Violação de direitos

MP da Eletrobras libera Linhão de Tucuruí no território dos Waimiri Atroari

Emenda acelera a construção do empreendimento sem que se cumpra os ritos legais e viola os direitos dos indígenas

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População Waimiri Atroari (autodenominados Kinja) terão suas terras atingidas pelo Linhão - Bruno Kelly/Amazônia Real

O Linhão de Tucuruí, no trecho que vai de Manaus, no Amazonas, a Boa Vista, em Roraima, recebeu sinal verde com a aprovação da Medida Provisória 1.031, que trata da privatização da Eletrobras.

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A União está obrigada a iniciar, de forma imediata, a obra, inserida como uma emenda “jabuti”, de autoria do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR).

A obra é uma violação aos direitos da população Waimiri Atroari (autodenominados Kinja), que terão suas terras atingidas pelo Linhão.

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“A obra, em tese, pode ser iniciada ainda que não haja o licenciamento ambiental, pondo em risco não apenas o ecossistema da Amazônia como também sujeitando a Comunidade Waimiri Atroari a graves impactos socioambientais”, lembra o advogado Harilson Araújo, da Associação Comunidade Waimiri Atroari.

O relator da MP, deputado Elmar Nascimento (DEM-BA), apontou no texto final que só falta traduzir para a língua indígena o Projeto Básico Ambiental-Componente Indígena (PBA-CI), elaborado pelo empreendedor TNE (Transnorte Energia e o consórcio formado pela Alupar e Eletronorte), e apresentá-lo aos Waimiri Atroari.

Cumprida essa formalidade, “a União estará autorizada a iniciar imediatamente o Linhão de Tucuruí”.

Mas a MP atropela a Constituição Federal, já que ela permite a construção do Linhão sem nem seguir os trâmites para a emissão do Licenciamento Ambiental pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

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A garantia a uma consulta prévia e esclarecida à Comunidade Waimiri Atroari, de acordo com Harilson, encontra respaldo nos artigos 231 e 232 da Constituição e também nas disposições da Convenção 169 da OIT, tratado internacional que versa sobre direitos humanos indígenas e do qual o Brasil é signatário.

Lideranças Waimiri Atroari vão se reunir na próxima semana para definir que posição adotarão. Desde a retomada do processo de elaboração do PBA-CI, a comunidade indígena sempre esteve participativa em todas as etapas de realização dos estudos.

“Isso vale para desmistificar a lenda de que o atraso na conclusão de todas as etapas do processo legal de validação do empreendimento se deveu a uma oposição direta e deliberada dos Waimiri Atroari”, afirma Harilson. 

O advogado faz questão de frisar que, no histórico do processo, os atrasos se deveram a ações judiciais movidas pelo Ministério Público Federal (MPF), pela morosidade do governo, por sucessivas trocas na presidência da Funai e também pela pandemia de covid-19, que forçou o isolamento social dos brasileiros, incluindo a Comunidade Waimiri Atroari.

Outra questão levantada pelo advogado diz respeito ao consórcio, que teve seu contrato firmado com a União rescindido por uma sentença na Justiça Federal. “E aí? Vai licitar novamente?  Vai negociar a não rescisão do contrato? Volta tudo à estaca zero?”, questiona.

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Os Kinja afirmam que o percurso das torres de eletricidade passará próximo das aldeias, roças, rios e lagos, lugares que consideram sagrados. Outra preocupação é que o Linhão de Tucuruí ameace os índios isolados Pirititi, que vivem em território ainda não demarcado e nos limites da TI Waimiri Atroari.


Povo Waimiri-Atroari, que se autodenomina Kinja / Mário Vilela/Funai

A judicialização da MP

A deputada federal indígena, Joenia Wapichana (Rede-RR), se posicionou contrária ao “jabuti” do Linhão de Tucuruí.

“Esta MP 1.031 é potencialmente uma das piores que já foram votadas pelo Congresso, pois traz prejuízos econômicos, sociais e ambientais para os povos indígenas, para toda classe social, para estados, governo e consumidores”, dispara.

“A quem ela beneficia? Ela beneficia os pouquíssimos que fazem lobby pela privatização. Essa é uma resposta que a sociedade brasileira precisa avaliar”, acrescenta a deputada, que informa que a oposição está preparando uma petição para judicializar a MP.

“Em razão disso e como já está sendo noticiado na imprensa, essa MP, fatalmente, será objeto de judicialização, até porque já há notícias de que alguns partidos irão questioná-la no Judiciário”, acrescenta o advogado Harilson Araújo, da Associação Comunidade Waimiri Atroari.

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O procurador da República e coordenador do grupo de trabalho de prevenção de atrocidades contra povos indígenas, Julio Araújo Júnior, entende que a MP não vingará.

“O Supremo (Tribunal Federal) mesmo já disse que é descabido. Seria um tema alheio ao objeto da medida provisória”, esclarece. Segundo ele, essa estratégia de querer fazer a qualquer custo a linha de transmissão violando procedimentos previstos na legislação não é nova.

“Se tivesse sido cumprida desde o começo, talvez a linha de transmissão pudesse estar instalada. Mas o esforço todo tempo em não obedecer, não observar  essas previsões constantes da legislação e agora também legislar ao arrepio da Constituição”, questiona Araújo Júnior.  

O procurador afirma que os interessados pela obra tentam flexibilizar, mudar procedimentos e, ao mesmo tempo, culpar os indígenas, a lei, as decisões judiciais e o Ministério Público. “Mas na verdade o que existe é uma intenção de não cumprir os procedimentos. E é isso que atrasa”, arremata.


Exploração de jazidas em plena floresta amazônica provocou o quase extermínio da nação Waimiri-Atroari / Euvillazio Queiroz / AFP

Os Waimiri Atroari são pressionados para a construção do Linhão do Tucuruí desde o governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). No início de 2016, o então presidente da Funai, João Pedro Gonçalves, permitiu ao Ibama conceder a licença prévia ambiental.

Um forte lobby de políticos de Roraima se mobiliza há anos para a construção do empreendimento, mesmo que os indígenas se mostrem contra. Desde então, os Waimiri Atroari travam uma batalha judicial na qual exigem serem consultados sobre a obra.

Os Kinja são vítimas de um histórico de violações de direitos que se agravaram na década de 70, com a construção da BR-174, durante a ditadura militar, que atravessou seu território e causou um verdadeiro massacre, reduzindo drasticamente sua população. O território também foi invadido por empresas mineradoras e, na década de 80, foi inundado para construção da Hidrelétrica de Balbina.