Rio Grande do Sul

Direito à moradia

Moradores das comunidades do 4º Distrito se mobilizam pelo futuro das moradias

Prestes a ser inaugurada, nova ponte do Guaíba pode desabrigar famílias que aguardam reassentamento há mais de 6 anos

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Com destino incerto, moradores das vilas não investem em reformas e casas estão cada vez mais degradadas - Gilnei J. O. da Silva

“A gente quer saber: ou a gente sai ou a gente fica?”, indaga Franciele Borges, moradora da Vila Tio Zeca, região do Quarto Distrito de Porto Alegre. Há pouco mais seis anos, ela, assim como outras famílias, aguardam uma resolução sobre o reassentamento, a cargo do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), por conta da construção da nova Ponte do Guaíba. Prestes a inaugurar mais um trecho da ponte, no mês de novembro, e devido a ausência de respostas, moradores das comunidades atingidas pela obra realizarão, na próxima terça-feira (13), uma manifestação para chamar atenção para a situação.  

A saga dos moradores da Vila Tio Zeca começou em 2004, quando as famílias foram realocadas para a Casa de Passagem, denominada Carandiru, na Vila Farrapos. Realizada pelo Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB), a princípio era para ser algo temporário, de no máximo um ano. Contudo as famílias ainda continuam na espera no local. Com o início das obras da nova ponte, em 2014, a responsabilidade do reassentamento passou para o DNIT. Além dos moradores da Vila Tio Zeca, as obras atingirão a comunidade Areia, Vila Voluntários, Vila Cobal e Beco X. O espaço ocupado pelas vilas está em um território de Área  Especial de Interesse Social (AEIS), que são áreas demarcadas no território de uma cidade para assentamentos habitacionais de população de baixa renda (existentes ou novos).

Acompanhando o processo, o Conselho Estadual dos Direitos Humanos (CEDH) apontou, no relatório "Missão em defesa do direito humano à moradia e ao trabalho digno nas ocupações urbanas na região do 4º distrito", de outubro de 2019, que os moradores vivem precariamente na "casa de passagem", que na prática é um amontoado de casas. 

“Transcorridos cinco anos, suas casas encontram-se cada vez mais degradadas e precarizadas, sem os moradores empenharem reforma para consertá-las, uma vez que aguardam destinação (os valores da compra assistida ou o reassentamento) e não possuem recursos financeiros para investir em reformas numa casa da qual serão despejados. São aproximadamente 500 as famílias moradoras da Vila Tio Zeca e Areia”, apontou o documento.  

De acordo com Marina Dermamm, que assumiu recentemente a vice-presidência do CEDH, e que acompanhou as ações no Quarto Distrito, a situação das famílias continua a mesma. “A realidade do ano passado pra cá não alterou, podemos dizer que é até mais preocupante, se considerarmos que há notícias de inauguração da ponte no próximo mês (novembro) e nenhuma medida para o reassentamento foi realizada”, aponta. 

No final do ano passado, a entidade encaminhou uma recomendação ao DNIT, à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (PFDC/MPF), à Defensoria Pública da União e do Estado pedindo atenção e encaminhamentos para a situação dos moradores da casa de passagem (Carandiru).

Segundo o Ministério Público, a entidade vem acompanhado a situação, contando com Inquérito Civil desde o início, tendo ajuizado duas Ações Civis Públicas sobre a questão das moradias decorrentes dos impactos da construção da ponte. Através da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, o órgão tem agido em defesa das famílias impactadas, de forma que sejam garantidos o direito dessas pessoas.

"Considerando o impacto decorrente da obra de construção da nova ponte, aquelas moradias que se encontram em área construtiva ou de faixa de domínio, ou ainda incluídas em plano de reassentamento, inclusive em decorrência de determinação de natureza ambiental, devem ser reassentadas com preservação de seus direitos, compreendidos de forma ampla", afirma o procurador regional dos Direitos do Cidadão no Ministério Público Federal no RS, Enrico Rodrigues de Freitas.


Com 12,3 quilômetros de extensão, a estrutura tem investimento total de aproximadamente R$ 786 milhões / Gilnei J. O. da Silva

"Queremos uma resposta definitiva"

De acordo com as famílias que ainda estão no local aguardando o retorno sobre sua situação, a vila tem mais de 60 anos. Segundo os moradores, a vila Tio Zeca é uma das vilas mais antigas de Porto Alegre. 

Morador e presidente da associação do Beco X, Amélio Castanha de Araújo conta que vivem na localidade, atualmente, entre de 600 e 700 pessoas. “Quando foram cadastrada as famílias (em 2014) havia 500 pessoas. Agora aumentou, houve um inchaço na Tico Zeca e Areia. Eles estão esperando amontoar para jogar o pessoal em qualquer lugar”, relata Amélio que diz que a paralisação e a manifestação é sobre a desocupação da Tio Zeca.

“Eles vão inaugurar uma parte da ponte e as casas eles nem vão mexer. Então nós queremos uma solução do DNIT e por parte do governo, que eles venham dar solução para esse povo que está cansado de viver embaixo de mentira”, afirma. 

Formada por uma comunidade humilde, os moradores da vila são, em grande maioria, famílias que vivem em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade social. Habitando casebres de madeira, em condições completamente inadequadas e sem qualquer infraestrutura. Muitos dos moradores vivem há mais de três décadas no local, como é o caso de Franciele, 36 anos. 

“Minha mãe se mudou para essa vila ainda adolescente, e me me teve aos 20 anos. Desde que eu nasci são promessas. Primeiro promessas da prefeitura, até que em 2014 entrou o DNIT com promessas de que iriam nos retirar, que a gente não esperaria mais, que eles não eram de ficar enganando o povo, que eles iam precisar da área. E assim estamos, há sete anos sendo enrolados. Até hoje não tivemos nenhuma resposta concreta”, afirma a moradora.

De acordo com ela, a cada contato com o DNIT, a resposta dada é que não sabem quem ficará ou sairá. “Não podemos arrumar as casas ou vender as casas porque vamos perder o investimento. A gente mora dentro do esgoto porque não tem canalização, a luz precária. Já fiz pedido de luz, e veio a resposta de que não pode porque é uma área restrita do DNIT. Não podem fazer instalação de água, luz legalmente, porque é uma vila que vai sair”, frisa Franciele.  

Segundo ela é de extrema importância ter a resposta sobre o destino das famílias, "porque se ficarmos, a prefeitura vai ter que fazer um novo projeto. Porque o projeto que nós tínhamos, o cadastro que nós tínhamos pelo DEMHAB foi excluído quando o DNIT entrou no processo”, conta. 

O Brasil de Fato entrou em contato com o DEMHAB, que afirmou que o reassentamento das família da Vila Zeca ainda é responsabilidade do DNIT. “Essas famílias deveriam ser encaminhadas para os empreendimentos que o Departamento Federal construiria pela Queiroz Galvão no Humaitá, no continente. O Denit (sic) quem deve esclarecer porque essas unidades não foram construídas. Ao município cabe aprovar os projetos e fornecer as licenças ambientais”, explica  o órgão municipal. 

O DNIT retornou à reportagem, salientando, com relação aos reassentamentos, "que o programa social, desenvolvido em conjunto com a Justiça Federal e o Ministério Público Federal, já atendeu quase todas as famílias que residem na Ilha Grande dos Marinheiros (faltam quatro famílias do cadastro a serem reassentadas – mas nenhuma está na faixa de domínio da obra). Já as famílias das comunidades Tio Zeca e Areia, devido às medidas de distanciamento social, em decorrência da Covid-19, ainda não foram reassentadas. Neste caso, é necessário fazer audiência pública com os moradores, realizar novas visitas domiciliares para revisar o cadastramento social e só então dar início às audiências conciliatórias (que acontecem em mutirões)".

O órgão federal afirma ainda que tal etapa do empreendimento "não foi realizada em atenção à orientação dos governos de não promover eventos com aglomerações de pessoas e aguarda orientações da Justiça Federal - responsável pelos trâmites. O DNIT está também em tratativas com o Ministério Público Federal e a Justiça Federal para encontrar uma solução que possa ser aplicada durante este período de distanciamento social e, assim, poder dar continuidade ao reassentamento nestas comunidades".

Pedido de audiência

Além da manifestação marcada para o dia 13 de outubro, a ser realizada na nova ponte, a comunidade encaminhou um pedido de audiência pública com o Ministério Público, a Procuradoria Regional do Direito do Cidadão (PRRS) e a Defensoria Pública da União, para tratar do reassentamento das famílias. O pedido foi formalizado pelo Fórum do 4º Distrito. 

De acordo com o documento, apesar do reassentamento de parte dos moradores atingidos pelas obras, no caso as famílias residentes na Ilha Grande dos Marinheiros, as famílias que vivem no território não foram contempladas com o processo de reassentamento, seja com a garantia de moradia via empreendimento habitacional, seja via acesso à compra assistida. “Estima-se que ao redor de 1.000 famílias poderão ser atingidas pelas obras estando situadas nas vilas Tio Zeca e Areia, Vila Voluntários, Vila Cobal e Casa de Passagem Carandirú e ficarão sem nenhum tipo de reassentamento e, por outro lado, vendo a inauguração da obra da Ponte”, destaca o texto.

Edição: Marcelo Ferreira