Os direitos e deveres foram transformados em abstrações vazias, submetidos à lógica monetária em que a qualidade da cidadania depende do quanto você tem no bolso ou em muitas realidades, e na brasileira em particular, da cor da sua pele.

O que certamente não ouviremos nessa mesma imprensa empresarial é o fato de que no Brasil esse rebaixamento e seletividade da cidadania não são um “defeitos” ou “desajustes”, mas fazem parte da própria dinâmica do processo de desenvolvimento do país. Uma dinâmica caracterizada pela dependência e subdesenvolvimento econômico, pela natureza violenta das classes dominantes locais e pelos déficits democráticos que marcam nossa história, em que nem mesmo uma democracia de cariz republicana chegou a ser implementada, mas sim, um regime autocrático que mantêm e reproduz os interesses e privilégios dessas elites.

Enquanto ser cidadão for sinônimo de pagador de impostos, de consumidor de bens, ou de usuário de serviços, continuaremos convivendo com as desigualdades, os autoritarismos e as violências de todos os tipos e ordens de forma passiva e alienada, distantes de uma realidade em que o exercício da cidadania seja regra e não exceção. 

A perpetuação da carestia e da fome, o controle da economia pelo capital financeiro, a submissão das instituições do Estado ao poder das grandes corporações e a cisão cada vez mais abissal entre as necessidades populares e os interesses da grande maioria dos partidos e lideranças políticas, afundam a nação num poço sem fundo, sem futuro e sem cidadania.

Com 40% da força de trabalho ocupada na informalidade e índices recordes de desemprego; com quase 30% da população se abstendo do processo eleitoral no último pleito, mesmo com a obrigatoriedade do voto; com o retrocesso acelerado das políticas sociais e com o genocídio da juventude pobre e negra nas periferias do país, parece que para o povo brasileiro só restam migalhas e ilusões de uma subcidadania mutilada e funcional ao projeto antinacional, racista e neocolonial em curso. 

Mas, para não dizer que não falamos das flores, concluímos com o poeta: 
Fiz ranger as folhas de jornal
Abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
De cada fronteira distante
Subiu um cheiro de pólvora
Perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
Nada de novo há
No rugir das tempestades
Não estamos alegres, é certo
Mas também por que razão haveríamos de ficar tristes? 
O mar da história é agitado
As ameaças e as guerras havemos de atravessá-las
Rompê-las ao meio
Cortando-as como uma quilha corta as ondas.

Poema de Vladimir Maiakóvski, E então, que quereis?

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Camila Garcia