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Coluna

Escritos de uma Enfermeira: a linha de frente da enfermagem tem rosto de mulher negra

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A enfermeira Mônica Calazans foi a primeira brasileira a ser vacinada no Brasil, em 17 de janeiro deste ano, com o imunizante CoronaVac - Governo do Estado de São Paulo/Divulgação
Historicamente, Brasil colonial, sempre foram as mulheres negras responsáveis pelo cuidado

No final de 2019, surtos de uma nova doença começaram a dar sinais pelo mundo preocupando a população e os profissionais de saúde que estavam lidando com pacientes com sintomas respiratórios semelhantes a outras doenças. Investigações identificaram a presença de um vírus nunca antes visto em humanos, denominado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de coronavírus, SARS-CoV-2, causador da doença covid-19.

Na linha de frente, recebendo os primeiros casos ainda desconhecidos e sem informações suficientes do coronavírus, estavam as equipes de Enfermagem. Por todo o globo, foram frequentemente tratados como heroínas/heróis. Porém, considerar a enfermagem e seus profissionais como heroínas/heróis acaba por distanciar o ser humano que existe por trás de cada um. Não são heróis, são trabalhadoras(es) exaustas(os) por longos plantões, salários baixos, falta de equipamentos de proteção individual (EPI) e treinamentos adequados frente à maior crise sanitária no mundo.

Segundo o Conselho Internacional de Enfermeiras, sediado em Genebra, mais de 600 profissionais morreram em todo o mundo vítimas do novo coronavírus.

Quando pensamos na realidade brasileira é impossível falar sobre SUS e não falar da Enfermagem, uma categoria profissional que representa mais da metade dos profissionais de saúde em atuação no Brasil. Nenhum local de saúde funciona sem ao menos um enfermeiro e/ou técnico de enfermagem. A Enfermagem é essencial, só ela está presente em todas as fases de nossas vidas e em várias dimensões da saúde.

Nas listas sobre as profissões do futuro, dificilmente a Enfermagem fica de fora, mas pouco se fala de que não há um piso nacional salarial estabelecido, resultando em salários baixíssimos e em que o profissional precise ter dois ou três empregos para complementar sua renda, causando sobrecarga de trabalho e danos físicos e mentais a longo prazo.

A pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil de 2017, organizada pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEN), que mostrou a renda mensal de todos os empregos e atividades que a equipe de Enfermagem exerce, traz que cerca de 1,8% (em torno de 27 mil pessoas) recebem menos que um salário mínimo por mês. Os dados da pesquisa ainda confirmam o maior número de mulheres enquanto profissionais, representam 85,1% da categoria.

Essa participação deve ser ressaltada porque ilustra a importância do papel atribuído pela sociedade à mulher como cuidadora. Essa é, e sempre foi, uma das atividades onde tem a maior participação de mulheres. Tal constatação nos leva a refletir sobre os porquês da desvalorização dessa profissão e como está entrelaçado a um pensamento antigo de que o cuidar não seja uma profissão digna, por isso sempre foi atribuída às mulheres e não merece condições melhores de trabalho.

Mais ainda, ao olharmos para os dados sobre raça e escolaridade, a cara da Enfermagem é de uma mulher negra com nível médio, ocupando os cargos de técnica e/ou auxiliar de Enfermagem.

Historicamente, no Brasil colonial, sempre foram as mulheres negras responsáveis pelo cuidado de enfermos, idosos e crianças, mesmo que isso significasse abandonar sua própria família.

Sempre soube que meu lugar não era o da Enfermeira Padrão, identidade criada sob a elitização e branqueamento impostos. Além disso, a existência de uma heterossexualidade compulsória enquanto modelo político dizendo o que é ou não normal, que me atravessa. Sendo mulher lésbica e preta numa profissão formal, é estar sempre em linha de frente.

Me formei em 2019 como bacharel em Enfermagem graças ao Programa Universidade para Todos (Prouni) que me deu uma bolsa integral numa universidade particular. Fui a primeira da minha família a ingressar no ensino superior.

Em resumo, não posso deixar de pensar no quanto as forças que governam meu caminhar hoje brotaram do pulsar de pessoas que foram invisibilizadas pela história da enfermagem negra. Eu, enquanto mulher, preta, sapatão e Enfermeira especialista em saúde mental não posso deixar de reverenciar e falar sempre em Dona Ivone Lara, Neusa Santos Souza...

Artigo de Pâmela de Freitas Soares, integrante do Coletivo Virginias e da Rede LesBi

* Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira