Rio Grande do Sul

Resistência

Em Venâncio Aires as sementes crioulas são reafirmadas como bandeira de luta

A comunidade de Santa Emília sediou a 20ª edição do Encontro de Sementes Crioulas da Diocese de Santa Cruz do Sul

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Sementes crioulas e produção agroecológica tiveram sua mística reafirmada no encontro de Venâncio Aires - Divulgação

A semente precisa se “romper” para brotar. Por si só é um símbolo de resistência e vida. Quando se fala de sementes crioulas, esse simbolismo é elevado a um nível ainda mais forte.

“Sob a bandeira das sementes crioulas cabem todas as outras bandeiras, como a agroecologia, a preservação do meio ambiente, a reforma agrária, as pautas da mulher e do jovem da roça, o direito humano à alimentação saudável, os direitos dos povos tradicionais, dos povos dos campos, das águas e das florestas, enfim todas as bandeiras que são levadas adiante por aqueles e aquelas que se dedicam ao cuidado com a terra e as sementes”, afirma Maurício Queiroz, guardião de sementes ligado à Comissão Pastoral da Terra em Santa Cruz do Sul.

A fala de Queiroz se dá no ambiente da 20ª edição do Encontro Diocesano de Sementes Crioulas, realizado pela Diocese de Santa Cruz do Sul na comunidade de Santa Emília, município de Venâncio Aires, RS, na última quarta-feira (27). Na oportunidade a Comissão Pastoral da Terra celebrou 21 anos do evento, um dos pioneiros na região, do qual derivaram muitas outras experiências de encontros, feiras e festas de sementes na região e mesmo pelo estado afora.

Frei Sérgio Görgen, diretor do Instituto Cultural Padre Josimo, também faz uma leitura onde a pauta das sementes se interliga com as lutas atuais do povo brasileiro: “As sementes crioulas, a alimentação saudável e as comunidades organizadas estão nos dizendo que chegou a hora de resgatar de novo a esperança de um Brasil melhor para seu povo”.

Juliano Sá, presidente do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (Consea-RS), falando ao jornal Extra Classe, relembrou o desmonte governamental de importantes programas voltados aos pequenos produtores e associou a essas ações o aumento da fome no Brasil: “O alastramento da fome no país, que afeta mais de 19 milhões de pessoas, é reflexo também do fim ou esvaziamento de programas voltados para estimular a agricultura familiar”.

Para Vanderleia Nicolini Chitó, camponesa de Progresso e dirigente do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), “foi o dia de reafirmar a importância de cuidarmos a nossa Mãe Terra e das nossas sementes, nossos saberes, fazermos a partilha de tudo o que os camponeses produzem e cuidam com tanta dedicação e amor”.

A jovem camponesa e pesquisadora Tatiane Squiavon, que desde 2015 trabalha com sementes crioulas, resume o contexto todo em três pontos: Autonomia, segurança e soberania alimentar. “O retorno das feiras é de extrema importância tanto para a partilha das sementes quanto para a efetivação de todos nós enquanto seres sociais, porque a agroecologia é isso, para além da produção é uma partilha social”, arrematou.


Mais de 300 pessoas participaram das atividades, compartilharam o espaço, as sementes e as lutas / Divulgação

A benção e a partilha das sementes

Natural da comunidade de Santa Emília, o deputado constituinte Selvino Heck relembrou da infância, do trabalho duro da família que por anos dedicou-se à cultura do tabaco e, uma vez libertos deste modo de produção passaram a dedicar-se ao cultivo de alimentos: “As sementes de tudo o que se plantava, menos o tabaco – milho, aipim, batatas, feijão e tudo mais –, e se comia em casa, eram conservadas ali mesmo, passando de pai para filho. Eram sementes crioulas”. Para Heck “é urgente e necessário ter políticas públicas de segurança alimentar e nutricional e de agroecologia”. A lembrança, também registrada em artigo no jornal Brasil de Fato, é mais marcante quando chega ao ato da partilha, igualmente celebrado pelo bispo de Santa Cruz do Sul, Dom Aloísio Dilli, que abençoou as sementes e deu início ao momento de partilha.

"Nós apoiamos a agroecologia, apoiamos a agricultura familiar, apoiamos todo o trabalho que se faz com as sementes crioulas", citou Dom Aloísio, confidenciando que na horta do bispado faz questão de que sejam cultivadas e compartilhadas sementes crioulas. Em sua fala citou ainda o Papa Francisco, que tem defendido de forma militante a agroecologia e a preservação do meio ambiente (a Casa Comum). Citando o Cântico do Irmão Sol, composto por São Francisco de Assis, Dom Aloísio evocou  a ideia de um espírito da fraternidade universal, “este espírito que nós precisamos hoje recuperar e que através desse encontro de sementes, aqui em Santa Emília, estamos recuperando”. Para o bispo o compromisso deve ser permanente e todos devem assumir as pautas conjuntamente: “Nos sentimos fortificados porque estamos juntos como irmãos e irmãs, para lutar contra os venenos, lutar a favor das sementes crioulas, trabalhar pela agricultura familiar e pela agroecologia”.


Cantando, os artistas assumem o papel de camponeses e semeiam nas mentes os sonhos e as sementes de resistência / Divulgação

A música também é semente

Fato é que entre os mais de 300 participantes do encontro haviam muitos “tipos” de semente. Muitas sementes concretas, mas também muitas sementes simbólicas. Destas, as simbólicas, em especial se podia notar no canto de Antonio Gringo, Regina Wirtti Dellagerisi, Ave Cantadeira e outros artistas populares que se apresentaram no encontro. Depois de muito tempo alimentando a mística da luta social e popular apenas através das “lives” mediadas pela tecnologia, chegou o dia de voltar a cantar diretamente ao povo e com o povo.

“Sementes têm vida dentro de si”, afirmou Regina, que registrou que a tarde quando o encontro foi realizado foi um momento de muita mística, onde “falamos de vida e vida em abundância, e a música faz parte dessa mística, esse é o nosso compromisso”, explicou. “Foi um dia muito emocionante, onde a vida caminhou lado a lado com a arte, em defesa da Mãe Terra. Nós paramos para reverenciar a Mãe Terra”. A música engajada e comprometida é um ato de resistência, a música lado a lado, a música como semente que nos leva a chamar: vamos resistir e vamos cantar!”

“Sentimos muita energia, no espaço, na paisagem e especialmente nas pessoas”, relata Gringo, que para além da oportunidade de voltar a cantar presencialmente, saudou o reencontro com tantos companheiros e companheiras de luta: “Foi um encontro de uma mística muito envolvente, que também nos permite afirmar que a música faz parte das lutas, sem a arte, sem a música, os encontros ficariam um tanto áridos”.

Assim como na Parábola do Semeador, contada por Jesus aos seus seguidores, as sementes mais uma vez foram lançadas. Algumas caíram em terra árida, outras entre os espinheiros, outras nas barrancas da estrada... Mas muitas caíram em terra boa, foram cultivadas por mãos camponesas repletas de habilidade e a roça rendeu – como há 20 anos vem rendendo - colheita farta, à luta permanente em defesa da terra, das sementes e das gentes.


Retomada dos eventos presenciais, ainda que limitados pelos protocolos de segurança, tem grande significado para a rearticulação das bases / Divulgação

Manifesto contra agrotóxicos

Confira a íntegra do manifesto de repúdio, contra os agrotóxicos e a favor das iniciativas em defesa da agricultura familiar e camponesa, assinado por todos os presentes ao final do 20º Encontro Diocesano de Sementes Crioulas:

Manifesto de repúdio – Contra a liberação desenfreada de agrotóxicos, contra a ameaça às sementes crioulas pelas sementes transgênicas e contra a falta de políticas agrícolas que valorizem os pequenos agricultores e agricultoras, jovens e mulheres da roça.

Nós agricultores, agricultoras, jovens da roça, guardiões e guardiãs de sementes crioulas e demais participantes do 20ºEncontro Diocesano das Sementes Crioulas realizado no dia 27 de outubro de 2021 em Santa Emília, município de Venâncio Aires, abaixo assinamos nossa manifestação pública de repúdio contra a liberação desenfreada de agrotóxicos e de sementes transgênicas que põe em risco o meio ambiente, a saúde da população, a soberania e a segurança alimentar. Onde vamos parar com tantos venenos? Quem irá garantir o direito dos agricultores/as de produzirem alimentos a partir de suas próprias sementes sem que sejam contaminadas por transgênicos?

- Exigimos que agrotóxicos proibidos em seus países de origem, devam ser proibidos aqui também.

- Proibição imediata do uso de agrotóxicos por aviação agrícola.

- Exigimos aprovação imediata de uma linha de Crédito Emergencial para a Agricultura Familiar.

- Exigimos que a Lei Assis de Carvalho aprovada pela Câmara e o Senado seja colocada em prática imediatamente.

- Exigimos recursos específicos para fortalecer os agricultores e agricultoras guardiões das Sementes Crioulas, bem como produtores orgânicos, jovens e mulheres da roça.

Santa Emília, Venâncio Aires,/RS, 27 de outubro de 2021


:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato RS no seu Whatsapp ::

SEJA UM AMIGO DO BRASIL DE FATO RS

Você já percebeu que o Brasil de Fato RS disponibiliza todas as notícias gratuitamente? Não cobramos nenhum tipo de assinatura de nossos leitores, pois compreendemos que a democratização dos meios de comunicação é fundamental para uma sociedade mais justa.

Precisamos do seu apoio para seguir adiante com o debate de ideias, clique aqui e contribua.

Edição: Katia Marko