Balanço

Gestão cultural de Doria e Covas focou em megaeventos e reforçou "política de balcão"

Secretaria também é criticada pela forma como interpretou e aplicou a lei Aldir Blanc: “Ficou muita gente de fora”

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Show de Elza Soares reuniu cerca de 50 mil espectadores na Virada Cultural 2018 - Divulgação / SMC

A gestão municipal da cultura durante os mandatos de João Doria (PSDB) e Bruno Covas (PSDB) em São Paulo concentrou esforços em grandes eventos, mais do que na descentralização dos recursos e na formação, e falhou ao socorrer trabalhadores do setor durante a pandemia de covid-19.

Entre 2016, último ano da gestão Fernando Haddad (PT), e 2019, o orçamento da pasta caiu de R$ 501 milhões para R$ 412,2 milhões.

Para além das cifras, artistas, produtores culturais e especialistas no tema criticam mudanças nas diretrizes da gestão da Secretaria Municipal.

Choque

“A primeira tragédia, no [governo] Doria, foi 'rasgar' o Plano Municipal de Cultura. As gestões tucanas, em geral, não se dão a essa prática democrática e republicana de ouvir as pessoas. Então, eles romperam com isso”, afirma Américo Córdula, ator e ex-secretário de políticas culturais do Ministério da Cultura. “Abandonaram o que havia da gestão anterior e não apresentaram nada no lugar.”

Apresentado por Haddad em forma de decreto, o Plano previa ações para os dez anos seguintes, com base em cinco eixos: Estado e participação social; espaço urbano e infraestrutura cultural; patrimônio cultural e memória; formação e difusão cultual; e fomento e economia da cultura.

Córdula avalia que a gestão do primeiro secretário de Doria, André Sturm, foi “agressiva” e se caracterizou pelo rompimento das estruturas de diálogo construídas na gestão do Partido dos Trabalhadores (PT).

:: Leia a primeira reportagem de balanço da gestão cultural de Doria e Covas, produzida pela Rede Brasil Atual ::

Para Andressa Souza, produtora cultural que atua no Campo Limpo e integra o Fórum de Culturas Zona Sul e Sudeste, cortar recursos parecia ser a prioridade dos primeiros anos de Doria na Prefeitura.

O programa de Valorização das Iniciativas Culturais (VAI), por exemplo, teve redução de R$ 2,4 milhões, e o número de projetos contemplados caiu de 230, em 2016, para 153, em 2017.

Ao final daquele ano, o governo de Doria e Covas gastou apenas 40,22% de todo o orçamento da cultura, a menor execução em 15 anos.

Pressionado por profissionais da cultura em São Paulo e sob suspeitas de improbidade administrativa, Sturm deixou a secretaria em janeiro de 2019 – nove meses após o então vice Covas assumir a prefeitura.

Mudanças de discurso

O escolhido para ocupar a cadeira foi Alê Youssef, empresário do carnaval de rua de São Paulo. A nomeação foi entendida como um aceno ao campo progressista, mas não se refletiu em aumentos significativos no orçamento.

Na visão do rapper MC Who, a saída de Sturm para entrada de Youssef foi mais negativa do que positiva. “O Sturm é do mesmo campo, do PSDB, mas teve a coragem de chamar as linguagens e conversar com cada segmento, e deu uma cadeira para o hip hop”, lembra o músico, responsável pela coletânea Hip Hop Cultura de Rua, primeiro registro fonográfico do gênero no país.

Regina Galdino, diretora teatral e integrante do movimento Artigo Quinto, apresenta uma visão divergente. “A gestão do Sturm foi um desastre completo. Foi muito truculenta, com bate-boca com as pessoas. Então, o Alê Youssef é visto como mais progressista na comparação com ele”, afirma.

“O Youssef, por exemplo, fez o Verão sem Censura, que foi super importante em contraposição ao Bolsonaro, mas com alto custo, refletindo uma concepção do PSDB, que é o foco em eventos de grande repercussão”, completa.

:: Relembre: Covas contratou por R$ 10 milhões produtora de vídeo que “não existe” ::

Youssef foi substituído em março deste ano pelo artista e empresário do teatro Hugo Possolo. Na visão de Américo Córdula, ele mantém a política do antecessor de “não discutir política, planejamento.”

Para Andressa Souza, as mudanças no comando da secretaria representaram adaptações na imagem pública da Secretaria, mais do que nas práticas: “Foi muito mais uma mudança de discurso. Permanece aquele pensamento da ‘política de balcão’.”

Grandes eventos

A Secretaria Municipal de Cultura é hoje a maior contratante de artistas do Brasil.

“O Doria é o cara dos mega eventos. Ele até inventou uma coisa horrorosa no nosso calendário que foi a tal Oktoberfest, que não tem nada a ver com São Paulo”, lembra Américo Córdula. “O Youssef, de certa forma, como empresário do carnaval, também trazia esse olhar voltado para os grandes eventos. Mas, é uma gestão que não discute política e continua na lógica do balcão, da negociação.”

“Eles liquidaram os programas de formação, os agentes de cultura, e focaram nos números, na programação”, completa o ator. “Aumentaram, sim, o público espectador, mas não falam em orçamento participativo, formação, descentralização. Ampliar a capacidade de discernimento, o repertório das pessoas, isso para eles é bobagem.”

Andressa Souza pondera que a ideia de grandes eventos como carro-chefe da política cultural em São Paulo é anterior à gestão PSDB – embora, nos últimos quatro anos, tenha se escancarado.

“É muito mais difícil emplacar uma política estrutural do que fazer um grande festival, e aí conseguir patrocínio. Não importam os processos, a transformação, o dia a dia: importa a quantidade”, lamenta. “Aí, o espaço periférico fica menos assistido. Na última edição da Virada Cultural, por exemplo, o número de pontos na Zona Sul caiu de 3 ou 4 para um.”

MC Who acrescenta que iniciativas com menos repercussão midiática foram deixadas de lado. “Um exemplo é o Mês do Hip Hop, que chegou a contemplar 1,8 mil artistas, focado em formação, com oficinas, ensaios, para quem quer se apresentar. Era uma porta de entrada, e hoje contempla no máximo 500 artistas, deixando de fora grandes articuladores dos extremos da cidade.”  

Pandemia

Regulamentada em agosto deste ano, a Lei Aldir Blanc buscava socorrer os trabalhadores da cultura que perderam sua fonte de renda durante a pandemia. Segundo Regina Galdino, as palavras de ordem eram “desburocratizar e descentralizar.” No entanto, a efetivação da lei em São Paulo não se deu como pretendiam os idealizadores do texto.

“Primeiro, a questão dos espaços culturais. A proposta da lei era garantir um recurso para quem não conseguiu pagar a conta, o IPTU, na pandemia. Em São Paulo, considerou-se o ‘daqui para frente’ e não o ‘daqui para trás’”, observa Américo Córdula, que participou da elaboração da lei. Na visão dele, o recurso deveria ser dividido entre todos os elos da cadeia produtiva.

“Quanto aos editais, o problema foi colocar alguns critérios, por ‘mérito’, em alguns casos. Não é uma lei de fomento, mas um recurso emergencial”, acrescenta. “Outra questão que vejo é que venderam como se edital fosse mérito da Secretaria Municipal de Cultura, quando na verdade eles não colocaram um tostão.”

São Paulo foi a cidade que mais recebeu recursos via Lei Aldir Blanc – cerca de R$ 71 milhões, mais que todo o estado do Rio Grande do Norte, por exemplo.

“Ficou muita gente de fora”, questiona MC Who. “Primeiro, não teve busca ativa. Faltou um mapeamento das ‘quebradas’, para identificar o praticante de cultura que é excluído digitalmente”, acrescenta o rapper.

“Além disso, demorou a abrir o cadastro e, quando lançaram o sistema de inscrição, era muito complicado, o que só ampliou a desigualdade.”

Das 5.136 inscrições, 1.084 foram para a modalidade de manutenção de espaços culturais e 4.052 para profissionais da cultura. Menos de 4% dos pontos de cultura da cidade foram contemplados.

Outro lado

A reportagem encaminhou os questionamentos à Secretaria Municipal de Cultura, que enviou por e-mail uma lista de ações desempenhadas desde 2019.

A pasta afirma que estabeleceu, através do Programa São Paulo Capital da Cultura, dez movimentos estratégicos de gestão que dialogam com o Plano Municipal de Cultura, “buscando garantir sua implementação mesmo diante de significativas limitações orçamentárias e de recursos humanos”. 

“Trata-se de ações que visam dialogar com um instrumento de políticas públicas elaborado em conjunto com a sociedade civil, buscando oferecer respostas possíveis em um curto período de tempo. Ademais, a SMC buscou acompanhar as agendas de discussão do Plano realizadas na Câmara”, completa a nota enviada pela Secretaria.

A assessoria da pasta ressaltou as ações da atual gestão que abrangem os cinco eixos do Plano Municipal de Cultura: o esforço na garantia de estruturação do Conselho Municipal de Política Cultural e do Fundo Municipal de Cultura; a aquisição de equipamentos de luz e som para casas de cultura e a inauguração de duas novas Casas de Cultura entre 2017 e 2020 (Guaianases e Parelheiros), além das que foram reformadas.

A assessoria ainda afirma que foi feita a revitalização de 44 equipamentos culturais,  41 já entregues; ampliação da frequência do público aos equipamentos culturais; fortalecimento do Centro de Culturas Negras; transformação do Teatro Décio Almeida Prado em um polo de discussão das temáticas da diversidade e criação de Portaria Intersecretarial para integração com a programação dos Centros Educacionais Unificados (CEUs), "qualificando assim os equipamentos culturais".

A secretaria destaca também a ampliação da Jornada do Patrimônio; ações de incentivo a leitura e literatura, como a implementação do Conselho do Plano Municipal do Livro, Leitura e Bibliotecas, e a realização do Festival Mário de Andrade; criação de novos editais como o Edital de Fomento às Culturas Negras e reestruturação do Programa de Municipal de Apoio a Projetos Culturais (Pro-Mac), que promove a descentralização das ações culturais.

Em 2019, a Secretaria acrescenta que foi lançado um pacote de R$ 27 milhões para investimento no setor e campanhas para realização de filmagens na cidade.


Ex-secretário Alê Youssef [esq.] ao lado do prefeito Bruno Covas [dir.] / Reprodução / Instagram

Quanto à Lei Aldir Blanc, a pasta informa que o número de inscrições superou as expectativas da prefeitura. Segundo a assessoria, as ações emergenciais se somam a uma série de atividades que integram o plano municipal de incentivo à cultura e ao setor artístico lançadas desde março, quando começou o distanciamento social imposto pelo combate à covid-19.

"Neste período, foram quase R$ 65 milhões investidos na antecipação e criação de novos editais e fomentos, como o que premiou 100 espaços culturais independentes, além da manutenção das atividades de formação, do aumento do valor destinado ao Pro-Mac para R$ 30 milhões e do lançamento de chamados para a realização de atividades artísticas online que mobilizaram os mais diversos territórios e linguagens, atingindo um público total de quase 1 milhão de pessoas", afirma em nota a secretaria. 

Ainda segundo a nota, desde o mês de julho, o  Grupo de Trabalho de Acompanhamento e Fiscalização da Lei Aldir Blanc, criado por meio do Decreto Municipal nº 59.580 e formado por representantes da sociedade civil, da Prefeitura de São Paulo e da Câmara Municipal, se reuniu com o objetivo de "pensar nas melhores soluções para a destinação da verba, além de acompanhar, orientar e fiscalizar a execução das ações previstas pela lei no município".

"Buscando atingir o maior número possível de beneficiários, 30% dos recursos foram destinados para o atendimento aos territórios e espaços culturais e 70% para os editais de premiação. Essa divisão levou em conta o levantamento realizado em 2018 pelo Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos], que identificou a existência de 1.044 estabelecimentos em Atividades da Economia Criativa no município de São Paulo", diz o texto.

A assessoria afirma que, para atender o prazo previsto na Lei Aldir Blanc, de realização dos pagamentos em até 60 dias após o recebimento do mesmo pela prefeitura, "a Secretaria Municipal de Cultura conduziu o processo da forma mais ágil e menos burocrática possível, com cadastros simplificados e autodeclaratórios, permitindo a participação tanto de indivíduos e grupos representados por pessoas físicas quanto por pessoas jurídicas”.

Sobre a dificuldade de acesso ao recurso, a pasta afirma que a plataforma SP Cultura foi customizada "especialmente para facilitar o credenciamento dos proponentes, ajudando na desburocratização do processo, com uma navegação simples, focada e direcionada nas questões mais pertinentes".

A assessoria informa que no site da Secretaria Municipal de Cultura (cultura.prefeitura.sp.gov.br) foram disponibilizados vídeos e manuais que ensinavam, passo a passo, como realizar a inscrição, além do Portal de Atendimento SP156 (sp156.prefeitura.sp.gov.br), acessível também pelo telefone 156, e do e-mail [email protected], criado especialmente para tirar dúvidas sobre o processo.

"Os projetos aprovados foram divulgados no final do mês de outubro e os proponentes receberão o depósito até o dia 16 de novembro", diz a secretaria.

Edição: Leandro Melito