Coluna

Um Apartheid para chamar de nosso

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incluir 16 categorias profissionais nos grupos prioritários, como prevê uma proposta que tramita no Congresso, talvez não resolva o problema já que não há vacinas suficientes - Divulgação / Prefeitura do Rio
Se depender de Bolsonaro, não haverá mesmo saída pública e coletiva para a pandemia

Olá,

O que cresce na mesma proporção que a fome no Brasil? A riqueza dos novos bilionários em plena pandemia. A imagem de um país segregado, com os vacinados em ilhas de riqueza cercados de pobres abandonados à própria sorte, não é distopia, é o Brasil de 2021.

1. Vai comprar! Nos seis primeiros dias de abril, o número de óbitos superou o de nascimentos e se a pandemia prosseguir no ritmo atual, no próximo dia 19 o país pode atingir 95 mil mortes só neste mês. Os dados mostram que trabalhadores como frentistas, motoristas de ônibus e professores estão mais expostos à doença.

Porém, incluir 16 categorias profissionais nos grupos prioritários, como prevê uma proposta que tramita no Congresso, talvez não resolva o problema já que não há vacinas suficientes. Em contrapartida, a Câmara criou o “camarote da vacina” (PL 948) que permite que empresas adquiram e apliquem vacinas em seus funcionários e sócios mesmo antes de imunizados os grupos prioritários.

A proposta agora segue para o Senado. Na opinião da epidemiologista Margareth Dalcolmo a lei não resolverá o problema e “ao invés de perder tempo com isso, o Brasil deveria resolver as questões de gestão diplomática, administrativa, política, e resolver as compras”.

Por outro lado, o projeto que propõe a quebra das patentes de vacinas patina na Câmara e conta com a oposição do governo. Se depender de Bolsonaro, não haverá mesmo saída pública e coletiva para a pandemia. Na primeira reunião do Comitê de Enfrentamento da Pandemia, Bolsonaro permaneceu irredutível contra o isolamento.

E um relatório do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) demonstra que o governo não usou R$ 80,7 bilhões de recursos previstos para o combate à pandemia. Além disso, o orçamento da saúde para este ano é idêntico ao do ano passado, apenas reajustado pela inflação, sem prever qualquer recurso extraordinário para a compra de vacinas.

Na prática, o orçamento revela que Bolsonaro continua apostando na tese de “imunidade de rebanho” e na cloroquina, responsável pelo aumento de mortes por efeitos colaterais. Por isso, não faltam motivos para a abertura de uma CPI da pandemia, como determinou nesta quinta (08) o ministro do STF Luís Roberto Barroso. Sem uma coordenação nacional e apesar dos ataques das hostes bolsonaristas, são os esforços municipais e estaduais com lockdowns locais que têm surtido efeito, como foi o caso de Araraquara e mesmo de Chapecó, elogiada por Bolsonaro.

2. Criaturas do abismo. Dados da pesquisa Olhe para a Fome, realizada no último trimestre de 2020, apontam que 19 milhões de pessoas, ou seja 9% da população brasileira, passam fome diariamente. Este é o maior número desde 2004. Além disso, cerca de 55% dos brasileiros convivem com algum grau de insegurança alimentar. Sim, mais da metade da população do país!

Como alerta Maister da Silva, as ações de solidariedade impulsionadas pela sociedade civil são importantes, mas o quadro não será revertido sem políticas públicas conduzidas pelo Estado. Enquanto os reles mortais recebem um auxílio emergencial que não compensa as perdas de renda ocorridas ao longo da pandemia, o número de bilionários no Brasil subiu de 45 para 65 do ano passado para cá, segundo a revista Forbes.

Somada, essa elite acumula uma inimaginável fortuna de R$ 73 trilhões. Eis o sinal de que alguma coisa está muito errada. Um dos mecanismos perversos de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos é a inflação, que não tem data para acabar.

O economista André Braz da FGV projeta que a inflação entre os mais pobres deve continuar subindo até pelo menos o final do primeiro semestre, acumulando uma perda anual de 8% da renda. Ao lado da inflação, a pandemia também agravou o desemprego e a precarização do trabalho. Exemplo disso é a “lista suja” do trabalho escravo atualizada pelo governo essa semana.

Desde 2018 foram resgatados cerca de 1.700 trabalhadores em condições análogas à escravidão em 92 empresas. Dentre elas destacam-se as construtoras, mineradoras e empresas agropecuárias. Mas, além da iniciativa privada, o Estado também dá sua contribuição para a manutenção do abismo social.

Ações desumanas, como os despejos, continuam ocorrendo em todo o país, a exemplo do Distrito Federal, onde na última quarta-feira (7) famílias de catadores de materiais reciclados tiveram seus barracos e inclusive uma escola derrubados pelo batalhão de choque da PM.

3. Meu exército. Na cerimônia de promoção de oficiais-generais, Bolsonaro voltou a falar em “meu exército” como se ele fosse dono das forças armadas. Mas a verdade é que o exército de Bolsonaro é mais seleto. Se por um lado, na reforma ministerial, ele perdeu o fiel aliado Ernesto Araújo, por outro, fortaleceu o núcleo do governo que realmente lhe interessa, aquele que incide no aparato policial e juŕidico.

O novo ministro da Justiça Anderson Torres realiza um antigo sonho de Bolsonaro de mexer na direção da Polícia Federal para cuidar de temas sensíveis ao governo, como os inquéritos sobre fake news e as movimentações financeiras da família. O ministro também tem a tarefa de refazer as pontes do Planalto com a bancada da bala, desgostosa com o tratamento dos policiais na proposta de congelamento de salário dos servidores e com a ausência de prioridade na vacinação.

A relação é importante, pois Bolsonaro pretende usar os policiais como instrumento de ameaça e chantagem política para desestabilizar os governadores, dentro e fora dos quartéis, disseminando notícias falsas nas redes sociais e estimulando motins. A outra frente são os neopentecostais. A decisão de Kassio Nunes Marques de liberar cultos e missas presenciais foi claramente encomendada pelo Planalto.

Ela reforça a tese negacionista de que a pandemia é “uma fatalidade imposta por Deus e não a expressão matemática de interações sociais desprotegidas entre portadores do Sars-CoV-2 e suscetíveis”, como resume Hélio Schwartsman. A novidade é a entrada do fundamentalismo religioso na área jurídica, como denuncia a Associação de Advogadas e Advogados Públicos para a Democracia.

Para se ter uma ideia do absurdo, até mesmo o governo da Arábia Saudita, que não é nenhum exemplo de Estado laico, proibiu aglomerações no Ramadã devido à pandemia. O comportamento submisso de Nunes Marques à Bolsonaro serve como exemplo para Augusto Aras e André Mendonça de qual o caminho seguir para chegar ao STF. Como constata Andrei Meireles, pelo critério macabro, fica com a vaga aquele que cometer mais ameaças à vida e defender melhor a pandemia.

4. Indigesto. A outra ponte que Bolsonaro e Guedes pretendiam reconstruir era com o mercado. O jantar organizado pelo empresário da segurança Washignton Cine, foi divulgado como um sucesso, mas pode ter tido efeito contrário: segundo o Valor, apenas empresários bolsonaristas e fiéis ao governo participaram do encontro e o mercado ficou indignado com a percepção de que Bolsonaro teria recebido apoio do meio empresarial.

O comportamento do governo na pandemia é o motivo do descontentamento e não apenas na área da saúde. Paulo Guedes tem deixado não só pequenos e médios empresários à deriva, mas também grandes setores como o ramo automobilístico.

Aliás, tanto as políticas de ajuda às empresas, quanto as políticas sociais e o censo demográfico estão parados devido à inabilidade da dupla Guedes e Bolsonaro em desatar o nó do orçamento. Enquanto não conseguir chegar a um acordo com o Congresso sobre como manter o valor das emendas parlamentares e ao mesmo tempo cumprir o sacrossanto teto de gastos, não há orçamento.

Seguindo as orientações de Guedes e temendo um impeachment por crime de responsabilidade fiscal, Bolsonaro disse “Não vou colocar o meu na reta”, mas também não apontou como vai resolver o problema. Enquanto isso, o centrão aguarda o seu próprio jantar para servir Paulo Guedes ao molho pardo. As conversas já incluem nomes de possíveis substitutos para o Ministério da Economia.

Já a tentativa de agradar o mercado com o pacote de privatizações na área de infra-estrutura foi mais bem sucedida, alcançando ágio de 9.000% no preço das concessões, mas atraiu poucos investidores estrangeiros. Na verdade, uma das marcas da gestão Paulo Guedes é a fuga de dólares e empresas do país.

A percepção de que Bolsonaro é incompetente para lidar com a pandemia e a economia já se tornou um consenso no mundo das finanças globais, como revela a influente consultoria internacional Eurasia group. Prova disto é que enquanto espera-se que a economia global esboce uma reação este ano, o Brasil deve perder mais uma posição e cair para 13.ª economia mundial.

5. A próxima vítima. Outro motivo de incômodo para o mercado permanece sentado na cadeira de ministro do Meio Ambiente. Semana passada, Ricardo Salles se movimentou para não entrar na lista da reforma ministerial: fugiu de polêmicas nas redes sociais, fortaleceu seu apoio na bancada ruralista dentro do Congresso e buscou aproximar-se dos militares.

Mas agora, as quase trezentas empresas do agronegócio e do sistema financeiro que compõem a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura enviaram uma nova carta ao governo exigindo metas mais ambiciosas em relação ao clima e ao meio ambiente.

Depois da queda de Ernesto Araújo, a culpa dos prejuízos internacionais com a política de destruição ambiental caem no colo de Salles. Ainda mais depois do discurso do novo chanceler Carlos Alberto Franco afagando o agronegócio e recuando na negação das mudanças climáticas.

Talvez não tenha caído a ficha de Salles, um dos pilares civis mais fiéis ao bolsonarismo, de que ele é o próximo a ser abatido. No Pará, o ministro criticou a maior apreensão de madeira ilegal pela Polícia Federal (PF) e defendeu as empresas madereiras.

Como resultado, deve ser chamado novamente para dar explicações no Congresso, além de ter sido repreendido publicamente pelo chefe da PF do Amazonas, Alexandre Saraiva, que avisou que lá “ninguém passaria a boiada”.

6. Instituições funcionando. O debate em torno da Lei de Segurança Nacional (LSN) deve colocar o Congresso, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Executivo em posições bem distintas nos próximos dias. No STF, quatro processos questionam se a LSN, cuja versão atual foi sancionada pela ditadura militar em 1983, é compatível com a Constituição de 1988.

Além disso, está em discussão na Corte o aumento em 285% do uso da LSN pelo governo Bolsonaro, notoriamente para perseguir adversários políticos. O ministro Gilmar Mendes, relator das ações, pediu explicações à Advocacia-Geral da União (AGU) e às polícias militares do DF, RJ e MG. Segundo apuração da Folha de S. Paulo, a tendência dos ministros do STF é reconhecer a constitucionalidade da lei, mas vetar alguns artigos.

Um dos artigos que pode ser vetado é o que prevê de um a quatro anos de prisão para quem caluniar o chefe de um dos três poderes, argumento que foi usado pela família Bolsonaro contra o youtuber Felipe Neto. O problema é que o próprio STF também já usou exatamente o mesmo artigo a seu favor, por exemplo na prisão do Deputado Daniel Silveira (PSL-RJ).

Já o presidente da Câmara Arthur Lira quer se antecipar ao STF e colocar em regime de urgência a votação de um dos 37 projetos que alteram a LSN. O projeto defendido por Lira insere um novo capítulo no Código Penal, chamado de “Estado Democrático de Direito”, incluindo dispositivos da Lei de Segurança Nacional.

Com a medida, Lira mandaria dois recados para outros poderes: para o Executivo, expressaria o descontentamento do Congresso com o uso desvairado da lei por Bolsonaro; e, para o STF, demarcaria que é o Parlamento e não a Corte quem deve deliberar sobre questões legislativas.

7. Ponto Final: nossas recomendações.

.Quem é Washington Cinel, bilionário ruralista, ex-PM e anfitrião de Bolsonaro. O Brasil de Fato revela quem é organizador do banquete dos empresários bolsonaristas e seu gosto por armas e terceirizações.

.Alfredo Bosi: ‘O puro orvalho da alma’. Flávio Aguiar homenageia o grande intelectual brasileiro Alfredo Bosi, levado pela covid-19, e resgata importantes contribuições de seu pensamento.

.Dois anos depois, "caso dos 80 tiros" segue sem solução. “É desesperador”, diz viúva de músico fuzilado pelo Exército. Os 12 militares que assassinaram um músico com oitenta tiros permanecem impunes e sem julgamento, como lembra a Agência Pública.

.Como bispo que insistiu em missas virou símbolo de alta de mortes na gripe espanhola. A BBC recupera a história do bispo Antonio Álvaro Ballano, considerado o maior negacionista da gripe espanhola há 100 anos.

.Como a ditadura militar impulsionou a teologia reacionária de igrejas norte-americanas. Artigo da revista Jacobin revela como a conversão de camponeses e indígenas por evangélicos norte-americanos foi largamente apoiada pela ditadura militar brasileira.

.Estratégico para quem? Notas sobre o licenciamento ambiental de projetos minerais estratégicos. No Le Monde Diplomatique, Bruno Milanez analisa como o licenciamento ambiental para a exploração mineral no Brasil reproduz um padrão predatório e dependente.

.A invenção de um candidato de extrema direita. No El País, Joseph Zárate e Eliezer Budasoff apresentam Rafael López Aliaga, candidato à presidência no Peru ligado à Opus Dei, e contam como extrema direita explora o cenário de crise. 

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Ponto é uma publicação do Brasil de Fato. Editado por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stedile.

Edição: Leandro Melito