Feminicídio

Uma mulher é morta a cada nove horas durante a pandemia no Brasil

Monitoramento mostra que há subnotificação e ausência de dados sobre raça, orientação sexual e identidade de gênero

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
cartaz nos queremos vivas
Foram 497 casos de feminicídio reportados entre março e agosto, mostra monitoramento da violência feito por mídias independentes. - Créditos da foto: Midia NINJA

Desde que a pandemia de coronavírus começou, 497 mulheres perderam suas vidas. Foi um feminicídio a cada nove horas entre março e agosto, com uma média de três mortes por dia. São Paulo, com 79 casos, Minas Gerais, com 64, e Bahia, com 49, foram os estados que registraram maior número absoluto de casos no período. No total, os estados que fazem parte do levantamento registraram redução de 6% no número de casos em comparação com o mesmo período do ano passado.

Os dados são do segundo monitoramento Um Vírus e Duas Guerras, feito por parceria entre sete veículos de jornalismo independente, que visa monitorar a evolução da violência contra a mulher durante a pandemia. A atualização revelou que entre maio e agosto foram mais 304 casos de feminicídio, 11% a menos do que o mesmo período de 2019. O primeiro levantamento da série, divulgado em junho, mostrou que nos meses de março e abril, quando iniciou o confinamento da população por causa do vírus, 195 mulheres foram mortas em 20 estados.

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O segundo monitoramento, como no primeiro, analisou os dados pelo número da população feminina desses 20 estados. O índice médio do país foi de 0,34 feminicídios por 100 mil mulheres. Portanto, 13 estados estão acima da média: Mato Grosso (1,03), Alagoas (0,75), Roraima (0,74), Mato Grosso do Sul (0,65), Piauí (0,64), Pará (0,62), Maranhão (0,47), Acre (0,44), Minas Gerais (0,43), Bahia (0,39), Santa Catarina (0,38), Distrito Federal (0,37) e Rio Grande do Sul (0,34). 

A queda, no entanto, não é um indicativo real de diminuição da violência. Somente 20 estados enviaram os dados solicitados. Os sete estados que não divulgaram todos os dados, de março a agosto de 2019 e 2020, são: Amazonas, Amapá, Ceará, Goiás, Paraíba, Paraná e Sergipe. É ineficiente também nas estatísticas dos estados, os dados sobre raça, etnia, orientação sexual e escolaridade, o que impede de fazer um perfil da mulher que morre todos os dias por feminicídio no Brasil.

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Subnotificação

Especialistas destacam a questão da subnotificação, uma vez que ainda há confusão entre feminicídio e homicídio de mulheres. "É apressado dizer que a violência contra a mulher diminuiu baseado no feminicídio, que expressa a falência total do sistema. Além disso, os números de tentativas de feminicídio seguem em alta e, embora o feminicídio seja o crime menos subnotificado, podemos afirmar que há, sim, subnotificação. A tipificação é muito recente e feminicídios podem ser caracterizados como homicídios. O que podemos afirmar, de fato, é uma redução pontual das notificações", explica Télia Negrão, conselheira diretora da Rede Feminista de Saúde.

Para ficar mais nítido: feminicídio trata dos assassinatos de mulheres em que o fato de serem mulheres foi fator essencial no crime, já o homicídio de mulheres indica mortes não ligadas a questões de gênero, como mortes em assaltos ou outras formas de violência

Em Santa Catarina, por exemplo, enquanto os dados apontam uma queda de 14% nos feminicídios em relação ao período entre março e agosto de 2019, o número de homicídios de mulheres catarinenses aumentou 12% em relação ao ano passado. "Há uma resistência em se admitir o feminicídio e, às vezes, ele é catalogado como homicídio. Na maioria dos casos, se for investigar seriamente, chega-se a um feminicídio justamente pela condição de ser mulher", pontua Renata de Castilho, presidente da Comissão de Combate à Violência Doméstica da OAB-SC.

Aumento em sete estados

Doze estados registraram queda dos números absolutos de feminicídios entre março e agosto, representando uma redução de 23% em relação ao mesmo período de 2019. Rio Grande do Sul e Distrito Federal foram os que mais contribuíram com a diminuição. Por outro lado, em sete estados houve aumento de 23% (38 mortes) em relação ao mesmo período do ano anterior. Pará e Mato Grosso encabeçam o aumento: 15 e 10 mortes respectivamente.

De março a agosto, o país registrou uma taxa de feminicídios por 100 mil habitantes mulheres de 0,56. Doze estados, que juntos somam 49% da população feminina do total analisado, tiveram taxas acima desta média nacional e foram responsáveis por 67% das mortes das mortes (331 feminicídios). Entre os que tiveram maiores altas estão Mato Grosso (1,72), Acre (1,32) e Mato Grosso do Sul (1,16).

Ausência de indicadores invisibiliza violência

Além da ausência de respostas de alguns estados, o levantamento encontrou também como barreira a falta de uniformização dos indicadores usados pelas secretarias. Poucos estados trouxeram informações sobre raça, orientação sexual ou identidade de gênero, por exemplo, o que acaba por invisibilizar a violência.

No Espírito Santo, por exemplo, a capital, Vitória, é o único município com 100% do seu território na área urbana, todos os outros têm um pé no campo e outro na cidade. Ao mesmo tempo, movimentos feministas pontuam que a violência contra a mulher do campo é totalmente invisibilizada. De março a agosto, morreram dez mulheres vítimas de feminicídio no Espírito Santo. Quantas dessas mulheres eram do campo? Ninguém sabe. Não existe estatística sobre a violência doméstica contra a mulher do campo.

A invisibilidade também afeta as mulheres trans e travestis assassinadas no Brasil, país recordista desse tipo de crime. O transfeminicídio não é considerado nas estatísticas oficiais.

"O transfeminicídio é um feminicídio, mas não é um feminicídio pela mesma razão, não é o mesmo tipo de ódio que seria um feminicídio contra uma mulher cis. Cunhar essa categoria é essencial para entendermos melhor o fenômeno, para descrevê-lo e para atender melhor essas vítimas. Não é a mesma coisa atrelar o transfeminicídio apenas à cultura da misoginia, existe ali uma transmisoginia", explica o pesquisador Dennis Pacheco, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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Já em Minas Gerais, o racismo mostra sua cara em forma de estatística: 61% das vítimas de feminicídio são negras. A maioria, 51%, não concluiu o ensino médio, e 70% têm de 18 a 44 anos. Os feminicídios, no segundo quadrimestre deste ano, se mantiveram no mesmo patamar do ano passado, mas os casos de violência doméstica aumentaram 2,7%, e o desrespeito a medidas protetivas, de julho para agosto, cresceu 22%.

"Discutir violência de gênero sem a perspectiva de raça é ignorar a história escravista e colonial do país que violenta até hoje as mulheres negras", afirma Ayala Santerio, coordenadora do N'zinga - Coletivo de Mulheres Negras de Belo Horizonte e da Articulação de Mulheres Negras do Brasil, à Ponte Jornalismo.

Mesmo assim, 12 estados não coletam informações sobre a raça das vítimas: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Paraíba, Alagoas, Espírito Santo, São Paulo e Rio de Janeiro.

Mato Grosso, na região centro-oeste, é o estado com a maior taxa de feminicídio a cada 100 mil mulheres durante a pandemia. Já o Mato Grosso do Sul tem a terceira maior taxa de feminicídio do país no período entre março e agosto. Registrou 1,16 casos a cada 100 mil habitantes mulheres. No Distrito Federal foram oito mortes entre março e agosto, uma queda de 56% em relação ao mesmo período do ano passado.

O Rio de Janeiro e o Espírito Santo ficaram entre os 12 estados que reduziram a taxa de feminicídio nos primeiros cinco meses da pandemia no Brasil. A partir de maio, quando o isolamento social foi sendo cada vez mais flexibilizado, o feminicídio voltou a subir no Rio de Janeiro, o que levou o estado a registrar uma alta de 13% no segundo quadrimestre do ano. Os episódios de violência doméstica contra a mulher continuam crescendo nos dois estados durante a pandemia, ainda que os especialistas no tema confirmem que a subnotificação de casos segue firme e forte.

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Chama atenção o aumento de 111% nos registros de violência doméstica no Rio Grande do Norte, desde março, o que, para a promotora Érica Canuto, tem relação direta com a queda dos feminicídios no Estado. Foram três casos em seis meses de pandemia, contra dez em 2019, no mesmo período. "As mulheres denunciaram mais e isso tem sido um fator de proteção para elas", acredita Santerio.

Em Pernambuco, as ocorrências de violência doméstica caíram 11% de maio a agosto, na comparação com 2019. Parece boa notícia, mas, ainda assim, mais de 12 mil boletins de ocorrência de denúncias relativas à violência de gênero foram registrados nas delegacias do Estado.

A série Um Vírus e Duas Guerras vai monitorar até o final de 2020 os casos de feminicídio e de violência doméstica no período da pandemia. O objetivo é visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil. Ela é resultado de uma parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, sediada no Amazonas; #Colabora, no Rio de Janeiro; Eco Nordeste, no Ceará; Marco Zero Conteúdo, em Pernambuco, Portal Catarinas, em Santa Catarina, AzMina e Ponte Jornalismo, em São Paulo.

*Essa reportagem foi originalmente publicada pela Revista AzMina

Edição: Daniel Lamir