Ceará

Crítica

Opinião | Como nasce uma travesti?

Algumas palavras insuficientes sobre a exposição Travestis (não) são gestadas em nove meses – Gênese, de Vita da Silva

Brasil de Fato | Crato (CE) |
Obra "A criança dos meus olhos" presente na exposição - Jaque Rodrigues

Em maio, mais precisamente no dia 14, esse mês tão simbólico para algumas subjetividades corporificadas, marca e é marcado pela primeira exposição individual da artista transmídia Vita da Silva, que nasce no Sertão dos Inhamuns, em Arneiroz, e segue nascendo hoje em Crato, no Cariri. Essa jovem artista com seus 24 anos corta uma fenda no mundo normatizado que vivemos com suas questões, que para alguns desavisados pode aparentar serem questões individuais, mas que para um olhar mais atento fala do todo. Mas esse falar do do todo não se apresenta de forma homogênea, até porquê eu – um homem branco cis, mesmo que pobre – não apreendo o mundo da mesma forma que uma travesti mulher.

No entanto, abrindo ouvidos cabeça e corpo para mergulhar na experiência estética, ética e política que Vita lança ao mundo nós temos muito o que aprender com ela, sobretudo sobre as violências que executamos cotidianamente sobre mulheres travestis, principalmente para os que querem escapar com o argumento de que não é intencional, faz parte da estrutura… Esses argumentos não são válidos. Passemos a uma postura ativa e mudemos as nossas posturas e compreensões de mundo para que possamos coletivamente construir um mundo novo que não envolva genocídio de corpos travestis.

Na exposição Travestis (não) são gestadas em nove meses – Gênese, Vita partilha conosco parte do seu processo de renascimento. Abre aos olhos dispostos um panorama de sua transmutação. E ela faz isso de forma prodigiosa, se utilizando de diversas técnicas e linguagens. Podemos ver desenhos, pinturas, vídeos, palavra, nanquim, performance. Nada acorrenta o espírito livre da artista, ela rompe com qualquer amarra simbólica, real ou imaginária que a colonialidade cisheteronormativa capitalista tenta impor contra sua materialidade no mundo.

O primeiro trabalho que encontramos ao adentrar no site – A criança dos meus olhos – abre a exposição já com uma pancada. Um retrato de Vita pequena sorrindo (inclusive com os olhos, que é um dos mais belos sorrisos) em um dos espaços que deve ter sido dos mais violentos por onde ela transitou, a escola, provavelmente em um dia que comemorava o 7 de setembro ou alguma outra data alusiva a uma suposta brasilidade vitoriosa. Mas me pergunto: vitoriosa pra quem? Será que as margens do Ipiranga nos tornamos independente de fato? Quantas crianças conseguem terminar a escola e como são essas crianças? Não proponho respostas aqui e nem acredito que esse seja o objetivo de Vita. Nós que pegamos na rudia da concretude é que temos que carregar o pote.

No díptico Fuga (2018-2019) ela nos lança mais algumas pistas de como nasce uma travesti mulher, algumas das experiências pela qual ela passou no seu próprio útero, que como ela diz é exposto e umbilicalmente tecido pela palavra e pelo gesto. Um trânsito na fronteira, um caminhar pelo entre lugares. Em Da rua não volto ilesa (2020) uma tela pintada com PVA fosca, uma roupa vermelho sangue vestindo um corpo ausente nos faz pensar sobre as violências que muitos de nós nem conseguimos compreender, pois nem todo corpo sofre agressões físicas e verbais por andar com a roupa que lhe faz se sentir bem, que lhe faz se sentir bonito ou bonita.

Na série Travessia (2021) ela recria objetos do cotidiano que para alguns podem ser apenas isso, objetos do cotidiano sem muita relevância, mas que para ela são ferramentas de cuidado e transformação nesse processo de gestação de si. Objetos carregados de memória individual e coletiva. Por fim, Vita nos brinda com uma videoarte – A materialidade é o limite do caminho – que não tem outro adjetivo a ser utilizado que não incrível. É de uma sensibilidade e de uma verdade que nem consigo descrever.

Uma única coisa que senti verdadeiramente falta nessa exposição foi da presença. Digo, de poder ver todos os trabalhos ao vivo e em carne e cores. De poder encontrar outros corpos na galeria se defrontando com as obras e reparar suas reações. De poder ver Vita na abertura rodeada das suas pessoas próximas. Mas como ela mesma colocou em conversas nossas as condições da Aldir Blanc ajudaram a nascer a exposição, mas não cobririam os custos de uma exposição presencial, por isso desejo que venham mais investimentos para cultura, para que possamos ter mais exposições como essa para nos deleitarmos e ampliarmos a consciência e a cultura de nosso brasilzão.

Uma última coisa que acho essencial comentar é a dimensão generosa e solidária de Vita que transborda em sua exposição de várias formas. Seja fragmentos de diálogos dela com amigas seja na aba que ela cria no site da exposição para a campanha #umchaoparabia onde várias pessoas se envolvem nacionalmente pela arrecadação de fundos para a compra de uma casa para Bianca Kalutor uma travesti preta e artista. Vale ainda uma olhada na equipe que Vita monta pra organizar sua exposição com profissionais incríveis e que também são marcados por identidades historicamente vilipendiadas.

Nesse breve, mas profundo, apanhado de trabalhos de Vita da Silva nos deparamos com um experiência riquíssima que a artista nos lança, percebemos não só a qualidade técnica e estilística que Vita possui, mas percebemos também a qualidade conceitual brota de cada obra e isso só pode vir de alguém que verdadeiramente investe estudo e trabalho no que faz, demonstrando a inteligência e perspicácia dela. São imagens simples, porém bem elaboradas e são tão prenhes de tantas significações que não cabem em um texto tão curto como esse para um jornal. Por isso visitem a exposição no link abaixo e siga a artista em suas redes sociais (@a_vitadasilva) para conhecer mais de sua produção. A exposição está disponível aqui.

Edição: Monyse Ravena