Rio Grande do Sul

Coluna

A saudade é o pior castigo

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"Temos que encontrar maneiras de estimular a reação consciente e indignada dos que se percebem não-cidadãos em defesa de todas as Emellys e Rebeccas que brincam inocentes". Arte - Alisson Affonso
O ecossistema geme. Precisamos escutar seu lamento de amor

Como falar de meio ambiente nesta semana em que duas crianças que se abraçavam, no pátio de casa, foram mortas por um tiro de fuzil?

Como falar de meio ambiente quando, a partir da morte de Emelly e Rebecca, com seus 4 e 7 anos de vida, viemos a saber que apenas em 2020 já são doze as crianças mortas por balas perdidas, apenas no Rio de Janeiro? Crianças negras e pobres, todas elas.

Como comentam líderes populares, no Brasil as balas perdidas não erram a cor da pele, e isso vem se agravando com a cultura da violência. Somente no Rio de Janeiro, em 2020, já seriam 100 os “acidentes com morte” por bala perdida. Sendo ampla maioria, as mortes a bala de homens, mulheres e crianças negras evidenciam orientação racial, para a violência dos serviços de segurança pública. Estudo da Rede de Observatórios de Segurança Pública  mostra que não faltam balas e a quem elas, majoritariamente, se destinam. Na Bahia, 97% dos 650 mortos em 2019, pelo sistema policial, eram negros. Em Pernambuco, 93%. No Rio de Janeiro, 86% dos 1.814 mortos em ações policiais de 2019, eram negros. Há nisso um padrão que se torna ainda mais alarmante quando observamos que ele se repete em outras ondas de extermínio. Por exemplo, nesta pandemia, onde faltam médicos, leitos hospitalares, respiradores e vacinas, a maior parte dos mortos também é formada por homens e mulheres negras.

As evidências de que isso tudo decorre de uma organização social injusta onde, a cor da pele amplia as probabilidades de morte, por ação ou por descaso do governo, estão passando batidas. Estão sendo naturalizadas, como tudo que se agrava desde o golpe de 2016. Ignoradas pela grande mídia, estas tragédias afundam no sofrimento das famílias afetadas, como se fossem problemas pessoais, alheios às responsabilidades do Estado.

Se trata de algo tão grave que Michelle Bachelet, responsável pela área de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), criticando o que se passa no Brasil de hoje, afirmou que o avanço do racismo, da negação da ciência e do obscurantismo se associam à posturas análogas, de dirigentes irresponsáveis em relação a um fato básico: as calamidades relacionadas à desigualdade e à pobreza somente poderão ser resolvidas com solidariedade e ações positivas em defesa dos direitos humanos.

Claramente grande parte do povo brasileiro está longe destes tais de direitos humanos. Chegamos hoje a 179 mil mortes por uma pandemia que se acelera, enquanto o presidente inaugura exposição de roupas e seu ministro general da Saúde pede paciência para decisões quanto à compra de vacinas. Depois, haverá que decidir quanto às agulhas, ao sistema de distribuição e ao formato das filas. Mas é certo que não faltarão balas, pois este ano a venda de armas cresceu 200%. 

Portanto, sob a vista de todos, e com a cumplicidade do governo, mais brasileiros de todas as cores e de todas as idades morrerão como moscas. Dramas que poderiam ser evitados. Cada um deles ampliando o vazio aberto pelas milhares de mortes já computadas desde a deposição sem crime, da Dilma e da prisão sem culpa, do Lula. A supressão de governos responsáveis, protetivos e solidários pelo que aí está, em sua arrogante indiferença à dor de famílias enlutadas, se faz tão ameaçador para o futuro de todos que já não é possível falar de meio ambiente.

Falemos de ecossistema. De rede de relações que encaminham o território e os organismos que nele atuam para situações de estabilidade ou para o colapso.

O ecossistema em modificação nas nossas cidades e relações sociais, despenca para o caos, sob as patas do rebanho, sob o escárnio dos  bajuladores e a ignorância do mito.

O ecossistema geme e precisamos, ao invés de falar, escutar. Escutar o lamento de amor pelos que se foram. E encontrar maneiras de estimular a reação consciente e indignada dos que se percebem não-cidadãos neste país onde muito deve ser feito, já, em defesa de todas as Emellys e Rebeccas que brincam, inocentes e alheias às ameaças da era bolsonaro.

Precisamos estar conscientes de que a saudade é o pior castigo, e dali retirar força e formas para  reconstruir o Brasil que perdemos.

Chico e Zizzi Possi - Pedaço de Mim

 

 

OBS: Amigues leitores. Os links são opções de acesso, para eventuais interessados nas fontes citadas. Recomendo, enfaticamente, tão somente que não deixem de escutar a música. Que ela nos inspire.

Edição: Katia Marko