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Deixai toda a esperança

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A compra das vacinas da Pfizer só ocorreu por medo de que o governo fosse passado para trás pela iniciativa privada - Fotos Públicas
O fato é que o governo simplesmente não sabe o que fazer diante do crescimento da pandemia

Olá,

Na divina comédia brasileira, o país se tornou o décimo círculo do inferno, onde a economia e a racionalidade derretem na mesma proporção em que a pandemia se descontrola. Mesmo que você não tenha uma mansão de R$ 6 milhões, fique em casa, onde é mais seguro.

1. O pior lugar do mundo é aqui e agora. Doze por cento de todos os mortos no mundo por covid-19 são brasileiros. Um cenário que se agrava e que alcança seus piores índices desde o início da pandemia. Enquanto em todo o mundo as mortes reduziram 6% depois do início da vacinação, aqui elas aumentaram 11%, o que torna o Brasil um pária internacional também neste quesito, com a restrição para a entrada de brasileiros em 17 países.

O símbolo da semana, além das centenas de valas abertas, agora são também os contêineres alugados para conter a quantidade de mortos num hospital privado gaúcho. Além do oxigênio, podem faltar também medicamentos nos próximos dias. Parte da tragédia é graças ao carnaval de irresponsabilidades, como era previsto, pois a média móvel de novos casos de covid-19 subiu 21% depois do feriado.

Assim, como a doença, a vacinação também aproxima-se do descontrole. É o que afirmam entidades que lutam pela transparência de informações, que denunciam que há graves divergências entre os registros do OpenDataSus e do Painel do Ministério da Saúde. Para se ter uma ideia da bagunça, o registro de cerca de 100 mil doses não batem entre as duas plataformas e há 25 mil nomes de pessoas que se repetem mais de duas vezes.

Como se não bastasse a irresponsabilidade individual e coletiva, a nova cepa do vírus, a variante brasileira, tem maior capacidade de transmissão e possibilidade de reinfecção e há uma mudança central no perfil das vítimas, que são mais jovens e permanecem mais tempo internados na UTI. O resultado são 12 estados e o Distrito Federal com ocupação superior a 80% dos leitos de UTIs. Porém, nada disso impediu o Conselho Regional de Medicina do DF (!) de criticar o lockdown, sendo apoiado pela Deputada bolsonarista Bia Kicis.

A BBC sistematiza os cinco fatores que comprovam que estamos no pior momento de toda a pandemia, entre eles, a volta dos ataques de Jair Bolsonaro às máscaras e ao isolamento social.

2. Medo e delírio. Há loucura e convicção no comportamento de Jair Bolsonaro. O uso de máscaras é francamente desautorizado dentro do Planalto, o que inclusive teria sido a gota d’água para a demissão de Castello Branco da Petrobrás. Mas há também uma racionalidade, mesmo que perversa. Quando Bolsonaro liga a metralhadora verbal, dispara um turbilhão de bobagens e retoma as insinuações golpistas é porque quer criar uma cortina de fumaça ou está acuado. O fato é que o governo simplesmente não sabe o que fazer diante do crescimento da pandemia, como revela Ricardo Noblat. Se adotar o lockdown, o governo terá que admitir, por tabela, a necessidade de um auxílio emergencial de verdade, e não só os R$250 negociados com o centrão. Por isso, ele prefere atacar os inimigos, isentar-se da responsabilidade e confiar que um adulto tomará as decisões difíceis.

No caso das vacinas, os adultos são a Câmara e o Senado - que aprovaram medidas para agilizar a compra pela União, Estados e municípios - e os militares, que insistem em uma “pauta positiva” e tiveram que convencer Bolsonaro a desistir do pronunciamento em que pretendia atacar os governadores. A compra das vacinas da Pfizer só ocorreu por medo de que o governo fosse passado para trás pela iniciativa privada.

Nos cálculos do bolsonarismo, governadores e prefeitos assumiriam sozinhos o ônus do lockdown e da compra das vacinas. Parece loucura? Sim, mas o general Mourão e o presidente do Banco Central Campos Neto concordam, enquanto Paulo Guedes, desde a terra da fantasia, diz que “caso uma segunda onda venha, o Brasil vacinará em massa”. E, como lembra Celso Barros, a elite financeira brasileira também aprovou tudo isso. Porém, na política não há espaço vazio, e se o governo federal se isenta, governadores e prefeitos ocupam espaço. Cansados de esperar, eles passaram a agir por conta própria e extrapolam suas próprias jurisdições, reivindicando no STF o direito de importar e distribuir vacinas, articulando medidas de lockdown interestadual e até apelam à Organização Mundial da Saúde (OMS) para que fornecedores internacionais de vacina atendam o Brasil.

3. A mão invisível. Como argumentamos na semana passada, Bolsonaro resolveu fazer do preço dos combustíveis sua batalha estratégica para recuperar um mínimo de popularidade, já que não tem mais nada a oferecer. Nesse cenário, o novo aumento de 5% do diesel e da gasolina decretados pela Petrobras confirma o argumento do ex-presidente da empresa, José Sérgio Gabrielli, de que a intervenção de Bolsonaro teve motivações políticas, e não visava mudar a política de preços da empresa. Prova disso é que, depois do aumento, Bolsonaro tentou resolver o problema cortando em outras pontas: zerou os tributos federais sobre o gás de cozinha e o PIS/Cofin sobre o diesel e, para compensar essas perdas, aumentou a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) das instituições financeiras e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para a compra de veículos por pessoas com deficiência e encerrou o Regime Especial da Indústria Química (Reiq).

Evidentemente os bancos não ficaram nada satisfeitos com a decisão e o presidente da Febraban, Isaac Sidney, deu o recado de que acredita que seja “uma medida temporária e circunstancial”. Ou seja, quanto mais se aprofunda a crise econômica, mais difícil vai ficando compatibilizar interesses antagônicos. Mas ainda tem muita água para rolar debaixo dessa ponte.

Além da renúncia de quatro membros do Conselho de Administração da Petrobrás, que sinaliza a insatisfação dos investidores com a troca de comando da companhia, um possível vazamento de informações coloca o primeiro escalão do governo sob suspeição. Como revelou Malu Gaspar, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) está investigando negociações atípicas ocorridas pouco antes da live em que o Bolsonaro disse que “alguma coisa” iria acontecer na Petrobras. Segundo a mesma reportagem, é possível que um investidor com informação privilegiada tenha lucrado algo em torno de R$18 milhões em poucas horas com a compra e venda de ações da empresa. Já a Federação Única dos Petroleiros (FUP) anunciou uma greve em seis estados contra a privatização da empresa.

4. Carrinho de rolimã. Os dados sobre o PIB brasileiro divulgados esta semana mostram que a queda de -4,1% em 2020 foi o pior índice da série histórica iniciada em 1996. Mesmo que Bolsonaro diga que o Brasil “é um dos países que menos caíram”, acabamos passando da 9ª para a 12ª posição no ranking das maiores economias do mundo. Como já se esperava, o setor mais prejudicado foi o de serviços, com perda de -4,5%.

A exceção foram os supermercados, que venderam e lucraram mais na pandemia do que em períodos de normalidade. Em segundo lugar ficou a indústria, com queda de -3,5%, enquanto o setor agropecuário conseguiu um desempenho razoável, crescendo 2%. Ou seja, intensifica-se a desindustrialização do país enquanto o agronegócio se fortalece. Parte das perdas se explica pela queda do consumo das famílias, que também bateu o recorde de -5,5%, para o qual contribuíram o desemprego e o isolamento social. Tudo isso apesar do auxílio emergencial, sem o qual a situação seria ainda pior. Mas ao contrário do que sonha Paulo Guedes, não houve recuperação em “V” e a crise não é coisa do passado.

Se é verdade que no mundo todo se assiste a uma elevação do preço dos alimentos, o Brasil se encontra entre os cinco países onde este processo é mais intenso. E a fala do ministro sobre a possibilidade do Brasil “ virar Venezuela” sugere que o governo já perdeu o controle da economia. Os empresários avaliam que o primeiro trimestre está perdido e que estamos a caminho de uma recessão. Depois da intervenção na Petrobras e do aumento da tributação sobre os bancos, a relação entre o mercado financeiro e Bolsonaro balançou e agravou a alta do dólar e a fuga de capitais.

5. Um bote salva-vidas. Que ninguém se engane, apesar das rusgas entre Bolsonaro e o mercado, o governo segue apostando no projeto ultraliberal. Por um lado, Bolsonaro já deu sinal verde para a venda de estatais, começando pela Eletrobras, Correios e aeroportos. Por outro, ele pretende fazer do auxílio emergencial seu bote salva-vidas. É nesse zigue-zague que ele opera.

O problema da PEC 186 - ou PEC emergencial - são as contrapartidas criadas, que podem fragilizar ainda mais as políticas públicas. A proposta, aprovada no Senado, nesta quarta-feira (3), foi precedida de idas e vindas. Prevendo inicialmente a retirada de recursos do piso constitucional da saúde e da educação, e o corte de salários de servidores públicos, a PEC sofreu forte oposição da sociedade civil, e teve que ser atenuada. A tentativa inversa, de utilizar a emenda para flexibilizar o teto de gastos, excluindo do cálculo do teto o Bolsa Família, também não prosperou. Por fim, manteve-se o gatilho fiscal para União, Estados e municípios, sempre que as despesas atingirem 95% das receitas. Nestes casos, ficará proibido contratar servidores públicos e conceder qualquer tipo de reajuste ou benefício.

Por outro lado, os Estados e o Distrito Federal ganham mais 5 anos para pagar seus precatórios, que são dívidas oriundas de decisões judiciais. Outra discussão polêmica foi sobre o estabelecimento de um teto para os gastos com o auxílio. A proposta de uma parte da oposição era que o Senado não estabelecesse limite algum, deixando este ônus para o governo. Porém prevaleceu a proposta do centrão de manter um limite de R$ 44 bilhões. Com isso, acredita-se que o auxílio deverá ficar entre R$ 150 e R$ 375 durante quatro meses, contemplando até 40 milhões de pessoas, sendo metade destas beneficiárias do Programa Bolsa Família. A proposta agora segue para a Câmara, onde terá como relator o deputado bolsonarista Daniel Freitas (PSL-SC). Ou seja, o auxílio vai sair - mais tarde do que o esperado e menor do que o necessário - mas vai sair, para alívio da população, triunfo de Bolsonaro e tristeza de Paulo Guedes.

6. A Doce Vida. Existem dois tipos de pessoas que não precisam se preocupar com a conjuntura econômica, os beneficiados por rachadinhas e os militares. No primeiro caso, aproveitando que o STJ está dando aquela força para as investigações sobre as rachadinha voltarem à estaca zero, que o MP carioca dissolveu o grupo que investigava os irmãos Zero Um e Zero Dois e que a madrinha da sua advogada foi nomeada para investigá-lo, Flavio Bolsonaro resolveu comemorar comprando uma mansão de R$6 milhões em Brasília.

Os valores correspondem ao triplo dos bens declarados de Zero Um e o MP desconfia da origem ilícita dos recursos para a entrada no imóvel. Aliás, as vinte movimentações imobiliárias do senador são os principais indícios da lavagem de dinheiro das rachadinhas. A compra da mansão teve aval do papai Jair, apostando que a polêmica não vai longe, apesar de que o caso pode chegar à Comissão de Ética do Senado. Ainda assim, a compra irritou os militares, que consideram Flávio um ostentador.

Resta à turma do quartel esfriar a cabeça e abrir uma das 3,5 mil garrafas de cerveja e assar uns dos 714,7 mil quilos de picanha que correspondem a dez anos de alimentação de um soldado. Isso, claro, no topo, onde generais se fartam de gratificações e regalias, uma realidade bem distante da base militar. Um abismo aprofundado inclusive depois da reforma da previdência.

7. Enquanto isso em 2022. Nenhum brasileiro sabe, literalmente, se sobreviverá em 2021. Mas a política partidária, pela esquerda e pela direita, já se mudou para o ano que vem, mais preocupada com a eleição do que com a vacinação. Turbinado pela sequência de denúncias contra a Lava Jato, que favorecem os pedidos de anulação dos julgamentos e a recuperação dos direitos políticos, e por um súbito crescimento nas redes sociais, embalado pela nostalgia com os preços dos alimentos e da gasolina, Lula deixa claro que, se puder, será candidato novamente.

Fernando Haddad, que foi lançado pelo próprio Lula, parece ter a função de abrir caminho, enquanto o ex-presidente se concentra no seu imbróglio jurídico. Nesta semana, Haddad deu aquela tradicional alfinetada em Ciro Gomes para recolocar o PT - e não o pedetista - como o candidato da centro-esquerda, reagindo à declaração de Ciro de que sua missão é tirar o PT do segundo turno.

Segundo Elio Gaspari, Ciro também já estaria costurando apoios no mercado financeiro. Por enquanto, parece ter garantido o apoio da sumida Marina Silva, que não deve concorrer a mais uma eleição. Enquanto isso, a empresária Luiza Trajano é cortejada pelo PT, PSB, PSDB e Luciano Huck como cabeça de chapa ou vice. Com um sistema eleitoral de dois turnos e com eleições majoritárias e proporcionais no mesmo pleito, a lógica de uma frente partidária única é uma aposta difícil, em especial para partidos médios e pequenos.

Ainda assim, o encontro promovido pelo Fórum Econômico de Davos entre Luciano Huck, Manuela D'ávila e Marina Silva parece ter animado o lado do centro que pende mais à direita. Na pista da direita, o inconfiável DEM sinaliza que pode ir com Luiz Henrique Mandetta para a disputa, enquanto no PSDB, o governador gaúcho Eduardo Leite colocou mesmo o bloco na rua, batendo em Bolsonaro, enquanto João Dória não consegue se desfazer da tatuagem Bolsodoria de 2018.

8. Ponto Final: nossas recomendações.

.Duas reportagens apuram detalhadamente por que e como o governo investiu no placebo da cloroquina no combate à pandemia. A Carta Capital elenca os interesses econômicos de empresas farmacêuticas de propriedade de bolsonaristas e os compromissos com Donald Trump, enquanto a Agência Pública demonstra como o exército fabricou e distribuiu milhares de comprimidos de um remédio sem eficácia.

.Gadelha e a Saúde como motor da reindustrialização. No Outras Palavras, o economista Carlos Gadelha, da Fundação Oswaldo Cruz, propõe o investimento em saúde como forma de recuperação da industrialização e da economia brasileira.

.“Vou continuar emitindo sempre minha opinião científica”, diz professor processado pela CGU. Em entrevista para a Agência Pública, o epidemiologista e ex-reitor da UFPEL Pedro Hallal detalha o seu processo de perseguição pelo MEC e pela CGU pelas críticas ao governo pelo comportamento na pandemia.

.O lavajatismo é maior do que a Lava Jato. E sobreviverá. Em artigo na Carta Capital, a pesquisadora Ester Solano liga o sinal de alerta: o lavajatismo não são apenas os procuradores de Curitiba e continuará jogando na arena política brasileira.

.Games, nova fronteira no combate cultural. Rafael Grohmann resenha o livro “Marx no Fliperama'' de Jamie Woodcock para demonstrar os circuitos de trabalho e cultura dos videogames como potenciais de luta.

.O desafio de fazer música na pandemia. O Brasil de Fato entrevista o músico Zeca Baleiro sobre a pandemia, a relação do governo com os artistas e a previsão do mundo pós-covid.

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Ponto é uma publicação do Brasil de Fato. Editado por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile.

Edição: Rebeca Cavalcante