Rio Grande do Sul

Coluna

A vaca subiu no telhado

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Enquanto o Ministério Público pede o afastamento de Ricardo Salles e a sociedade civil organiza abaixo-assinado por sua demissão, o presidente se faz de surdo e o vice desconversa - Valter Campanato/Agência Brasil
Os fatos desta semana podem ser vistos como um problema ecológico relevante, semelhante à covid-19

A revelação das loucuras que dominam o Brasil, desde o Golpe que depôs a presidenta Dilma estão naturalizando um outro tipo de crise, do qual talvez não exista saída, sem o povo na rua. Neste estágio de estupefação coletiva, são tantas as informações com potencial de gerar a indignação mobilizadora desta sociedade em cativeiro, que é difícil escrever na sexta, sobre o acontecimento relevante da semana.

Nesta segunda-feira, tivemos a notícia de que o Procurador Deltan Dallagnol, que cometeu os acintes conhecidos e que envergonha sua categoria desde o momento em que foi nomeado sem cumprimento dos ritos completos exigidos aos demais, será salvo do julgamento de seus crimes, por prescrição de prazo. Esta maracutaia, que ele se notabilizou criticando, e que usou de argumento para apressar, confessadamente sem provas, o aprisionamento do presidente Lula, surge agora como carta na manga, que vale para sua turma. Ok, há um túnel de escape, reservado para os golpistas. Mas e os outros? Nem ao menos se enojam com isso?

Olhando de fora, a sensação é de que ali existe uma espécie de conselho de ética tipo dois, capaz de assegurar que, na inexistência de argumentos para sustentação da inocência de tão vistoso, entre os procuradores federais, seu julgamento pode ser evitado. Daqui se percebe que o jogo da lei é sem sentido para os que não acompanham os interesses do time do comissário. Para eles atrás do goleiro existe um muro. Com a impunidade assegurada, tudo lhes é permitido.

A seguir, na terça, abundam notícias de que as queimadas crescem como nunca dantes na história deste país, e que o Brasil perderá contratos internacionais fundamentais ao agronegócio nacional. As ações e omissões do ministro Salles Leite, que recomendou ao presidente e a todos seus principais assessores que aproveitassem a pandemia para “dar de baciada”, “passar as alterações infralegais” tirando vantagem da  “distração”, aconteceram e parecem se encaixar na mesma lógica. Enquanto o Ministério Público pede seu afastamento e a sociedade civil organiza abaixo-assinado por sua demissão, com apoio até mesmo de segmentos do agronegócio, o presidente se faz de surdo e o vice desconversa. Ele também está livre do que supostamente exige o contrato social que regra o comportamento dos demais?

Na quarta-feira, o IBGE informou que o consumo per capita de feijão e arroz caiu e o de ultraprocessados subiu, na pandemia, debilitando o sistema imunológico da população ameaçada pela covid-19. A notícia constrange a todos. Com a eliminação do CONSEA, com o desmonte das políticas públicas, o brasileiro se alimenta pior e se torna mais vulnerável à todas as outras mazelas que acompanham nosso retorno ao mapa da fome.

Na quinta-feira, o Brasil fica sabendo que os mais pobres, que crescem em número e se tornam mais vulneráveis a tudo, também morrem mais, à bala. Cresce especialmente a taxa de homicídios entres jovens negros de 15 a 29 anos (e se reduz, proporcionalmente, a morte de jovens brancos. Quem estaria com as armas?).  Apavora saber que nas cidades com mais de 100 mil habitantes, o risco de ser assassinado é 3,7 vezes maior para um adolescente de pele negra, do que para os demais. A melanina, que protege de melanomas, apontados como a principal causa de mortes por câncer, nos próximos anos, neste período de aquecimento global, aqui parece atrair balas de verdade. E isto não ocorre por predominância numérica simples, mas por exclusão. Os outros assassinados também não são pretos, mas também não são lá muito brancos. Fazem parte daquele tipo especial de brancos, que Caetano classificou como “quase pretos de tão pobres”. Embora os negros componham 54% da população, 80% dos ricos são brancos e ocupam, em proporção bem maior os espaços de mando nos três poderes. Possivelmente aí reside a impunidade que permite tão vergonhoso exercício cotidiano do ódio ancestral que alguns nutrem, em relação a todos os povos que aqui habitam, como claramente expressou outro ministro de Bolsonaro, aquele que fugiu do país.

Hoje, sexta-feira, 28 de agosto, o governador golpista do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (do PSC), prestes a ser deposto por impeachment, foi afastado do cargo por decisão do STJ. Na mesma madrugada, o Pastor Everaldo Dias Pereira, presidente do Partido PSC, também golpista, foi preso. Ambos foram muito importantes para o golpe que depôs a presidenta Dilma e para as artimanhas que levaram à ascensão do Capitão Bolsonaro, de seu filho Flávio e tudo que veio com eles. É verdade que o Planalto vem tentando se desvencilhar dos laços de ajuda mútua presentes nestes casos, como no da golpista Flordelis e de outros, também associados a sindemia[1] que afeta o Brasil.

Em abordagem ampla, os fatos desta semana podem ser vistos como um problema ecológico relevante, bastante assemelhado ao que originou e sustenta a covid-19. A eliminação de controles ambientais sempre amplia a virulência de patógenos que migraram de seus nichos e atacam outras populações, com riscos de  eventualmente ocuparem o planeta inteiro. A busca de imunidade “de rebanho”, entre a população afetada, pode ser alcançada acelerando o contágio, através da eliminação simples dos mais reativos. Mas isto também acaba levando à diferenciação e ao fortalecimento da resistência do patógeno, aos anticorpos naturais que o rebanho possa adquirir. Sem falar no perigo das novas gerações do próprio vírus, que tendem a eliminar todo progresso de ações preventivas. Resta confiar na vacina, no choque bruto apesar das sequelas. Na alegria de termos povo forte, para servir de cobaia, com boas chances de superar a crise. O controle desta doença, como de todas, dependerá da retomada de equilíbrio entre as populações ameaçadas e ameaçadoras. Se trata da coevolução de processos biológicos que correm em sentidos opostos, ampliando a virulência, que mata, ou o sistema imunológico que a desativa.

No caso do Brasil, a vacina depende da conscientização nacional e tem a ver com as eleições municipais de outubro.

Como disse o Lula, em programa da TV Democracia: “Pergunte a qualquer pessoa que afirma odiar a política e o PT, em quem ele votou". Claramente os enganados, os desinformados e os poucos que se beneficiam do fim da política, tendem a votar nos maus políticos que destroem a imagem da política. Isto explica a maioria de brancos, golpistas, despreocupados com os direitos humanos, com a crise ambiental e com o loteamento do território nacional, entre os grupos que sustentam a impunidade e a desfaçatez dos criminosos que dominam o país. A eles não interessa saber porque o Queiroz depositou os R$ 89 mil na conta da Michelle. Mas isso não muda um fato inegável: a vaca subiu no telhado.

A indignação vencerá a apatia. Nesta eleição vamos mudar isso, em defesa da Casa Comum. Precisamos ajudar o país a encarar de frente o fato de foi a grande mídia, trabalhando pela  desqualificação e demonização da boa e velha política, que levou à eleição de pessoas como Witzel, Pastor Everaldo, Flordelis, Zema e tantos outros.

 

[1] Sindemia caracteriza superposição epidêmica de problemas com raízes aparentemente distintas, mas que se retroalimentam e interagem ampliando dramas de insegurança, saúde e exclusão em populações já fragilizadas em aspectos socioeconômicos. Pode ser interpretado como superposição de crises como as observadas no Brasil atual, referidas neste texto.

Edição: Katia Marko