Coluna

Meu desejo é que você vença essa luta pela verdade

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Marikana Widows [Marikana viúvas], 2011 - Ayanda Mabulu (South Africa)
Agricultores indianos têm se voltado contra políticas que entregam seus ganhos a grandes corporações

Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Em 26 de janeiro, Dia da República na Índia, milhares de agricultores e trabalhadores rurais dirigirão seus tratores e entrarão no coração da capital, Nova Déli, para levar sua luta às portas do governo. Há dois meses, esses agricultores e trabalhadores agrícolas vêm participando de um levante nacional contra uma política governamental que busca entregar todos os ganhos de seu trabalho às grandes corporações, cujos lucros aumentaram durante a pandemia. Apesar do frio e da pandemia, os agricultores e trabalhadores rurais criaram acampamentos com uma cultura socialista com cozinhas e lavanderias comunitárias, pontos de distribuição gratuita de artigos essenciais, atividades recreativas e espaços de discussão. Eles têm clareza sobre a necessidade de revogação de três leis e exigem o direito a uma parcela maior de sua colheita.

As três leis que o governo indiano liderado pelo primeiro-ministro Narendra Modi impôs irão – afirmam os fazendeiros – estripar seu poder de barganha sobre a cadeia nacional e global de commodities (alimentos). Sem qualquer proteção estatal – incluindo manutenção de preços e um sistema público de distribuição de alimentos – os agricultores e trabalhadores rurais seriam forçados a pagar os preços estabelecidos pelas grandes corporações. As leis pedem aos agricultores e trabalhadores rurais que se rendam ao poder dessas grandes empresas, uma posição maximalista imposta a eles que torna a negociação impossível.

O Supremo Tribunal indiano entrou no impasse com uma ordem para criar um comitê para avaliar a situação; o presidente do Supremo pontuou que os agricultores – particularmente as mulheres e os idosos – deveriam desocupar os seus locais de protesto. As agricultoras e trabalhadoras rurais se sentiram justamente indignadas com o desrespeitoso pedido do presidente do Supremo (Satarupa Chakraborty, uma das investigadoras do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, refutou essas declarações). As mulheres são igualmente agricultoras e trabalhadoras rurais e impulsionadoras dessa mobilização – um fato demonstrado com a participação maciça no Mahila Kisan Diwas (Dia das Mulheres Agricultoras) celebrado em 18 de Janeiro em todos os acampamentos. “Quando as mulheres agricultoras falarem, as fronteiras de Déli tremerão”, dizia uma de suas faixas. “As mulheres são as que mais vão sofrer com as novas leis agrícolas. Embora muito envolvidas na agricultura, elas não têm poder de decisão. As mudanças na Lei das Mercadorias Essenciais [por exemplo] vão criar uma falta de alimentos e as mulheres vão arcar com esse fardo”, diz Mariam Dhawale, secretária-geral da Associação de Mulheres Democráticas de Toda a Índia (AIDWA).

Além disso, o comitê criado pelos tribunais é composto por pessoas conhecidas que assumiram posições públicas em apoio às leis do governo. Nenhum dos líderes dos agricultores e das organizações de trabalhadores rurais está nesse comitê, o que significa – mais uma vez – que as leis e ordens serão feitas para eles e não com sua consulta ou por eles.


Men and Lives [Homem e vida], 2018 / Soly Cissé (Senegal)

Esse ataque recente a agricultores e trabalhadores rurais indianos faz parte de uma longa série de agressões. Em 10 de Janeiro, P. Sainath, fundador do Arquivo Popular da Índia Rural e pesquisador sênior do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, falou em uma reunião em Chandigarh, na qual abordou um contexto mais amplo. “Não se trata apenas das leis que têm de ser retiradas”, disse Sainath. “Esta luta não é apenas sobre o Punjab e Haryana; é para além disso. O que queremos: agricultura comunitária ou dirigida por corporações? Os agricultores estão se confrontando diretamente com o modelo corporativo. A Índia é agora um Estado liderado por corporações, com fundamentalismo sócio-religioso e de mercado que estão regendo as nossas vidas. Esse protesto é em defesa da democracia; estamos reivindicando a República”.

Os protestos acontecem ao mesmo tempo que existe uma grande preocupação internacional com a situação da fome e da produção de alimentos por parte dos organismos multilaterais. Ismahane Elouafi, a cientista-chefe da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), disse recentemente à Reuters que os agricultores e pessoas pobres urbanas assumiram o fardo desta pandemia. “Excluídos do mercado e com a queda na demanda, os agricultores lutam para vender seus produtos, enquanto os informais nas áreas urbanas, que vivem com dificuldade, ficaram sem emprego quando os isolamentos foram impostos”, disse. Elouafi poderia muito bem estar falando sobre a Índia, onde os agricultores e os pobres urbanos estão lutando para sobreviver exatamente dessa maneira. Elouafi aponta para uma crise geral no sistema alimentar internacional que exige uma preocupação séria em nível global, mas também dentro dos países. Uma de cada cinco calorias que as pessoas consomem cruzou uma fronteira internacional, um aumento de 50% nas últimas quatro décadas; isso significa que o comércio internacional de alimentos aumentou dramaticamente, embora quatro em cada cinco calorias ainda sejam consumidas dentro das fronteiras nacionais. Políticas internacionais e nacionais adequadas para a produção de alimentos são necessárias tanto em escala global quanto doméstica. Mas, nas últimas décadas, não houve um verdadeiro debate internacional sobre essas questões, em grande parte por causa do domínio de um conjunto de grandes empresas de alimentos que definem os termos da política.

 


O levante, 1931 / Diego Rivera (Mexico)

A lógica do lucro levou o sistema alimentar a privilegiar a produção de bens que podem ser produzidos de forma relativamente barata e de fácil transporte. O melhor exemplo disso é a produção de cereais, na qual a indústria direciona grãos de “calorias baratas” (como arroz, milho e trigo) em vez de safras nutritivas (feijão bambara, painço, quinoa) pois os primeiros são mais fáceis de cultivar em grande escala e de transportar. A “corrida das calorias” que esse processo engendra permite que alguns países dominem a produção de alimentos e tornem o resto do mundo importadores de alimentos.

Há várias desvantagens nisso: o crescimento dessas calorias baratas depende de uma vasta utilização de água doce, elevadas emissões de gases com efeito de estufa devido ao transporte (30% de todas essas emissões), devastação de ecossistemas complexos, e um regime de subsídios estatais de 601 bilhões de dólares na Europa e América do Norte (os governos do Sul Global, entretanto, são forçados a cortar os seus subsídios). Todo esse sistema de produção alimentar vai contra a mão de obra dos agricultores e dos trabalhadores rurais, mas também contra as boas práticas sanitárias e sustentáveis, uma vez que o consumo excessivo desses carboidratos simples cria efeitos negativos na saúde.


Pleasant Work [Trabalho prazeoroso], 2008 / Li Fenglan (China)

 

Não há atraso na produção de alimentos. Há comida suficiente produzida. Mas o alimento produzido não é necessariamente do melhor tipo, com a diversidade nutricional necessária para uma dieta saudável. Mesmo essa comida não vai para quem simplesmente não tem renda para comer. A fome aumentou dramaticamente antes da pandemia e agora estão em disparada; entre os que passam fome estão os agricultores e trabalhadores rurais que cultivam os alimentos, mas não têm dinheiro para comê-los.

Um estudo recente publicado no The Lancet traz notícias chocantes sobre os níveis de fome entre os jovens. Os pesquisadores estudaram a altura e o peso de 65 milhões de crianças e adolescentes em todo o mundo antes da pandemia e encontraram uma diferença de altura média de 20 centímetros devido à falta de nutrição saudável. O Programa Mundial de Alimentos afirma que, durante a pandemia, 320 milhões de crianças estão perdendo os alimentos que normalmente são fornecidos na escola. O Unicef observa que, como resultado disso, mais 6,7 milhões de crianças menores de cinco anos estão em risco de desnutrição. O escasso auxílio financeiro fornecido na maioria dos países não conterá essa maré. A redução da entrada de alimentos nas casas tem um impacto catastrófico em termos de gênero, uma vez que as mães normalmente comem menos ou renunciam à comida para garantir que todos os outros membros da família comam.

Inovações na distribuição pública de alimentos são essenciais. Em 1988, o governo da China estabeleceu o “programa de cesta de vegetais”, no qual os prefeitos devem prestar contas a cada dois anos em relação à disponibilidade de alimentos que não sejam grãos acessíveis e seguros (produtos frescos são importantes aqui). O interior das cidades e aldeias tinha que proteger suas terras agrícolas para que alimentos frescos pudessem ser cultivados nas proximidades. Por exemplo, com uma população de 8 milhões, Nanjing era 90% autossuficiente em vegetais verdes em 2012. A existência do “programa de cesta de vegetais” permitiu que as cidades chinesas garantissem que a população continuasse a comer produtos frescos durante o lockdown causado pela pandemia. Esses programas deveriam ser desenvolvidos em outros países onde a indústria de alimentos é movida pelo lucro por meio da venda de calorias baratas que têm um impacto muito caro e negativo na sociedade.

 

 

O levante dos fazendeiros indianos é certamente uma luta para revogar as três leis prejudiciais aos agricultores. Mas a luta deles é por muito mais que isso. É pelos trabalhadores rurais – um quarto deles em todo o mundo são migrantes – que têm muito pouca segurança em relação à terra e possuem rendas extraordinariamente baixas. É também a luta pela humanidade, uma luta por uma política alimentar racional que beneficie tanto os agricultores como quem deve comer.

Os locais de protesto que circundam Délhi – e de onde os agricultores e trabalhadores rurais sairão em direção à cidade em 26 de janeiro – estão repletos de alegria e cultura. Poetas vieram recitar seus versos para o povo. Um dos poetas mais famosos do Punjab, Surjit Patar, escreveu um poema lírico antes de decidir devolver um prêmio (Padma Shri) que recebeu do governo. Seu poema ressoa pela paisagem, capturando a amplitude do protesto e sua música:

 

Este é um festival.

Até onde consigo ver

Além do que posso ver

Existem pessoas reunidas.

Este é um festival,

De pessoas e terras, árvores, água e ar.

Inclui nossas risadas, nossas lágrimas, nossas canções.

E vocês não sabem quem faz parte disso.

 

O poema descreve a interação de uma jovem com agricultores. A menina diz que quando os agricultores forem embora não haverá alegria no mundo. “O que devemos fazer então?”, ela pergunta, e enquanto os fazendeiros choram, ela diz, “meu desejo é que você vença essa luta pela verdade”.

É nosso desejo também.

Cordialmente, Vijay.

 

* Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano. Diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Edição: Camila Maciel