Paraná

Colapso

"Estamos enxugando gelo", médica do SAMU relata rotina de trabalho

Em entrevista ao Brasil de Fato Paraná, Letícia Moreno de Barros alerta para necessidade de vacinação em massa

Curitiba (PR) |
"Vai chegar um momento em que as pessoas vão começar a morrer em casa sem oxigênio", alerta médica - Nathalie Brasil/Semcom

Dia após dia, o Paraná assiste à chegada do colapso do sistema de Saúde. O informe epidemiológico divulgado pela Secretaria de Estado da Saúde neste domingo (14) registra 98% de ocupação de leitos exclusivos para Covid-19. Restam apenas 40 leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em todo o estado.

Vivendo a crise da Saúde na pele e lidando diariamente com seus impactos, a médica intervencionista Letícia Moreno de Barros, de 35 anos, afirma ter a sensação de estar "enxugando gelo”. “Nós temos as UTIs lotadas, UPAs lotadas, os pacientes estão ficando sem ter pra onde ir”, diz.

Trabalhadora do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) no Sudoeste do Paraná, Letícia conversou com o Brasil de Fato Paraná sobre como tem sido o trabalho ao longo deste ano inteiro de pandemia. Ela relata uma rotina de exaustão física e mental e alerta para a importância da vacinação em massa da população como única saída para evitar o caos completo. 

Assista à entrevista no canal de YouTube do Brasil de Fato Paraná.

Confira trechos:

Brasil de Fato Paraná: Os últimos dias têm sido mais críticos em todo o estado. Como está a situação dos municípios que você atende?

Agora, simplesmente, nós temos as UTIs lotadas, UPAs [Unidades de Pronto Atendimento] lotadas, os municípios de origem - onde o suporte é bem menor em questão de ventilador - na maioria das vezes não tem respirador mecânico, os pacientes estão ficando sem ter pra onde ir. Quando eles conseguem chegar aos hospitais de referência ou até na UPA, eles já estão num estágio em que  a gente só se vê enxugando gelo. Por mais que se preconize a intubação precoce, na maioria das vezes a gente não consegue fazer, acaba sendo tardia, porque não tem ventilador na origem, às vezes não tem medicação pra sedar o paciente na origem. Então, infelizmente, o paciente está ficando cada vez mais sem assistência. Não é uma crítica em relação ao que o município pode fazer, de forma alguma, é mais em relação à proporção que isso tornou.

Chopinzinho [um dos municípios que a médica atende] tem uma UTI só pra Covid -19, o movimento é bem maior, nós levamos pacientes pra lá. Lá já está 100% de lotação, a UTI não fica com leito vago. Se um paciente tem alta, em seguida já aceita outro paciente ou já tem vários pacientes na fila pra esses leitos de UTI. A enfermaria do hospital também sempre lotada, não está tendo vaga. No caso do SAMU em Chopin, o fluxo é maior em relação a transferências, porque nós levamos pacientes pra lá. Entra uma ocorrência de um paciente de outro município e tem que levar pra lá.

No começo a gente assumia o plantão, tinha trauma, transferência de paciente clínico...só que, via de regra, dava 19h acabava o plantão ali. Agora, não. Agora entra ocorrência, transferência de Covid-19, a gente tem que colocar o avental de brim, máscara n95, colocar faceshield, óculos, fica paramentado, às vezes a transferência demora quatro horas...se a gente tiver que estabilizar o paciente na origem, demora seis horas e nessas seis horas a gente não pode colocar a mão em nada, não pode tomar água, não pode nada. Isso mudou absurdamente a nossa rotina, está inenarrável.

Era previsível que o estado chegaria a essa situação?

Eu imaginava que ia chegar onde chegou. Porque, assim, terminou o ano [de 2020], não tinha vacina [no Brasil], os bares estavam lotados, não tinha distanciamento social, não tinha nada disso. Óbvio que se tem um vírus circulando, não tem vacina e as pessoas, infelizmente, não estão sabendo discernir como se portar nesse momento, só pode piorar o que está acontecendo agora.

Se as pessoas não passarem a respeitar, elas vão morrer em casa. Porque as UTIs estão lotadas, as UPAs estão lotadas, os pronto atendimentos da origem estão lotados.

O SAMU faz todas as transferências inter hospitalares, em domicílio até hospital também. Quando liga 192, a gente é que vai pra lá. Então, se tudo está lotado, vai chegar um momento  em que as ambulâncias vão precisar prestar atendimento em casa e vão ficar com paciente na maca e não vai ter maca pra esse paciente descer em outro local. E vai chegar um momento em que todas as ambulâncias estarão lotadas também e as pessoas vão começar a morrer em casa sem oxigênio.

E é inevitável chegar nessa situação?

O que dá pra fazer é vacinar logo a população. Porque não faz muito sentido ter preocupação só com a Economia. Se tivesse essa preocupação [com a Economia] e as pessoas estivessem sobrevivendo, tudo bem, mas simplesmente as pessoas não estão sobrevivendo. Quando é entubada, cinco, seis dias depois já vai a óbito. Da forma que está a vacinação, vai pelo menos mais um ano de pandemia. Enquanto não vacinar a população, vai continuar com tudo cheio. Eu não vejo nenhuma solução se a população não for vacinada logo.


Médica relata rotina de trabalho à beira do colapso do sistema de Saúde / Arquivo pessoal

Os profissionais da Saúde não tem a possibilidade de sair da realidade, fazer de conta que a pandemia não existe. Como tem sido viver há um ano essa rotina, principalmente em relação à saúde mental?

Os profissionais estão extremamente cansados. Os que eram pra trabalhar em dez estão em cinco, os que eram em 20 estão em dez e alguns ainda estão sendo afastados porque estão com Covid-19 ou com familiares infectados e têm que ficar isolados. Está muito crítico. A gente está no meio de uma pandemia, mas as pessoas não vão deixar de infartar, de ter um derrame. E não tem espaço físico pra tudo isso. Os funcionários estão bem mais estressados. Desde a recepção, todo mundo que está trabalhando, está à flor da pele. Pelo tempo dessa rotina e porque está só piorando.

Quando nós estamos na ambulância ficamos sempre em três: médica, enfermeira e o condutor. A gente chega, se olha e não sabe o que vai acontecer, que horas vai chegar, se a transferência vai ser dentro do estado ou fora do estado. Entra uma ocorrência, a gente só liga em casa a avisa que não sabe a hora que vai chegar.

Tem mais uma coisa: o médico e o enfermeiro ainda são considerados profissionais da saúde. Agora, o condutor, que é socorrista, tem todo o treinamento, não é reconhecido como profissional da saúde, por lei. Se a situação está ruim pra médicos e enfermeiros, imagina para o condutor, que se paramenta como nós, e simplesmente não é considerado profissional da saúde. 

E como é um dia na sua rotina?

Às 6h50 já está todo mundo na base, a gente toma café rápido, come alguma coisa, porque se entra ocorrência de longa distância a gente tem que estar alimentado. Se a ocorrência termina às 10h, por exemplo, a gente volta e já almoça, porque não sabe a hora que vai poder parar depois que entrar uma nova ocorrência. Quando entra um paciente de Covid-19, depois que nós chegamos na base, nós passamos amônia em toda a ambulância, depois secamos. Esperamos cinco minutos, limpamos toda a ambulância pra depois estar disponível para fazer qualquer outro atendimento. Então não é só o cansaço das ocorrências....e são várias vezes que isso é feito em um dia. É extremamente desgastante.

Ao longo desse ano, teve algum caso que foi especialmente marcante para você?

Todos os pacientes que a gente é chamado para transferir são pacientes muito graves. Acaba que a maioria vai a óbito. Mas tiveram dois casos inesquecíveis.

Chegou uma moça de 14 anos, no terceiro dia de sintomas, sem conseguir mais respirar. Estava acompanhada da mãe, ela não estava muito bem, eu disse "a sua filha está muito grave, ela vai precisar ser entubada, a senhora pode entrar lá, fale tudo que a senhora tem vontade de falar, porque sua filha não tem chance alta de sobrevida". Essa moça de 14 anos, não viveu nada, foi a óbito.

Outra foi uma transferência recente, de uma moça de 34 anos, casada, com um filho de oito meses. Também estava com insuficiência respiratória, precisava ser entubada. O triste é explicar para o acompanhante o procedimento, a gente deixa entrar na sala, porque não sabe o que vai acontecer. Ficar escutando a despedida é muito triste. Você não sabe se aquelas pessoas vão voltar a se falar, a única certeza que a gente pode dar para o familiar é que a gente está fazendo o máximo possível naquele momento. A grande maioria dos pacientes entubados não recebe alta. Isso é muito triste.

Você pode descrever como é o procedimento de intubação?

Então, o que é a intubação? Geralmente é o procedimento que a gente faz no paciente que está com muita falta de ar, que sozinho não consegue mais ventilar. Então a gente seda o paciente, coloca uma medicação para que ele fique dormindo, coloca um bloqueador muscular pra ele não conseguir fazer o movimento para ventilar sozinho. Aí nós colocamos uma lâmina laringoscópio de aproximadamente 10 centímetros na cavidade oral, o paciente continua dormindo, essa lâmina é pra poder, a grosso modo, levantar a língua do paciente pra gente conseguir passar um tubo na traqueia do paciente. A partir daí, a gente conecta um ventilador nesse tubo e ele passa a ventilar pelo ventilador que a gente deixou programado. A partir do momento que nós sedamos o paciente, que ele está bloqueado, ele não sente mais dor, não sente mais nada.

O problema do cenário atual é que eles não vão ter nem essa oportunidade, porque não tem ventilador disponível para todo mundo. Por enquanto, ainda tem sedação. Mas se continuar assim, vai chegar um momento em que não vai ter mais sedação. Pode ter médico, ventilador, tubo, mas não vai ter como deixar paciente entubado acordado. A gente vai começar a perder paciente por falta de recurso, infelizmente. Imagina quantos pacientes estão entubados no Brasil hoje? Todos usam medicação, bloqueador muscular. E vai acabar. O risco maior é estar com paciente entubado e não ter medicação mais, e ter que decidir se ele vai morrer tentando ventilar sozinho ou se vai morrer porque acabou o oxigênio.

Qual é o futuro possível de vislumbrar diante do cenário atual?

O vírus está infectando muitas pessoas. A perspectiva é que piore muito, do jeito que está agora. Tudo depende de como vai ser a vacinação. A gente tem noção que a vacinação está muito lenta. [Se continuar assim] vai ser mais um ano "perdido". Esse ano vai ser pior que o ano passado.

Edição: Pedro Carrano