Coluna

O direito de viver em paz

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Pablito PLA (Chile), Mural na FAUG, Universidade de Concepción, 2019 - Reprodução
O direito de viver em paz não é uma frase sem sentido; é efetivamente um desafio para o sistema

Em um dia quente de final de fevereiro, em Santiago (Chile), fui ao túmulo de Victor Jara para homenagear o homem que foi brutalmente assassinado em 16 de setembro de 1973. Diretor de teatro, compositor e comunista, Jara foi preso após o golpe de Estado contra o governo socialista de Salvador Allende. Ele foi torturado e depois assassinado. Jara foi sepultado na parte de trás do Cemitério Geral da Recoleta junto a outras vítimas da ditadura militar do general Augusto Pinochet. Em 2009, seu corpo foi exumado como parte da investigação desse assassinato e foi enterrado novamente a uma curta distância. No túmulo original, estão pintadas as palavras: el derecho de vivir en paz [o direito de viver em paz].


Essa canção é o fogo do amor puro, uma canção internacional que declara o direito de viver em paz / Reprodução

Essas palavras são da música que dá título e abre o álbum de Jara de 1971. A canção é uma homenagem ao povo vietnamita, liderado por Ho Chi Minh em sua luta contra o imperialismo estadunidense. É uma canção simples, que começa com um verso sobre o direito de viver em paz. Em seguida, reflete sobre Ho Chi Minh, o poeta, que luta a partir do Vietnã, mas para toda a humanidade. O povo vietnmita declarou independência em 1945 quando Jara tinha 13 anos. Antes que pudessem avançar em sua agenda socialista, uma guerra foi imposta, primeiro pela França e depois pelos Estados Unidos, que usaram todo o seu arsenal – exceto armas nucleares – contra o povo vietnamita, que lutou com grande determinação para libertar seu país.

Duas coisas sobre essa guerra ficaram claras para os revolucionários de todo o mundo. Em primeiro lugar, que a derrota do povo vietnamita resultaria em um grande revés para a agenda de libertação nacional em todo o mundo, pois daria aos EUA e seus aliados moral para esmagar outros movimentos de libertação. Em segundo lugar, que cada pessoa sensível e comprometida com a descolonização e a liberdade tinha que “criar dois, três ou muitos Vietnãs”, como Che Guevara escreveu em sua Mensagem à Tricontinental (1966). Che foi assassinado em 1967 aos 39 anos; Victor Jara tinha apenas 40 anos quando o mataram.

Em 1971, os vietnamitas ganharam grande confiança, mantendo o norte do país, apesar do bombardeio aéreo implacável e do uso de armas químicas. Eles avançaram para o sul – incluindo a Ofensiva Tet de 1968 – em direção a Saigon. Ho Chi Minh morreu em 1969, firme até o fim. A música de Jara é uma homenagem a Ho Chi Minh e aos lutadores vietnamitas, que demonstraram a necessidade de uma atitude internacionalista em relação à liberdade. Essa canção é o fogo do amor puro, uma canção internacional que declara o direito de viver em paz.


René Mederos (Cuba), Como no Vietnã, mês da mulher vietnamita, 1970; Save the Country, Save the Youth [Salve o país, salve a juventude] (Vietnã), sem data / Reprodução

Músicas como essa nunca desaparecem. Nelas residem o princípio da esperança, a inspiração para a luta e a antecipação de um mundo para além do nosso. Caminhando pela Praça da Dignidade, em Santiago, Chile, é possível ver imagens de Jara e citações de suas canções nos muros. São pichações de vários grupos políticos e muralistas que sentem uma conexão direta com seu passado radical e sentem que o resíduo da ditadura permanece. Todas as sextas-feiras à noite, um grande grupo de pessoas se reúne na praça não apenas para protestar contra o governo mesquinho de Sebastián Piñera, que assumiu o poder em 2018, mas também contra a orientação neoliberal dos governos que ocorre desde 1973. Piñera, um conservador que se opôs ao julgamento de Pinochet, tem feito um governo de austeridade que provocou protestos em massa, primeiro de estudantes e depois da população em geral. A resposta do governo a essa onda de protestos foi uma forte repressão, bem como detenções ilegais e violência policial de todos os tipos (incluindo violência sexual). Manifestantes e jornalistas como Gustavo Gatica foram atingidos no olho com balas de borracha, o que me fez lembrar de Mohamed Sobhi el-Shenawy, o “atirador de olho”, que atingiu manifestantes na Praça Tahrir, no Cairo, Egito, em 2011.

Apesar de uma decisão do tribunal em 2018 que condenou oito oficiais aposentados a 15 anos de prisão pelo assassinato de Jara, a verdadeira justiça por ele vive apenas naqueles que o evocam. Em 2019, sua música voltou como o hino desse novo movimento, cantado com grande emoção por seus colegas do grupo Inti-Illimani na praça. No protesto, em uma típica noite de sexta-feira, no mês passado, vi a polícia disparar seus canhões de água e marchar impunemente contra os manifestantes que se acostumaram à rotina de exercer sua democracia e sofrer repressão das forças do Estado. Jorge e Marcelo Coulon me contaram sobre a imensa emoção que sentiram ao caminhar por entre a enorme multidão até o palco para cantar a música de Jara para Ho Chi Minh.

Inti-Illimani, El derecho de vivir en paz, Praça da Dignidade, Santiago, Chile, 2019.

Desde 1980, o Chile funciona com uma constituição estabelecida durante a ditadura de Pinochet. Fazia sentido, portanto, que as ondas de protestos apontassem para a reivindicação por uma nova Constituição. Em 2020, 78% do país votou sim para uma nova carta magna; em abril de 2021, votarão os contornos da Convenção Constituinte.

O que significa que a música de Jara retorna como um hino em nosso tempo, seu apelo pelo direito de viver em paz carregado de significado através das gerações. Essa é uma canção de um chileno escrita para a revolução vietnamita, mas com a sensibilidade de que tanto a luta do Vietnã quanto a canção são internacionais. Nada nas lutas no Chile sugere uma história insular, já que as pressões sobre a população não são exclusivas de Piñera e seu governo, nem da oligarquia chilena. Os programas de austeridade são resultado de uma greve fiscal das elites que preferem que sua riqueza seja escondida em paraísos fiscais ilícitos que usada de forma produtiva. Eles desconsideram o sofrimento de longo prazo dos trabalhadores que lutam para sobreviver enquanto a pandemia aprofunda sua já perigosa existência e provoca o tipo de movimento de protesto que marca a realidade chilena.

A visão de uma multidão não violenta exultante cantando canções de resistência é tão familiar quanto a visão de caminhões da polícia disparando jatos d’água e gás lacrimogêneo. Não é à toa que a versão de Roger Waters de El derecho de vivir en paz, de 2020, carregava todo o sabor dessa música internacional sendo escutada nas ruas de Delhi a Nova York.

Roger Waters, El derecho de vivir en paz, 2020.

Em 28 de fevereiro, um milhão de pessoas se reuniram sob bandeiras vermelhas no campo da Brigada de Calcutá quando o estado indiano de Bengala Ocidental iniciou uma campanha eleitoral. “Exigimos os nossos direitos”, disse o líder comunista Mohammed Salim, o direito de viver em paz. Há ecos por toda parte do hino chileno a Ho Chi Minh. Não muito longe de onde Salim falou está um consulado dos EUA, que fica em Ho Chi Minh Sarani, rua rebatizada durante a guerra dos EUA no Vietnã como um ato de solidariedade.


Victor Jara, por Instituto Tricontinental de Pesquisa Social / Reprodução

Hoje, não existe mais clareza na esquerda sobre a natureza de nossas lutas e a necessidade de solidariedade internacional. Os ataques do imperialismo estadunidense contra Cuba e Venezuela continuam, enquanto o presidente dos EUA, Joe Biden, em nome da “autodefesa”, autorizou o bombardeio na Síria. Onde deveria haver uma defesa direta do direito do povo de traçar sua própria agenda, há, em vez disso, uma política de guerra híbrida que sufoca e deslegitima populações inteiras. Perguntei a Marcelo Coulon – da lendária banda Inti-Illimani -, que cantou a canção de Jara em frente a uma das manifestações massivas em Santiago, o que significava cantar os hinos anti-imperialistas e internacionalistas em nosso contexto:

“Cantar a Ho Chi Minh, hoje, para mim, é um momento muito especial, já que me faz voltar à época em que estávamos conectados com o mundo, com o mundo solidário, com a luta anti-imperialista. E isso me demonstra o terrível dano que o neoliberalismo fez, em que as pessoas são tomadas de um individualismo terrível, onde já não pensam para além de seu próprio nariz, de seus interesses. Acho que a revolta social por algum motivo cantava essa canção, não somente pelo direito de viver em paz, mas de viver uma paz digna, extensa e solidária. Não quero explicar por que [Jara escreveu sobre] Ho Chi Minh, me parece que todo mundo deveria entender esse gesto solidário… eu dei o sangue para o Vietnã e agora não acontece nada”.

O impasse entre os agricultores indianos e o governo do primeiro-ministro Narendra Modi entra em seu quarto mês. As agendas de Modi e Piñera são pressionadas por sua fidelidade a seus aliados corporativos. Não têm temperamento nem capacidade para abandonar suas duras posições de privatização, clientelismo e repressão estatal. Os fazendeiros e trabalhadores agrícolas estão experimentando o mesmo tipo de obstinação sentidos pelos povos da Venezuela e Cuba. Apesar das devoções liberais em relação aos direitos humanos, há um compromisso maior com os interesses de poucos em detrimento da vida de muitos. A necessidade de “duas, três ou muitas Venezuelas” ou “dois, três ou muitos levantes de agricultores” nunca foi tão clara, nem a solidariedade foi tão essencial.

O direito de viver em paz não é uma frase sem sentido; é efetivamente um desafio para o sistema gerenciado por pessoas como Biden, Modi, Piñera e outros. É o simples apelo por um direito que provoca a guerra porque ataca o fato de alguns poucos se apropriarem da maior parcela da riqueza social.

Como se costuma dizer no Chile: “Fuera Piñera [Fora Piñera]”, uma palavra de ordem que serve tanto para ele quanto para o sistema que ele e outros defendem.

Cordialmente,

Vijay

Edição: Rodrigo Chagas