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China erradica pobreza extrema enquanto bilionários dão voltinha no espaço

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Mulheres na cidade de Tongren, província de Guizhou, na China - Johannes EISELE / AFP
Presidente da China, Xi Jinping, anunciou que erradicou a pobreza extrema. O que isso significa?

Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Notícias confusas vêm do principal relatório World Economic Outlook, do Fundo Monetário Internacional (FMI). O documento destaca muitas das questões urgentes que nosso planeta enfrenta: interrupções na cadeia de abastecimento global, aumento dos custos de transporte, escassez de bens intermediários, aumento dos preços das commodities e pressões inflacionárias em muitas economias. As taxas de crescimento global devem atingir 6% em 2021 e 4,9% em 2022, impulsionadas pelo aumento da dívida governamental global. De acordo com o relatório, essa dívida “atingiu um nível sem precedentes de quase 100% do PIB global em 2020 e a projeção é que permaneça em torno desse nível em 2021 e 2022”. A dívida externa dos países em desenvolvimento permanecerá alta, com poucas expectativas de alívio.

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A cada ano, a economista-chefe do FMI, Gita Gopinath, destaca os principais temas do relatório em seu blog. Esse ano, o título é claro: “Cada vez mais distantes: cresce a divergência na recuperação global”. A fenda segue ao longo da linha Norte-Sul, com as nações mais pobres incapazes de encontrar um caminho fácil para sair da desaceleração global induzida pela pandemia. Uma série de razões causam essa cisão, como a penalidade de depender da produção baseada na mão de obra intensiva, a pobreza geral da população e os problemas de dívida de longa data. Mas Gopinath se concentra em um aspecto: o apartheid vacinal. “Perto de 40% da população nas economias avançadas foi totalmente vacinada, em comparação com 11% nas economias de mercado emergentes e uma pequena fração nos países em desenvolvimento de baixa renda”, escreve ela. A falta de vacinas, argumenta, é a principal causa das “lacunas cada vez maiores na recuperação global”.

Essas lacunas cada vez maiores têm um impacto social imediato. O relatório de 2021 da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), O estado de insegurança alimentar e nutrição no mundo, observa que “quase uma em cada três pessoas no mundo (2,37 bilhões) não teve acesso a alimentos adequados em 2020 – um aumento de quase 320 milhões de pessoas em apenas um ano”. A fome é intolerável. Convulsões sociais motivadas por questões alimentares estão agora em evidência, de forma mais dramática, na África do Sul. “Eles estão nos matando de fome aqui”, disse um residente de Durban motivado a se juntar à mobilização. Esses protestos, assim como os novos dados divulgados pelo FMI e pela ONU, colocaram a fome de volta na agenda global.

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Em Hong Kong, homem comercializa ampla variedade de alimentos em loja de produtos naturais / ISAAC LAWRENCE / AFP

No final de julho, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas realizou um fórum político de alto nível sobre desenvolvimento sustentável. A declaração ministerial do fórum reconheceu que “a crise causada pela pandemia de Covid-19 revelou e exacerbou as vulnerabilidades e desigualdades do nosso mundo dentro e entre os países, acentuou as fraquezas sistêmicas, desafios e riscos e ameaça interromper ou prejudicar o progresso feito na realização dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável”. Dezessete Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) foram adotados pelos Estados membros da ONU em 2015. Esses objetivos incluem a redução da pobreza, o fim da fome, boa saúde e igualdade de gênero. Antes da pandemia, já estava claro que o mundo não alcançaria essas metas até 2030 conforme projetado, certamente nem mesmo a meta mais básica de erradicar a fome.

Durante esse período desolador, no final de fevereiro de 2021, o presidente da China, Xi Jinping, anunciou que – em oposição a essa crise global geral – que o país asiático erradicou a pobreza extrema. O que significa este anúncio? Como nossa equipe do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social relatou em uma recente publicação, isso significa que 850 milhões de pessoas saíram da pobreza absoluta (o fim de um processo de sete décadas que começou com a Revolução Chinesa de 1949), que a renda per capita aumentou para 10 mil dólares (um aumento de dez vezes nos últimos vinte anos), e a expectativa de vida aumentou para 77,3 anos em média (em comparação com 35 anos em 1949). Tendo cumprido os ODS de redução da pobreza com dez anos de antecedência, a China contribuiu com mais de 70% da redução total da pobreza no mundo. Em março de 2021, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, comemorou essa conquista como um “motivo de esperança e inspiração para toda a comunidade das nações”.

Nosso estudo de julho, Servir ao povo: a erradicação da pobreza extrema na China, inaugurou uma nova série denominada Estudos sobre o Socialismo em construção, por meio da qual pretendemos estudar experiências na construção de práticas socialistas de Cuba a Kerala, da Bolívia à China. A publicação analisa os programas de erradicação da pobreza em diferentes partes da China e entrevista especialistas que participaram dessa empreitada de longo prazo. Wang Sangui, reitor do Instituto Nacional de Pesquisa para Alívio da Pobreza da Universidade de Renmin, por exemplo, nos disse como o conceito de pobreza multidimensional é central para a abordagem chinesa. O conceito se tornou uma política por meio do programa do Partido Comunista da China (PCCh) de “três garantias” (moradia segura, saúde e educação) e “dois seguros” (ser alimentado e vestido). Mas mesmo aqui, a essência dessa política está nos detalhes. Como Wang disse em termos de água potável:

Como você classifica a água potável como segura? Em primeiro lugar, o requisito básico é que não deve haver escassez de abastecimento. Em segundo lugar, a fonte de água não deve estar muito longe, não mais do que vinte minutos de ida e volta. Por último, sua qualidade deve ser segura, sem quaisquer substâncias nocivas. Exigimos relatórios de teste que confirmem que a qualidade da água é segura. Só então podemos dizer que o padrão é cumprido.


Em celebração do centenário do Partido Comunista, Presidente Xi Jinping faz discurso destacando o desenvolvimento do socialismo / Noel Celis / AFP

Depois que uma política é elaborada, o verdadeiro trabalho de implementação começa. O Partido Comunista Chinês (PCCh) enviou 800 mil quadros para ajudar as autoridades locais a pesquisar as famílias para entender a profundidade da pobreza no campo. Depois, o PCCh delegou 3 milhões de quadros dos 95,1 milhões de membros do Partido para fazer parte de 255 mil equipes que passaram anos vivendo em aldeias pobres trabalhando pela erradicação da pobreza e das condições sociais que ela criou. Uma equipe foi designada para um vilarejo, um quadro para cada família.

Os estudos sobre a pobreza e a experiência dos quadros resultaram em cinco métodos básicos para erradicar a pobreza: desenvolver a indústria; realocar pessoas; incentivar a compensação ecológica; garantir educação gratuita, de qualidade e obrigatória; garantir assistência social. A alavanca mais poderosa desses cinco métodos foi o desenvolvimento industrial, que criou uma produção agrícola de capital intensivo (incluindo processamento de safras e criação de animais); fazendas restauradas; e cultivaram florestas como parte dos esquemas de compensação ecológica, revivendo áreas que haviam se tornado presas da superexploração de recursos. Além disso, foi dada ênfase à educação de mulheres e populações minoritárias. Como resultado, em 2020, a China ocupava o primeiro lugar no mundo em matrículas de mulheres no ensino superior, de acordo com o Fórum Econômico Mundial.

Menos de 10% das pessoas que saíram da pobreza conseguiram esse feito devido à realocação, que costumava ser o exemplo mais dramático do programa. Um residente realocado, Mou’se, falou sobre Atule’er, uma vila na beira de uma montanha, onde morou antes de se mudar. “Levei meio dia para descer o penhasco para comprar um pacote de sal”, lembrou ele. Ele descia o penhasco em uma “escada do céu” de vime, que pendia perigosamente da borda do penhasco. Sua mudança – junto com as 83 outras famílias que moravam lá – permitiu que ele tivesse acesso a melhores instalações e tivesse uma vida menos precária.

A erradicação da pobreza extrema é significativa, mas não resolve todos os problemas. A desigualdade social na China continua sendo um problema sério. Problema este não apenas da China, mas da humanidade em nosso tempo. À medida que mudamos para uma agricultura de capital intensivo que requer menos agricultores, que tipos de habitações iremos produzir que não sejam nem em áreas rurais nem urbanas? Que tipo de emprego pode ser gerado para pessoas que não são mais necessárias no campo? Podemos começar a pensar em uma semana de trabalho mais curta, permitindo mais tempo para se dedicar mais ao exercício da cidadania e ao social?

Erradicar a pobreza não é um projeto chinês. É o objetivo da humanidade. É por isso que movimentos e governos comprometidos com essa finalidade olham cuidadosamente para as conquistas do povo chinês. Muitos dos projetos em andamento, no entanto, adotam uma abordagem radicalmente diferente, buscando tratar da pobreza por meio da transferência de renda (como defendem vários institutos de pesquisa sul-africanos). Mas os programas de transferência de renda não são suficientes. A pobreza multidimensional exige mais do que isso. O programa Bolsa Família, por exemplo, implementado no Brasil pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, causou uma enorme redução da fome naquele país, mas não foi projetado para erradicar a pobreza.

Enquanto isso, no estado indiano de Kerala, a pobreza absoluta caiu de 59,79% da população em 1973-74 para 7,05% em 2011-2012 sob o governo da Frente Democrática de Esquerda. Os mecanismos que levaram a esse declínio dramático foram a reforma agrária, o estabelecimento de saúde e educação públicas, a criação de um sistema público de distribuição de alimentos, a descentralização da autoridade política para os governos autônomos locais, o fornecimento de seguridade social e bem-estar e a promoção da ação pública (por exemplo, por meio dos projetos cooperativos da organização Kudumbashree). O ministro-chefe de Kerala, Pinarayi Vijayan, disse recentemente que seu governo está empenhado em erradicar a pobreza extrema no estado. O próximo estudo de nossa série sobre a construção socialista se concentrará no movimento cooperativo de Kerala, focando seu papel na erradicação da pobreza, da fome e no combate ao patriarcado.

Em março, o Programa Ambiental da ONU divulgou seu Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos, que mostrou que cerca de 931 milhões de toneladas de alimentos foram para o lixo em todo o mundo. O peso desse alimento é aproximadamente igual ao de 23 milhões de caminhões de 40 toneladas totalmente carregados. Se deixarmos esses caminhões alinhados para-choque com para-choque na circunferência da Terra, eles farão um anel longo o suficiente para circundar a Terra sete vezes, ou ir para as profundezas do espaço, onde os bilionários Jeff Bezos e Richard Branson decidiram ir. Os 5,5 bilhões de dólares que Bezos gastou em uma viagem de quatro minutos ao espaço poderiam ter alimentado 37,5 milhões de pessoas ou financiado totalmente o programa Covax, que vacinaria dois bilhões de pessoas.

As ambições de Bezos e Branson não são vida. A vida é a abolição da aspereza da necessidade.

Cordialmente,

Vijay.

 

*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano. Diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Leia outras colunas.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo